|João Fraga de Oliveira

A política espectáculo e o seu consumo

Numa economia de mercado a resvalar para sociedade de mercado, a política-espectáculo só vinga (e tem vingado), permanece e cresce se dela houver, como tem havido, consumo.

Créditos / WD-40

«Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação.»

Cito a primeira frase de um livro do filósofo Guy Debord (França, 28/12/1931 – 30/11/1994): A Sociedade do Espectáculo (1.ª edição, 1967).

Em que medida vem esta frase a propósito do título deste texto?

A reflexão da política (como) espectáculo não pode ter suporte empírico mais generalizado. O recente alto patamar dela foi o «incidente diplomático na Sala Oval» da Casa Branca, nos EUA, com (espectacular) transmissão em directo pela televisão no sábado, dia 01/03/2025.

Mas há muito que Portugal não é nisso (disso) um oásis, bem pelo contrário.

Não pode por cá haver exemplo mais actual, porque também do passado sábado de 1 de Março (um dia politicamente «espectacular»,) do que a solene «comunicação ao país» do Conselho de Ministros, digo, do primeiro-ministro (PM).

Mas, numa economia de mercado a resvalar para sociedade de mercado, a política-espectáculo só vinga (e tem vingado), permanece e cresce se dela houver, como tem havido, consumo. A que corresponde a promoção da respectiva procura e suficiente «produção», que prossegue em ritmo intensificado e no modelo just in time.

E quanto a consumo, de facto, somos cada vez menos cidadãos na medida em que formos (e somos) cada vez mais consumidores.

Por exemplo, no trabalho, em que cada vez mais as pessoas, porque os salários não esticam e os preços e os juros não encolhem, se inibem de exercitar os seus direitos (o que não é irrelevante para a perda de direitos dos Outros), a tudo se sujeitam e são sujeitas para «ganharem a vida». Muitas vezes perdendo vida (pela doença profissional que, progressivamente, se lhes vai infiltrando e minando a saúde) ou mesmo perdendo a vida (num acidente de trabalho mortal). «Ganhar a vida a perdê-la».

E assim, cada vez mais deixam de como trabalhadores poderem ser cidadãos, no sentido de, verdadeiramente, o serem na (pela) cidadania (realização profissional e pessoal, bem como integração e reconhecimento social) que a dignidade do e no trabalho (e a partir daí pelo trabalho) pode e deve conferir.

Este raciocínio é transponível para a família, para a saúde, para a educação, para a cultura, para a justiça, etc.

Todavia, se domínio há em que, por maioria de razão, a cidadania assim se consubstancia como tal, esse é o domínio mais geral da Política, pressupondo-a no seu sentido mais genuíno e elevado (maiúsculo), o do interesse e participação de cada um e de (com) todos nas questões comuns (da comunidade ao país e para além deste) que se colocam quanto a objectivos económicos e sociais (logo, políticos) e inerentes oportunidades, projectos, propostas processos e acções individuais e colectivas de organização e funcionamento da sociedade. 

Neste sentido, a cidadania não se esgota na militância partidária ou no exercício de um cargo político, partidário ou mesmo governamental (não obstante o quanto os partidos políticos são imprescindíveis num sistema e processo político de democracia representativa e pluralista), mas compreende também, por si só, o envolvimento cívico e socialmente responsável na família, nas instituições, no trabalho, nas relações sociais em geral. 

Assim, cidadania como essência da Política por esta perspectiva só pode ser entendida como significando participação e acção política, e não como mero consumo passivo de «política».

Porém, no recuo quanto a este sentido, a Política está a ser substituída (e não apenas complementada) pelo mero consumo do comentário e do espectáculo «políticos», sendo certo que estas duas formas de fazer (vender) «política» não é raro que se fundam ou complementem.

Daí que a Política esteja a ser esvaziada do que lhe é essencial – a cidadania –, na medida em que esse vazio político está a ser preenchido pelo comentário e espectáculo políticos.

Estas duas formas de fazer (vender) «política», que não é raro se complementarem, por regra (que, como todas, tem excepções), não aprofundam o social e politicamente essencial das questões políticas presumidas e exigidas como seu objecto e objectivo, já que o seu conteúdo tende a limitar-se ao sensacionalismo «espectacular» ou a aligeirar-se no espartilho dos preciosos poucos minutos televisivos, a elitizar-se ou reduzir-se à análise professoral ou burocrática de abstracções económic(ist)as ou da real politik, a cingir-se à locução mais ou menos comentada de (des)informação sensacionalista («espectacular») que ao poder económico que lhe está por trás interessa «largar» (para mais vender) ou, até, a fulanizar-se no mero comentário ao comentário de outros comentadores. 

«Daí que a Política esteja a ser esvaziada do que lhe é essencial – a cidadania –, na medida em que esse vazio político está a ser preenchido pelo comentário e espectáculo políticos.»

Depois, mais especificamente quanto ao comentário político, outra questão é a de que, ainda que se pareça querer garantir o pluralismo, nestes monólogos ou diálogos de comentadores «políticos» e de políticos «comentadores», na organização, distribuição e gestão («moderação») do preenchimento dos «furos» (programas e respectivos comentadores/as, individuais ou em grupo / «painel») na «grelha», de facto, pouco pode pode haver, como não tem havido, do pluralismo e da equidade que aparentam.

Os meios de comunicação social, mormente a televisão, podem ser, devem ser e são cada vez mais importantes (e daí cada vez mais responsáveis e responsabilizáveis) na informação, esclarecimento e reflexão política (e em consequência na falta destas), com uma referência de serviço público em coerência com a dignidade e suporte (logo, responsabilidade) constitucional que lhes é expresso. E para isso é importante que os representantes (formais ou informais) dos partidos políticos ou de áreas económicas e sociais politicamente relevantes, assumindo-se como tal, lá promovam o debate da e pela Política. 

Contudo, tal não acontece quando, sobretudo se esses meios de comunicação social são de propriedade e administração privada, degenera da sua missão de serviço público para ser apenas (mais) um segmento de mercado, com a «mão invisível» de quem os detém a mexer os cordelinhos das estratégias meramente mercantis (aumento de audiências / comércio de publicidade). Assim, de facto, de comunicação social degenera em mera comunicação comercial. O nome deixa de ser a coisa nomeada.

Isso suscita o risco de os cidadãos tenderem a ser cada vez mais (só) consumidores (consumidos?) do comentário e espectáculo «políticos» e, em círculo vicioso, o risco de, quanto à Política, de facto, os políticos tenderem a serem-no cada vez menos verdadeiramente como tal na medida em que mais tenderem a ser (só) «comentadores». 

Mais em geral, o risco de o vazio de Política na sociedade que assim se cria (vai criando) passar a ser ocupado pelo mercantilismo e, mais concretamente, por aquilo de que este se alimenta: a «espuma» mediática o episódico, o secundário, o superficial, o chavão sonante, o caricatural. 

Ou mesmo, porque ainda mais mais «espectacular» (logo, mais rentável), pela boçalidade, a ofensa, o insulto soez (verbal ou gráfico), como há dias (tele) vimos e ouvimos (aliás, voltámos a ver e a ouvir) impunemente na própria Assembleia da República. Para deleite e proveito do (degradante) espectáculo televisivo, radiofónico ou fotográfico que os/as autores/as daí esperavam, sabendo como sabem que é precisamente esta a mercadoria «política» que a comunicação comercial, digo, «social» mais procura para revenda, inclusive reivindicando-a como «serviço (ao) público».

Como factor e resultado deste mercantilismo «político», o crescimento na Política, com esvaziamento desta do que lhe é genuíno e essencial, do «chico-espertismo», do arrivismo, do oportunismo, do, do mero interesse estritamente partidário (se não estritamente ou sobretudo pessoal), pela acção ou omissão dos quais a Política degenera de objectivo para instrumento de particulares interesses (de) «políticos».

Esta degeneração da Política processa-se ainda pela forma, menos perceptível, de o comentário e espectáculo «políticos» poderem sonegar, esconder (esconder mostrando) aos cidadãos, assim os inibindo da respeitante participação (questionamento, crítica, proposta e acção) o que da, na e pela Política é (o) essencial: condições de vida económica e socialmente dignas, ou seja, em tudo do que dependem e no que interdependem («isto anda tudo ligado»), saúde, habitação, emprego, trabalho digno, educação, cultura, justiça…

Por isso, julga-se vir aqui ainda a propósito (inclusive, com suficiente evidência, também partindo do «nosso» exemplo da comunicação ao País do PM de 01/03/2025), o que escreveu também Guy Debord, 21 anos depois daquele seu livro inicialmente citado: «O espectáculo organiza com maestria a ignorância do que acontece e, imediatamente depois, o esquecimento daquilo que mesmo assim pôde ser conhecido. O mais importante é o mais escondido» (Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo – 1988).

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