American Crime Story: the People v OJ Simpson é uma série de 2016 sobre um dos casos de tribunal mais mediáticos da sociedade estadunidense. Os seus efeitos na perceção e no discurso da realidade continuam a fazer-se sentir, alheios, talvez, à sua própria origem, como parasitas da opinião pública.
À nossa escala, também tivemos pequenos exemplos dos efeitos que esse mediatismo tem na discussão pública, desde o processo da Casa Pia, passando pelo desaparecimento de Madeleine McCann e acabando na famigerada operação Marquês – todos eles estimulantes de emoções e paixões.
É provável que esses casos também tenham moldado a forma das narrativas com objetivos políticos, conduzindo a opinião pública pelos sinuosos atalhos da demagogia, da exacerbação emocional, pelo impulso do maniqueísmo. Mas em American Crime Story: the People v OJ Simpson não restam dúvidas sobre o papel que o mediatismo do caso teve na redefinição do discurso político e na sua orientação para a relativização da verdade por todo o mundo.
Se o marketing político nasceu bem antes da segunda metade da década de 1990, também é verdade que não tinha atingido aí o seu apogeu e as recentes agências de comunicação política davam ainda os primeiros passos com políticos como Bill Clinton ou Tony Blair. A série vem, por isso, relembrar-nos um momento muito específico que poderá ter contribuído para mudanças significativas na manipulação e subversão da verdade.
Relegando OJ Simpson para um papel quase secundário, fazendo dele uma mera personagem instrumental, os criadores da série concentraram-se em extrair a essência da subversão que forçou um distanciamento dos objetivos da Justiça (se de facto isso existe no sistema judicial estadunidense) e que ajudou a traçar o caminho para aquilo a que mais tarde se chamaria de «pós-verdade». A série assenta, sobretudo, na estratégia das duas equipas de advogados que disputam o resultado do processo: condenar ou não o antigo jogador de Futebol Americano e ator OJ Simpson por duplo homicídio.
Partindo da observação de Maquiavel, de que os fins justificam os meios, o julgamento de um homicídio transformou-se numa discussão sobre «racismo estrutural» e num território de manipulação da opinião pública, onde o poder para deter os meios disponíveis assume particular preponderância. Distrações, manobras de diversão, ataques de caráter, controlo dissimulado dos meios de comunicação, chantagem, desvalorização da prova material e provocação do caos institucional – são estas algumas das ferramentas utilizadas que também inspiraram o discurso político. American Crime Story: the People v OJ Simpson mostra, ainda que involuntariamente, como um caso mediático é também um campo de experimentação das narrativas e do seu efeito na opinião dominante. Como se diz na própria série, o vencedor será aquele que conta melhor a história.
«Distrações, manobras de diversão, ataques de caráter, controlo dissimulado dos meios de comunicação, chantagem, desvalorização da prova material e provocação do caos institucional – são estas algumas das ferramentas utilizadas que também inspiraram o discurso político.»
Como é hábito, estes casos são sempre motivo de estudo pela academia, no seu fétiche pelas técnicas de comunicação e marketing. Serão esses estudos que, mais tarde, irão servir de modelo para a construção de outras campanhas mediáticas, inspiradas pela subversão da verdade e a transformação do debate político num espetáculo onde tudo ganha mais relevância do que aquilo que realmente importa. Promovem-se discussões laterais, com recurso à polémica aparente, ao tremendismo e à polarização fabricada e deixam-se para trás as questões determinantes na nossa vida coletiva.
Nada que nos surpreenda, hoje, mas interessa olhar para estes fenómenos e identificar as técnicas que se introduziram no nosso modelo político para servir um determinado fim. Em American Crime Story: the People v OJ Simpson podemos identificar essas técnicas ao longo de todos os episódios: onde se julgava um homicídio passou a julgar-se a imagem da procuradora responsável pela acusação; onde estavam as provas cabais e irrefutáveis, passou a dominar uma discussão sobre a violência discriminatória e racial; onde estava o raciocínio lógico, passou a reinar a retórica, com a procura da frase sonante e da aliteração que alimenta emoções; onde estava a demonstração de factos, passou-se a introduzir expedientes processuais dilatórios; e onde estava o júri passou a estar um público amplo, mundial, à espera de ser entretido, como diria o filósofo Kurt Cobain.
A perceção que ainda hoje temos do caso entra em contradição com o seu resultado. A velocidade das distrações provocadas por quem detém o poder canalizou a opinião para um território polarizado e moralista – um caos predeterminado, onde se dilui a operação de branqueamento necessária para desviar o rumo da justiça.
Foram estes episódios que inspiraram e inspiram outras campanhas mediáticas e são estes instrumentos que caracterizam essas mesmas campanhas. A ideia da «pós-verdade» não nasceu de geração espontânea e o seu ramal parece, agora, infinito, expandindo-se por praticamente todas as dinâmicas políticas e sociais e degradando o caminho para encontrarmos a essência das coisas.
Se nos processos judiciários esse caminho é o da verdade material, na política esse caminho é o da realidade material. É essa realidade que parece ser o alvo das manobras de distração e da subversão da verdade, que em Portugal, por exemplo, tem os seus responsáveis não apenas no inimigo mais evidente – os projetos reacionários e antidemocráticos, que servem de base a partidos como o Chega ou a Iniciativa Liberal –, mas também em fações mediáticas tomadas por moderadas, que vão alimentando esse caos ao instrumentalizarem conceitos, opções e tendências.
«É essa realidade que parece ser o alvo das manobras de distração e da subversão da verdade, que em Portugal, por exemplo, tem os seus responsáveis não apenas no inimigo mais evidente – os projetos reacionários e antidemocráticos, que servem de base a partidos como o Chega ou a Iniciativa Liberal –, mas também em fações mediáticas tomadas por moderadas (...).»
Tal como em American Crime Story, as preocupações com o racismo, o sexismo, o ambiente, a habitação ou até mesmo a pobreza (não exageremos!) são meras instrumentalizações do discurso que depois não conhece materialização nas opções que se tomaram. Não das que se projetam para o futuro, mas das que se tomaram anteriormente.
Se uns puxam pela proliferação do discurso de ódio, os outros aceitam entrar na espiral distrativa, transformando eleições legislativas em referendos sobre um tema específico ou sobre uma determinada dinâmica. Todas as componentes essenciais da nossa vida coletiva (salários e pensões, serviços públicos, setores económicos estratégicos, habitação, educação, cultura, ambiente, justiça, relações internacionais, etc.) são substituídas pela ilusão de se estar a lutar pela humanidade, no jogo dos bons contra os maus.
Questiono-me muitas vezes sobre o papel de tanta oferta de entretenimento disponibilizada em dezenas de plataformas legais e ilegais. Mas a verdade é que estes objetos fornecem também uma leitura possível de cada circunstância e com eles vamos desenhando um mapa da nossa própria realidade ou da realidade nos interstícios da ficção. American Crime Story: the People v OJ Simpson é um desses objetos que nos ajudam a relacionar aquelas circunstâncias com as nossas e isso nunca é de subestimar.
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