O mundo assiste impávido, e comedidamente informado, a uma «guerra humanitária» lançada em 2015 para «proteger civis» e que, três anos depois, degenerou na «maior catástrofe humanitária» do planeta, segundo a ONU; uma tragédia que proporciona, no outro prato da balança, milhares de milhões de dólares e euros de lucros aos impérios mundiais do armamento, principalmente norte-americanos e franceses. É no Iémen, onde nosso «mundo civilizado» se revê nas atrocidades cometidas pelos exércitos das «democracias» da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, operacionalmente apoiados pelos Estados Unidos e Israel.
É um balanço cheio de dúvidas o que chega dos confins das arábias, virados ao Corno de África, ali onde os continentes asiático e africano quase se tocam. Vinte mil mortos? Setenta mil, segundo os apuramentos feitos pelas organizações não-governamentais que actuam no terreno? Talvez nunca se chegue exactamente a saber a quantos seres humanos foi tirada a vida, roubados os bens, destruídos os haveres e as casas nesta guerra lançada para «proteger civis». E que o faz através de bombardeamentos de zonas residenciais, mercados, casamentos, funerais, autocarros escolares, hospitais e outros alvos igualmente ameaçadores.
Numa terra de história, cultura e lendas, onde foram erigidos os primeiros arranha-céus da história da humanidade – como a capital, Sanaa, testemunhava até há pouco – detectou agora a ONU «a pior crise humanitária do mundo». Onde a fome é companheira de vida de nove milhões de pessoas – quase tantas como os habitantes que tem Portugal – cinco milhões das quais são crianças.
«[No Iémen, com 29 milhões de habitantes], a fome é companheira de vida de nove milhões de pessoas – quase tantas como os habitantes que tem Portugal – cinco milhões das quais são crianças»
Quem se mantém informado frequentando apenas o mainstream saberá explicar esta guerra de cor e salteado: as tribos huthis chiitas, apoiadas pelo Irão, tentaram alcançar o poder em 2015 derrubando o presidente Abdrabbo Mansur Hudi, com apoio de grupos sunitas urbanos e traidores. Hudi foi forçado a exilar-se na Arábia Saudita, de onde continua a tentar reinar através dos exércitos saudita e dos Emirados Árabes Unidos, que invadiram o Iémen para abafar a «revolta iraniana». Simples, não é? Afinal, o conflito não é mais do que uma manifestação dos esforços sauditas para combater o «expansionismo iraniano», sabendo o Ocidente muito bem de que lado deve estar.
O que a guerra procura esconder
A guerra esconde, porém, uma combinação mortífera de interesses, que vão desde ambições geoestratégicas, luta pelo domínio de recursos naturais, grandes negócios de armas, desenvolvimento de rotas comerciais e até grandes projectos de engenharia.
Tudo isso cabe na velha ambição saudita de controlar, de facto, toda a região, o que significa tomar a seu cargo os exercícios de soberania de países como o Omã e o Iémen. Quem diz ambição saudita deve relacioná-la imediatamente com outros grandes interesses mundiais, como os dos Estados Unidos e de potências da União Europeia, ou regionais, como o de Israel.
O petróleo é uma razão óbvia desta guerra. Não é por acaso que um dos bastiões onde os sectores apoiados pelas tropas sauditas estão entrincheirados é o porto de Adem, a capital da região meridional do Iémen, a mais rica do país em petróleo.
Além disso, a existência independente do Iémen, tal como de Omã, são obstáculos ao domínio absoluto de Riade sobre o grande deserto do Rub-al-Khali, que terá um vasto manancial inexplorado de reservas petrolíferas.
Por outro lado, há muito que a Arábia Saudita e Israel têm um grande projecto em comum, que é a construção de uma extensa ponte entre Adem e Djibuti, ligando a Ásia a África e abrindo mais uma opção comercial entre vastas zonas petrolíferas, incluindo as do Corno de África. Não é por acaso que Israel tutela o chamado «Estado da Somalilândia1» nesta região, uma entidade apenas reconhecida por Telavive mas que funciona, de facto, como uma base militar sionista em território africano.
Além de planeada, a ponte já tem um grupo escolhido para a sua construção, por sinal o da família saudita bin Laden.
Negócio de milhares de milhões
O episódio do bombardeamento de um autocarro escolar no mês de Agosto, em que mais de 40 crianças perderam a vida por acção de um míssil norte-americano fabricado pela Lockheed Martin, elevou temporariamente a guerra do Iémen aos lugares de destaque da comunicação social norte-americana de grande consumo – e daí para a do resto do mundo, como seu subproduto.
A opinião pública percebeu que, afinal, os Estados Unidos estão envolvidos directamente no conflito, por detrás dos massacres de alvos civis cometidos pelas tropas invasoras sauditas e dos Emirados Árabes Unidos.
Não é segredo que, já na Administração de Barack Obama, o Pentágono efectuara operações no Iémen, alegadamente contra a presença de grupos da al-Qaida que eram, aliás, meramente residuais.
Ao contrário do que acontece hoje; importantes contingentes de mercenários agrupados em organizações que reivindicam filiações na al-Qaida e no Estado Islâmico actuam, de facto, ao lado das tropas sauditas invasoras.
O conhecimento destas situações começou a provocar alguma inquietação no interior do próprio Departamento de Estado norte-americano, designadamente nos departamentos do Médio Oriente e dos Assuntos Políticos – e da qual fez eco, por exemplo, o Wall Street Journal.
Foi então que o secretário de Estado de Trump, Michael Pompeo, ex-director da CIA, resolveu agir, ainda segundo relato do mesmo jornal, prometendo que a situação vai alterar-se para melhor.
Com isso não quer dizer que a guerra tenha os dias contados, nem que os Estados Unidos deixarão de continuar envolvidos operacionalmente indicando alvos, partilhando informações de espionagem com os agressores, reabastecendo esquadrilhas ou mantendo o envio de mísseis teleguiados. O que o secretário de Estado promete é que as tropas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos «irão trabalhar para reduzir os danos civis».
No Departamento de Estado sabe-se, porém, que nada no comportamento das tropas invasoras do Iémen garante uma mudança de atitude em relação aos alvos civis – pelo menos é a única conclusão possível das investigações realizadas no terreno.
Apesar disso, Pompeo passou por cima das «inquietações» manifestadas por quadros do seu departamento e deu luz verde à concretização de outro grande negócio gerado por esta guerra: a venda de mais 120 mil mísseis teleguiados de fabrico Raytheon, no valor de dois mil milhões de dólares.
Para tal, o secretário de Estado baseou-se no parecer do Gabinete de Assuntos Legislativos, o único do seu Departamento de Estado a pronunciar-se nesse sentido. Alega este que «a falta de certificação poderia ter um impacto negativo nas transferências de armas pendentes» ou mesmo sobre «futuras vendas a governos e instituições militares estrangeiras». Daí que a mesma fonte tenha tornado a posição desde logo mais abrangente, reforçando-a com outro parecer especificando que também «a acção militar na Síria é consistente com o direito inerente à autodefesa individual e colectiva».
Os pareceres foram assinados pelo chefe do Gabinete de Assuntos Legislativos, Charles Faulkner, que foi nomeado para o cargo há pouco mais de um ano. Transitou do sector privado, onde chefiava um departamento estratégico do BGR Group.
Esta empresa funciona como uma agência de lobby, isto é, que faz pressão para defender os interesses dos clientes junto de instituições governamentais norte-americanas. Por sinal, a entidade que até há pouco empregou o actual chefe do Gabinete de Assuntos Legislativos do Departamento de Estado representa os interesses de entidades como a Airbus, a Huntington Ingalls, mas também a empresa de armamento Raytheon e governos como o da Arábia Saudita.
Quando se fala, portanto, em «guerras humanitárias» e em defesa dos direitos humanos deverá ter-se em consideração que se trata de acções susceptíveis de serem transformadas em investimentos lucrativos e adequados à dinamização do tecido económico global.
Por isso, o envolvimento norte-americano na destruição do Iémen não é um caso isolado. Nos últimos dias, a França tem sido sacudida pelo escândalo da venda de quase 400 tanques Leclerc2 aos exércitos da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, transações que envolveram «luvas» superiores a dois milhões de euros depositadas em «paraísos fiscais».
«Contrato do século», chamou-lhe a comunicação social francesa na altura da consumação do negócio, em Abril de 1993. A empresa pública GIAT, hoje Nexter, vendeu então 388 tanques, 46 veículos armados e munições no valor global de 3200 milhões de dólares numa transacção que juntou em Paris cabeças coroadas das duas casas reais e agora leva a morte a casa dos iemenitas. Um negócio que prossegue, porque hoje continuam a ser frequentes as notícias de contratos de venda de armamento francês a Riade e Abu Dhabi.
Haverá quem se preocupe com a vida das populações do Iémen e de tantos outros países flagelados por guerras, mas não serão, por certo, os que dizem proteger os direitos humanos nessas regiões e, com esse alegado objectivo, montam acções qualificadas com o mais cruel eufemismo da cultura neoliberal global: «guerras humanitárias».
- 1. Nota da redacção: as notícias sobre o Corno de África e a chamada «Somalilândia» são raras ou inexistentes nos mainstream media nacionais. Para aprofundar o tema o leitor poderá ter interesse em consultar «The Politics Of Ports In The Horn: War, Peace And Red Sea Rivalries» e «Somaliland And The Scramble For Suez: How Old Imperial Powers Are Being Sidelined In Gulf’s “Cold War”».
- 2. Um sítio dedicado ao armamento militar francês afirma que o Iémen se transformou no «terrain d'essai pour les chars de combat français».
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