É quase um lugar-comum dizer que os lugares-comuns são comuns por alguma coisa. Mas o valor que atribuímos a certas ideias consolidadas só funciona no limite da conveniência. É como se o nosso autoconceito vivesse e se validasse nos padrões consagrados pela tradição oral e moral, conforme a circunstância. É o chamado relativismo moral. Não é certo que o resultado do nosso autoconceito esteja, assim, muito perto da realidade. E é nessa eventual fantasia que vamos sobrevivendo, uns mais do que outros, sabe deus como!
A função dos lugares-comuns devia ser, no entanto, sintetizar a experiência civilizacional para evitarmos complicar mais as nossas relações. Ao mesmo tempo, superar os lugares-comuns com uma atitude transformadora, revolucionária, é uma necessidade que devemos sentir todos os dias, para que não fiquemos demasiado agrilhoados a essa tal fantasia que temos de nós e do que nos rodeia. Nem sempre é confortável, mas é importante.
Um dos grandes confortos que temos na vida é a certeza de que somos boas pessoas. Tudo o que fazemos é bem-intencionado. Mas a única circunstância em que repetimos esse velho aforismo de que «de boas intenções está o inferno cheio» é quando nos referimos aos outros. Curioso critério.
As vantagens de olhar para ele em forma de autocrítica eram imensas, mas isso implicaria assumir as consequências das nossas ações e omissões e o valor daquilo que consideramos serem boas intenções. A cobrir as boas intenções, como um manto especular, está sempre a ausência de envolvimento dos outros nos nossos planos. Contamos que o desencadear das consequências esteja protegido pelo sentimento generalizado e público de que somos boas pessoas e que não haja qualquer necessidade de discutir seja o que for.
Um dos exemplos mais esclarecedores destas dinâmicas é o do patrão que, com toda a honestidade, pede aos trabalhadores para sinalizarem a intenção de fazer greve com o único e bondoso propósito de organizar o trabalho. Os trabalhadores têm, claro, de confiar nas boas-intenções do patrão, o mesmo patrão que não aumenta salários porque «isto está difícil para todos», mas recolhe o lucro por ser um direito seu. É a imposição daquilo que entende ser seu por direito, sobre aquilo que é um direito dos trabalhadores. Dificilmente as boas intenções irão sobreviver a este conflito.
«Um dos exemplos mais esclarecedores destas dinâmicas é o do patrão que, com toda a honestidade, pede aos trabalhadores para sinalizarem a intenção de fazer greve com o único e bondoso propósito de organizar o trabalho.»
De resto, a política partidária está repleta de exemplos de bem-intencionados, sobretudo nas correntes social-democratas e liberais. Comecemos pelo sinal mais evidente: o representante partidário que adota para o seu modelo de comunicação a expressão «as pessoas». «As pessoas», que somos nós, são uma entidade abstrata, uma massa que, segundo o messias, tem uma consciência decidida por ele, uma vontade e uma perceção determinadas por ele.
A criatura no papel messiânico «fez tudo o que podia», pois tem sempre em conta «as pessoas». Mas «a realidade» não permitiu. E o que é a realidade para o bem-intencionado? É tudo aquilo que o faz decidir entre a sua agenda e as pessoas, sendo que as pessoas nunca poderão competir com a agenda do bem-intencionado, porque a decisão dele é bem-intencionada. Na política partidária é a isto que se chama demagogia, no seu pior sentido, no sentido da manipulação para esconder uma agenda ideológica, um mapa de opções políticas que serve um interesse diferente daquele que anuncia.
Vamos, assim, aceitar que não há mesmo mais nada a fazer, que quem detém o poder da decisão nada mais pode fazer, que quem está nesta relação de poder com algum aparente ascendente não podia ter envolvido a outra parte e, com ela, tentado uma solução que fosse, de facto, conjunta e que derrubasse outros interesses que não aquele que as massas manifestam como seu.
Vamos acreditar que as boas-intenções são suficientes para a determinação das nossas vidas, das nossas relações íntimas, sociais, culturais e económicas. Vamos tolerar a ausência do confronto, de discussão sobre o que são perspetivas individuais, carregadas de equívocos e autoconvencimento, e viver ao sabor do paternalismo alheio. Sim, vamos viver subjugados às posições unilaterais que escrevem em verso a lápis e gravam a tinta uma narrativa em prosa que justifica sempre as opções do seu autor.
«A criatura no papel messiânico «fez tudo o que podia», pois tem sempre em conta «as pessoas». Mas «a realidade» não permitiu. E o que é a realidade para o bem-intencionado? É tudo aquilo que o faz decidir entre a sua agenda e as pessoas (...).»
E é por isso que, de boas-intenções, está o inferno cheio – esse lugar que simboliza as consequências das nossas opções, mas que raramente nos serve de autocrítica. Porque as boas-intenções são alienadoras da responsabilização e do confronto connosco próprios. Até porque, como sugeriu Sartre, o inferno são os outros.
Para os sociais-democratas e liberais, por exemplo, o inferno são os sindicatos de classe, os partidos comunistas, o movimento de massas e todos aqueles que insistem em não acreditar na reforma das boas-intenções, na moderação e na tolerância com todos os espectros da política.
Ser bonzinho, aos olhos da avó, é suficiente para legitimar as opções políticas do social-democrata e do liberal que se preocupam sempre com «as pessoas». Mas quando cortam na pensão das pessoas, quando recusam aumentar os salários das pessoas, investir e robustecer o Serviço Nacional de Saúde ou taxar lucros extraordinários, o social-democrata e o liberal dão prevalência às contas certas e às exigências, não das pessoas, mas de outros interesses.
E acreditem, isto custa-lhes imenso, nem dormem de noite com a angústia. Acreditem, porque são mesmo boas pessoas.
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