As cuidadas interpretações em Às Segundas ao Sol tornam os protagonistas em centros intensos e irradiantes. Talvez seja incontornável começar por esse Javier Bardem inchado na pele de Santa, um homem revoltado e azedo, sonhador e sonoro, que sobrevive de biscates como tomar conta de crianças. É nele que se reflecte a sensação de que o tempo corre devagar (embora lhes escape) e que o sol os descontrai (embora a tensão nunca desapareça).
Seja como for, ele consegue preservar algum contentamento apesar das dificuldades. Basta deambular pelos estaleiros navais encerrados, ver a ferrugem a correr os cascos, mexer nos seus antigos instrumentos de trabalho, para a melancolia vencer sempre a alegria. Santa é acusado de ter destruído um candeeiro de rua nos protestos contra o fecho da empresa — um elemento narrativo inspirado no processo judicial que os sindicalistas Cándido e Juan tiveram que enfrentar. Acaba por pagar 8000 pesetas pelos danos. Na primeira oportunidade, volta a partir o candeeiro. Assim é Santa.
Numa cena com Lino (José Ángel Egido), Santa fala sobre os antípodas, na Austrália. Diz ele que lá há mais espaço, os rendimentos são mais altos, as pessoas são mais bem humoradas, e o clima é melhor. Explica depois que é por essa razão que lhes chamam «antípodas»: é o contrário da realidade que eles vivem. Nas palavras espirituosas dele: «Lá há trabalho, aqui não. Lá fodes, aqui não.»
Os antípodas servem como imagem da vida que desejavam, o inverso da vida que têm. Mais do que a simples frustração, o que sobressai é ainda a esperança de voltar a ter trabalho e partilhar a intimidade com alguém. A personagem de Santa é a mais destacada, daí lhe caber este discurso. Mas, como veremos, esta figura integra um mosaico humano bastante mais vasto e detalhado.
Não será por acaso que é a Lino que Santa explica os antípodas. Lino é o único que continua a tentar encontrar trabalho, mas os obstáculos que enfrenta demonstram bem por que razão a desmotivação e a desistência estão sempre à espreita. É como se estes trabalhadores já tivessem passado o prazo de validade.
«(...) os obstáculos que enfrenta demonstram bem por que razão a desmotivação e a desistência estão sempre à espreita. É como se estes trabalhadores já tivessem passado o prazo de validade.»
Essa é a constatação cruel a que chegam numa sociedade dividida em classes, onde as pessoas valem muito menos do que os lucros e o trabalho tem muito menos poder do que o capital. Lino veste o fato aprumado, vai a muitas entrevistas de emprego, tenta cumprir todos os requisitos, actualiza os seus conhecimentos, mas as mãos atraiçoam-no, suam, e o nervosismo toma conta dele. Santa acompanha-o em muitos desses momentos. A resposta é sempre negativa.
Jose (Luis Tosar), por seu lado, sofre as consequências sociais e pessoais do desemprego. A relação com a sua companheira, Ana (Nieve de Medina), vai-se tornando cada vez mais difícil, os silêncios vão-se acumulando, os laços vão-se desfazendo. Ela trabalha como operária numa empresa de conservas no turno da noite. Traz para casa o cheiro a peixe, de que não se consegue livrar por mais que esfregue e use produtos anti-odor. Vê o tempo passar por ela e por eles, sem que a sua vida melhore. Sempre que procura uma saída desesperada, por exemplo recorrendo a um pedido de empréstimo bancário, Jose parece sabotar essa tentativa. Ele não suporta o julgamento de outras pessoas sobre a sua situação, num misto de sentimento de vergonha e impulso de auto-defesa. Ela lembra-lhe, aflita: «Olha para nós. Não temos nada. Nem casa, nem filhos, nem crédito! Nada!»
Serguei (Serge Riaboukine) é russo e afirma que era cosmonauta na URSS. Diz que estudou na Academia da Força Aérea Gagarin como muitos pilotos de naves espaciais. Os seus amigos não sabem se é verdade ou não. Sabem pelo menos que a expressão dele passa a sorridente quando fala das estrelas e do espaço por cima deles. Serguei conta-lhes uma anedota típica da Rússia pós-soviética. Dois velhos camaradas do Partido Comunista encontram-se e um diz: «Já viste que tudo o que nos contavam sobre o comunismo era mentira.» O outro responde: «Isso não é o pior. O pior é que tudo o que nos contavam sobre o capitalismo era verdade.»
Rodado em Vigo, o filme reflecte episódios de destruição e deslocalização da produção industrial, no contexto da integração capitalista da União Europeia, centrando-se nos desempregados e nas suas lutas. Numa pequena cidade costeira no norte de Espanha, um grupo de desempregados vive ainda assombrado pelo fecho dos estaleiros navais onde eles trabalharam durante muitos anos. Este acontecimento deixou-os terrivelmente desorientados, condenados a uma triste repetição dia após dia. Em Às Segundas ao Sol (Los lunes al sol, 2002), realizado por Fernando Léon de Aranoa, a vida destes homens é apresentada como um conjunto de cenas em que cada um tem um lugar, inventado, e uma história que criou para si e para os outros, mentindo. O passado de luta para travar o encerramento da empresa continua a emergir de vez em quando. As feridas permanecem abertas. Tudo seria ainda pior se não tivessem o amparo uns aos outros, a solidariedade proletária. O cinema espanhol tem nomes e obras na sua história que permitem perceber de onde vem este filme, a que linhagem pertence: Juan Antonio Bardem de Muerte de un ciclista (1955), Luis Garcia Berlanga de El verdugo (1963), entre outros. De forma mais ou menos militante, estes cineastas foram influenciados pelo neo-realismo italiano. Compreenderam o potencial de riqueza estética e profundidade humana da expressão realista no cinema. Com esta obra, Aranoa insere-se nesta tradição. É o significado dos detalhes dos espaços, dos objectos, dos corpos, e dos gestos. É também a cuidada montagem descontínua, mas fluida e pausada, que vai tecendo momentos desgarrados que se agarram à memória. Inicialmente interessado pela arte da banda desenhada, admirador dos desenhadores Carlos Giménez e Jordi Bernet, o artista foi parar ao cinema por acaso, devido a um erro na inscrição académica. Seja como for, não voltou atrás nem emendou o trajecto. O gosto pelo desenho tem-lhe sido útil para a elaboração de rigorosos storyboards na pré-produção dos seus trabalhos de televisão e de cinema. A sua filmografia cruza a observação social acutilante com a concentração na densa individualidade de cada personagem. O filme anterior de Aranoa, Barrio (1998), já era um sinal dessa opção. Depois de Às Segundas ao Sol, seguiram-se Princesas (2005) e Amador (2010). O primeiro é um drama sobre duas mulheres prostituídas em Madrid que não romantiza a sua situação, com fortes interpretações de Candela Peña e Micaela Nevárez. O segundo é uma comédia sobre a relação de amizade entre uma imigrante peruana (Magaly Solier), que enfrenta severas dificuldades económicas, e um homem acamado (Celso Bugallo). Ambos confirmam a vertente de retrato social da obra que o realizador tem construído. Quanto a Às Segundas ao Sol, trata-se de um projecto que tem raízes históricas concretas. O filme foi rodado em Vigo. A sua narrativa reflecte episódios de destruição e deslocalização da produção industrial no interior e no exterior da Europa, no contexto da integração capitalista da União Europeia. Na cidade galega, este processo foi confrontado com movimentos de massas contra os despedimentos colectivos. O filme centra-se nos desempregados que resultaram dessas lutas e na sua sobrevivência dia após dia. Embora todo o filme tenha sido rodado em Vigo, a primeira sequência, enquanto corre o genérico, é composta por imagens de arquivo dos protestos organizados em Gijón. Depois da manifestação que percorreu as ruas, alguns trabalhadores decidiram criar barricadas com bobinas de madeira e pneus incendiados. A indústria naval é um sector importante na Galiza, particularmente na Corunha e em Vigo. No entanto, a narrativa desta obra inspira-se em factos ocorridos nas Astúrias, outra região de Espanha, em torno dos estaleiros da Naval Gijón. Utiliza, com a liberdade artística e a criatividade dramatúrgica adequadas, episódios da vida de Cándido González Carnero e Juan Manuel Martínez Morala. Trabalhavam os dois neste estaleiro e eram dirigentes sindicais da Corrente Sindical de Esquerda (CSI). Esta organização é uma cisão asturiana das Comissões Operárias (Comisiones Obreras ou CCOO), a maior central sindical espanhola. A CCOO foi fundada em 1976 por sindicalistas do Partido Comunista de Espanha, do movimento operário cristão da Juventude Operária Católica e Irmandade Operária da Acção Católica, e de outros grupos que se opuseram à ditadura franquista. «O drama dos trabalhadores que perderam o emprego costuma ser invisível na comunicação social e na arte cinematográfica.» A CSI desempenhou um papel importante nas lutas reivindicativas dos operários dos sectores naval e metalúrgico nas Astúrias, especialmente em Gijón e Avilés. Cándido e Juan foram condenados a três anos de prisão pelo crime de danos causados a propriedade privada, provocados durante uma das greves na Naval Gijón. Ambos os sindicalistas foram condenados a pena de prisão em 16 de Junho de 2007, após terem participado numa manifestação contra a sua própria condenação pelos danos mencionados. O realismo deste filme é o oposto do naturalismo. Por um lado, sabe que todo o realismo é social. Neste caso, trata-se mesmo de entender a trama que urde uma comunidade de homens e as pessoas que a rodeiam. Por outro lado, entende a narrativa como uma procura do que é difícil de ver, não do que é evidente. O drama dos trabalhadores que perderam o emprego costuma ser invisível na comunicação social e na arte cinematográfica. Apoiado nestas duas formas de definir o realismo, Às Segundas ao Sol faz convergir o retrato no modo como as personagens se testam na convivência e necessitam de conviver para enfrentarem um quotidiano à deriva, ainda com uma réstia de esperança. Estas são as pessoas desempregadas que os lugares-comuns de algum jornalismo simplificam ou ignoram. As estatísticas e os números fazem, de algum modo, esquecer as suas histórias de vida. O valor e a força de Às Segundas ao Sol vêm precisamente do facto de ser uma representação atenta e comovente de quem sofre com o desemprego — da sua partilha, do seu orgulho, da sua melancolia, e do seu riso. Não há destinos adivinhados para estas personagens que vivem em solidão. O seu futuro é incerto e a tragédia está sempre à espreita. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
«Às Segundas ao Sol»: Nem Casa, Nem Filhos, Nem Crédito, Nada (I)
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Reina (Enrique Villén) trabalha como vigilante nocturno num edifício em construção. O facto de ter trabalho afasta-o um pouco dos outros, até pela superioridade que por vezes demonstra em relação a eles, como se eles tivessem escolhido ser vítimas e ele não. Tenta superar esse fosso dando-lhes acesso a um dos pisos para verem à distância o jogo de futebol que decorre no estádio em frente. De qualquer forma, volta e meia, o conflito latente manifesta-se com uma forte agressividade verbal que canaliza o desencanto de todos, cada um à sua maneira.
Rico (Joaquín Climent) abriu um pequeno snack-bar com o dinheiro da indemnização. É aí que todos se reúnem ao balcão. Riem, conversam, e discutem ao fim de cada dia nesta espécie de porto de abrigo onde se encontram aconteça o que acontecer. Neste convívio também participa a filha de 15 anos de Rico, Nata (Aida Folch), que tem uma cumplicidade especial com Santa.
Amador (Celso Bugallo) é o mais velho do grupo e a personagem mais trágica. A sua tragédia espelha aquilo que está na iminência de acontecer a qualquer um deles. Amador desistiu e passa os dias a beber. É notório que se deixou afundar na tristeza. Um dia, Santa e Jose esperam-no à porta do prédio onde vive para verem se está tudo bem. Amador não os deixa entrar e continua a esconder a desgraça em que a sua vida se tornou. Certa noite, Santa tem de o acompanhar até casa, tal é o seu estado de embriaguez, e descobre um apartamento na penumbra, sem água, sujíssimo. A sua mulher partiu, tal como Ana chega a pensar fazer, e a sua única companhia permanente passou a ser o álcool. O seu suicídio não é surpreendente, mas isso não retira nada ao horror da descoberta do seu cadáver.
Às Segundas ao Sol venceu o Festival de San Sebastián. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas da Espanha galardoou-o com cinco prémios Goya em 2003: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor (Bardem), Melhor Actor Secundário (Tosar), e Melhor Actor Revelação (Egido). Foi ainda nomeado para mais três prémios: Melhor Actriz Revelação (Medina), Melhor Argumento Original, Melhor Montagem (Nacho Ruiz Capillas). Nos Prémios da União de Actores e Actrizes, Medina foi reconhecida como Melhor Actriz Secundária e Revelação, Tosar como Melhor Actor Secundário, Climent como Actor Coadjuvante.
As Medalhas do Círculo de Escritores Cinematográficos incluíram Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor (Bardem), Melhor Actor Secundário (Tosar), Melhor Actriz Secundária (Medina) e Melhor Argumento Original. Recolheu ainda dois prémios ACE da Associação de Críticos Latinos de Entretenimento de Nova Iorque: Melhor Actor (Bardem) e Melhor Actriz Secundária (Medina).
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