No mais recente número da revista Cahiers du Cinéma, Claire Allouche analisa «O Brasil não pode parar», um anúncio de 90 segundos produzido pelo governo de Jair Bolsonaro no final de março passado. O vídeo dava voz à política anti confinamento, imposta ao arrepio das orientações da Organização Mundial de Saúde e contra a vontade de grande parte da sociedade brasileira. Como recorda Allouche, dois dias após o lançamento deste anúncio nas redes sociais do governo, um tribunal federal do Rio de Janeiro determinou que Bolsonaro parasse aquela campanha, pelo que foi interrompida a sua divulgação.
No entanto, «O Brasil não pode parar» ainda se pode ver em vários sítios da Internet e, como Allouche muito bem notou, apresenta uma visão muito diferente do povo brasileiro daquela habitualmente veiculada, por exemplo, pelos vídeos de campanha de Bolsonaro. Às massas brancas daqueles comícios eram agora contrapostas imagens de brasileiros predominantemente negros. Esta visão da população do país faz lembrar, afirma Allouche, a dos vídeos de campanha de Fernando Haddad, incluindo o extraordinário «É o Brasil feliz de novo!», feito após a libertação de Lula da Silva, ou então a do anúncio do Banco do Brasil censurado por Bolsonaro em abril, em que se exibia não apenas a diversidade racial, mas também sexual da sociedade brasileira.
«o que está realmente parado é este Brasil e os brasileiros mais desprotegidos cujas vidas o governo de Bolsonaro não para de ameaçar diariamente através da sua inação face à pandemia da COVID19, prometendo desse modo fechar ainda mais — de uma forma criminosa e genocida — a distância entre o Brasil real e o país imaginado pela direita brasileira»
É necessário aprofundar a análise de «O Brasil não pode parar» para perceber melhor esta aparente «viragem» na representação do Brasil de Bolsonaro. Sigamos Allouche um pouco mais. Em primeiro lugar, é preciso notar que este vídeo é exclusivamente composto por imagens fixas, que são animadas pelo ritmo da narração, pela música, por movimentos de zoom in e por dissolvências entre as fotografias. Além disso, Allouche revela que a origem destas fotografias é o banco de imagens americano Shutterstock, a qual denunciou rapidamente o uso político destas imagens, impedido pelas regras de utilização dos seus arquivos. Podia haver maior contradição, ironiza Allouche, do que apelar ao movimento («O Brasil não pode parar») através de uma sucessão de imagens fixas? Na verdade, a contradição é muito reveladora: o que está realmente parado é este Brasil e os brasileiros mais desprotegidos cujas vidas o governo de Bolsonaro não para de ameaçar diariamente através da sua inação face à pandemia da COVID-19, prometendo desse modo fechar ainda mais — de uma forma criminosa e genocida — a distância entre o Brasil real e o país imaginado pela direita brasileira. A fixidez é frequentemente associada à morte e esta suspensão do movimento deve ser vista, então, como o prenúncio da extinção do Brasil «que não interessa», ou pelo menos da sua condução a uma posição socioeconómica definitivamente subalterna, como sugerem todas as formas de trabalho não-especializado em «O Brasil não pode parar». Não era por acaso que os anúncios da campanha de Fernando Haddad sublinhavam sempre o papel do candidato na abertura da universidade brasileira e o papel desta medida na melhoria das condições de vida de milhões de estudantes e suas famílias.
«É […] especialmente grave o ataque em curso à Cinemateca Brasileira, instituição guardiã da memória do cinema brasileiro, responsável pela conservação e difusão de milhares de filmes que ajudam a contar a história diversa e contraditória do país ao longo dos últimos 120 anos»
A questão de como filmar o povo foi central na história do cinema brasileiro e definidora do movimento do Cinema Novo. O filme «Maioria absoluta» (Leon Hirzsman, 1964) é exemplar a este respeito, pela forma como mostra e como dá literalmente voz aos brasileiros analfabetos que se encontravam, de outro modo, impedidos de participar na vida política do país, ou de ter qualquer controlo sobre as suas próprias e degradantes condições de vida. Muitos outros realizadores e filmes brasileiros continuaram este caminho de inovação formal aliada a representações críticas e hegemónicas da sociedade brasileira, desde os autores do Cinema Novo e do Terceiro Cinema dos anos 1960 e 1970 ao Cinema da Retomada nos anos 1990 ou, mais recentemente, ao trabalho de realizadores como Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, autores do excecional «Bacurau» (2019). É, por isso, especialmente grave o ataque em curso à Cinemateca Brasileira, instituição guardiã da memória do cinema brasileiro, responsável pela conservação e difusão de milhares de filmes que ajudam a contar a história diversa e contraditória do país ao longo dos últimos 120 anos. Fundada na década de 1940, graças ao estímulo e ao trabalho de Paulo Emílio Salles Gomes e aos cinéfilos do Clube de Cinema de São Paulo, a Cinemateca Brasileira tornou-se nas décadas seguintes o maior e mais importante arquivo de filmes de toda a América do Sul. Vítima de desinvestimento estrutural ao longo de vários anos, sofreu em consequência direta vários incêndios de grandes proporções, o último dos quais em 2016, que resultou na perda de mais de 1000 rolos de filmes em nitrato de celulose de mais de 700 obras da primeira metade do século XX. Em 2013, o antigo Ministério da Cultura demitiu a direção da Cinemateca Brasileira que, desde então, se vem encontrando progressivamente enfraquecida de um ponto de vista institucional. Em 2018, a gestão da Cinemateca Brasileira foi entregue à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), num contrato de três anos que envolvia os ministérios da Cultura e da Educação. Recentemente, o Ministério da Educação brasileiro denunciou o contrato interrompendo assim o financiamento da instituição, que já não paga salários há três meses e enfrenta, a curtíssimo prazo, a perspetiva de um encerramento total, anunciado publicamente como eventual «solução» para a Cinemateca Brasileira pouco tempo após a inesperada indicação de Bolsonaro da atriz Regina Duarte para a direção da instituição.
«Trata-se […] de uma estratégia deliberada e sistemática que tem por fim eliminar a memória de todas as representações dissidentes da realidade — e, em particular, as representações dissidentes do povo brasileiro —, sejam elas históricas ou nossas contemporâneas»
Tendo recebido apoios individuais e institucionais de todo o mundo, da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF) à comunidade cinematográfica brasileira (aqui e aqui), a Cinemateca Brasileira e os seus trabalhadores (em greve desde dia 12 de junho) atravessam um momento extraordinariamente difícil com um desfecho imprevisível. Seria um erro, porém, interpretar o desmantelamento da Cinemateca Brasileira apenas como sinal da pouca importância dada à cultura pelo governo de Bolsonaro, ou reflexo da incompetência dos agentes políticos. Trata-se, isso sim, de uma estratégia deliberada e sistemática que tem por fim eliminar a memória de todas as representações dissidentes da realidade — e, em particular, as representações dissidentes do povo brasileiro —, sejam elas históricas ou nossas contemporâneas. Os ataques à história e à memória coletiva de um país inteiro – neste caso, através do ataque ao seu património cinematográfico e audiovisual — são a outra face da reconfiguração do presente aos desejos da direita brasileira.
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