1. Para o público em geral a saída de John Bolton de assessor das questões de segurança nacional foi uma agradável surpresa, promissora no que respeita a mudanças na política externa norte-americana, a cujas derrotas sucessivas foi levada por este personagem. Foi a pressão para guerras «preventivas» contra estados islâmicos ou comunistas, como o Irão, a Síria, a Coreia do Norte, o desmantelamento de tratados internacionais de desarmamento, de ambiente, ou mesmo a tentativa de dissolver a ONU ou seus organismos especializados, por tomarem «decisões contrárias aos interesses nacionais dos Estados Unidos da América (EUA).
Porém, por um lado, isso poderá dar mais protagonismo a Mike Pompeo, com uma ideologia e comportamento bem semelhantes aos de Bolton. Por outro, importa ter em conta que o poder das grandes empresas militares de armamentos, o conjunto dos maiores monopólios norte-americanos e o lóbi judaico afinam pelo mesmo diapasão. É possível prever que, por todas estas condicionantes, mesmo que Trump quisesse mudar algumas políticas, teria um campo minado por elas.
Desde o «ataque preventivo» de Junho de 1950 contra a Coreia do Norte, os EUA estão permanentemente em guerra – real ou virtual – contra vários estados, no terreno (entenda-se com meios aéreos), na indústria cinematográfica, na TV, nos jogos para computadores e outros suportes. O jornalista Stephen Lendman sublinhou há dias1 que nos EUA se pratica uma cultura de violência e é do conhecimento universal que, nomeadamente depois da 2.ª guerra mundial, a sua história está cheia de assassinatos de líderes estrangeiros e internos, e que paira fundadamente a dúvida sobre quem efectivamente fez implodir as torres gémeas de Manhattan e realizou os restantes atentados que lhe foram simultâneos.
«Quando Bolton esteve na Coreia do Norte» – escreve Lendman – «afirmou que “o caminho para acabar com o programa nuclear do Norte é acabar com o Norte. E a RPDC alcunhou-o como “maníaco da guerra”[...]. Sobre o Irão disse que “a conclusão inevitável é que o Irão não negociará o seu programa nuclear. As sanções também não impedirão a construção de uma ampla e profunda infra-estrutura de armas”. Em contrapartida, o embaixador do Irão na ONU sublinhou que “não há espaço para negociações enquanto houver terrorismo económico do governo dos EUA e sanções cruéis contra o povo iraniano”. E sobre a ONU: “Não existem tal coisa como as Nações Unidas. Há uma comunidade internacional que ocasionalmente pode ser liderada pelo único poder real que resta no mundo e que são os Estados Unidos, quando isso sirva o nosso interesse e quando pudermos fazer com que outros nos acompanhem”»2.
A propósito, a directora do Centro de Controle de Armas Nucleares e sua não-proliferação, Alexandra Bell, disse que «entre Pompeo e Bolton, vimos uma equipa de política externa de neocons que usava esteróides»3
2. O Irão ultrapassa em muito o estado-nação conhecido por Pérsia no Ocidente. Segundo o jornalista do Arktos, Jason Reza Jorjani4, “o Irão é uma ideia imortal – um pensamento terrível na mente dos deuses (devâs, divs). O Irão está destinado a ressurgir como o Leviatã5 de entre todas as grandes nações da Terra. Os persas sempre se referiam a si mesmos como iranianos (Irâni) e usavam o termo Irânshahr (antigo persa Aryâna Khashatra) ou «Aryan Imperium» para designar o que os ocidentais chamam de «Império Persa».
Como se sabe, Hobbes alegou, no séc. XVII, serem os humanos egoístas por natureza. Com essa natureza tenderiam a guerrear entre si, todos contra todos (bellum omnia omnes). Assim, para não nos exterminarmos uns aos outros, seria necessário um contrato social que estabelecesse a paz, a qual levaria os homens a abdicarem da guerra contra outros homens. Mas, como são egoístas, necessitariam de um soberano (Leviatã) que puniria aqueles que não obedecessem ao contrato social.
A dialéctica interna que impulsiona a evolução histórica da civilização iraniana baseia-se em uma tensão entre visões de mundo rivais. Isto é comparável aos inúmeros conflitos de visão de mundo que moldaram e remodelaram a Civilização Ocidental e é mais dinâmico do que a tensão criativa entre as mundivisões do Confucionismo, Taoísmo, Budismo e Comunismo e do que os personagens culturais dos han, manchus, mongóis e tibetanos na história da civilização chinesa. o reconhecimento do Irão como uma civilização distinta, que antecede o advento do Islão e que agora evolui para além da religião islâmica, seria de importância decisiva para o resultado pós-nacional de uma Terceira Guerra Mundial.
O Irão é uma civilização que inclui várias culturas e idiomas diferentes que se unem em torno de um núcleo definido pela língua persa e pela herança imperial. Além do coração persa, a civilização iraniana abrange o Curdistão (incluindo as partes nos estados artificiais da Turquia e Iraque), o Cáucaso (especialmente o norte do Azerbaijão e a Ossétia), o Grande Tajiquistão (incluindo o norte do Afeganistão e o Usbequistão Oriental), os territórios pashtuns (no estado falido do Afeganistão) e no Baluchistão (incluindo as partes deste no interior do estado artificial do Paquistão).
Uma analogia ainda mais próxima seria a China, que também é uma civilização e não simplesmente uma nação. A China, considerada uma civilização, inclui muitas culturas e idiomas além dos dominantes chineses han. Por exemplo, os manchus, mongóis e tibetanos. O que é interessante na China, a esse respeito, é que a sua actual administração política abrange quase toda a sua esfera civilizacional – com a única excepção de Taiwan (e talvez Singapura). Em outras palavras, como está, a civilização chinesa quase atingiu a máxima unidade política.
Para pedir emprestado um termo do filósofo russo Alexander Dugin, a etnia e a língua persas poderiam ser descritas como o narod ou cerne da civilização iraniana. Isso seria comparável ao papel da língua mandarim e da etnia han na civilização chinesa contemporânea, ou ao papel da etnia latina e italiana na civilização ocidental no auge do Império Romano, quando Marco Aurélio conquistou e integrou os territórios actualmente correspondentes à Grã-Bretanha e à Alemanha. Embora o autor aceite o conceito de Samuel Huntington de um «choque de civilizações»6, rejeita a sua distinção entre o que ele chama de «Civilização Clássica» e Civilização Ocidental.
Actualmente, no entanto, os EUA desempenham o papel de estado civil ocidental, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) funcionando efectivamente como a superestrutura de um império americano coextensivo com o Ocidente, com excepção da América Latina, onde os Estados Unidos têm sido económica e diplomaticamente dominantes pelo menos desde a declaração da Doutrina Monroe.
Huntington identifica um punhado de civilizações sobreviventes de nível mundial, cujas interacções definiriam a ordem mundial pós-internacional: civilização ocidental, ortodoxa, chinesa e islâmica. Os principais estados das três primeiras são, respectivamente, os EUA, a Rússia e a China. Dentro do contexto de seu modelo, várias grandes potências mundiais carecem de esferas civilizacionais. Esses «estados solitários» incluem-se, nomeadamente, a Índia e o Japão. Embora tenha um alto nível de cultura e laços históricos profundos com a China, o Japão não faz parte da civilização chinesa e, no entanto, carece de uma esfera civilizacional própria que abrangeria outros estados. Se o Império Japonês tivesse triunfado na Segunda Guerra Mundial, o Japão poderia ter-se tornado uma civilização, através do domínio do Pacífico.
Ainda existem alguns países na Europa que são tão fundamentalmente definidos pelo legado dos alanos, sármatas ou citas iranianos que realmente pertencem ao escopo da civilização iraniana e não da civilização europeia ou ocidental. É o caso da Ucrânia, Bulgária, Croácia e, se alguma vez se separar da Espanha, da Catalunha.
Apesar de os muçulmanos permanecerem, no momento, uma minoria na Índia, o país ainda abriga mais muçulmanos que o Paquistão ou qualquer outra nação islâmica na Terra. Dadas as tendências demográficas actuais e precedentes históricos, como o Império Mughal, a possibilidade de a Índia se tornar parte da Civilização Islâmica é uma perspectiva a ser levada a sério.
De todas as principais civilizações delineadas por Huntington, a Civilização Islâmica é a única que não possui um estado central claro. Huntington considera essa uma das razões do conflito.
Desde o colapso do califado otomano em 1918 e a demarcação colonial ocidental de fronteiras nacionais totalmente artificiais no norte da África, no Oriente Médio e na Ásia Central, o mundo islâmico está sem centro. Do ponto de vista histórico, Egipto, Turquia, Iraque e Arábia Saudita rivalizam entre si como nação artificial que, de uma forma pré-nacional e pré-moderna incomparável, teve a legitimidade de abrigar os Khalifa (ou autoridade soberana) da Ummat (a comunidade islâmica mundial).
Quando vistos em termos de poder militar e económico, o Paquistão, a Malásia e a Indonésia são os actores geopolíticos mais significativos no mundo islâmico. No entanto, para o objectivo de assumir a liderança de uma esfera civilizacional islâmica, nenhum desses países está tão bem posicionado quanto a República Islâmica do Irão em termos da sua herança histórico-cultural, capacidade industrial e localização estratégica.
Do ponto de vista estratégico global, o Grande Irão salvaria o Ocidente, a Índia, a Rússia e até a China (que tem um problema muçulmano cada vez mais sério) da perspectiva de um mundo do final do século XXI definido por um califado sunita global que governa uma população humana demograficamente dominada pelos muçulmanos. Essa é a responsabilidade histórico-cultural do Irão e apenas se os próprios iranianos a admitirem as grandes potências mundiais poderão reconhecer que a a aceitação do Irão desse dever titânico é para o bem de toda a humanidade. Esta poderia ser a chave para o ressurgimento do Irão como uma super-potência global. O Irão foi destinado a ser o Leviatã entre as nações.
3. As potências ocidentais não deveriam subestimar a história do Irão e a coexistência contemporânea de diferentes formações civilizacionais, nem deveriam continuar a olhar para o resto do mundo como o olhavam os antigos colonizadores. A falta de cultura muito generalizada entre as camadas dirigentes e os quadros da administração militar dessas potências é um risco sério para a Paz e para as gerações vindouras.
- 1. Stephen Lendman vive em Chicago e é investigador do Centro para a Investigação em Globalização. Ver a página de Lendman, aqui.
- 2. John Bolton, 1994, Global Structures Convocation, New York, USA. Ver em OpenDemocracy.
- 3. Uma curta mas significativa biografia de Bolton, Pompeo e Mike Pence pode ser encontrada aqui.
- 4. Jason Reza Jorjani escreveu Iranian Leviathan, publicado por Arktos Media. O sítio Arktos agrega pensadores de uma nova direita.
- 5. Leviatã ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiástico e Civil, comummente chamado de Leviatã, é um livro escrito por Thomas Hobbes e publicado em 1651. O título refere-se ao Leviatã bíblico. O livro diz respeito à estrutura da sociedade e do governo legítimo e é considerado como um dos exemplos mais antigos e mais influentes da teoria do contrato social. Na obra, escrita durante a Guerra Civil Inglesa, Thomas Hobbes defende um contrato social e o governo de um soberano absoluto. Hobbes escreveu que o caos ou a guerra civil – situações identificadas como um estado da natureza e pelo famoso lema bellum omnium contra omnes (eterna luta de todos contra todos) – só poderia ser evitado por um governo central forte. É frequentemente considerada uma das mais influentes obras jamais escritas do pensamento político.
- 6. «Choque de civilizações» é uma teoria proposta pelo cientista político Samuel P. Huntington, segundo a qual as identidades culturais e religiosas dos povos serão a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria. A teoria foi originalmente formulada em 1993, num artigo da revista Foreign Affairs chamado «The Clash of Civilizations?», como reacção ao livro de Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (1992). Huntington expandiu posteriormente a sua tese num livro de 1996, chamado The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (O Choque de Civilizações e a Reconstrução da Ordem Mundial). A expressão foi usada pela primeira vez por Bernard Lewis no artigo «The Roots of Muslim Rage» («As Raízes da Ira Muçulmana»), publicado em Setembro de 1990 na revista The Atlantic Monthly.
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