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Cinema e mercado: um problema de consciência

A solução tem sido aquela que o liberalismo impõe: se quiserem salvaguardar o cinema nacional, que sejam os trabalhadores (como eu) a sujeitar-se às más condições laborais e aos baixos salários. 

CréditosGordon Cowie / Unsplash

Nos últimos dias tomei uma decisão difícil. Depois de vários anos de relutância e cepticismo, resolvi entregar-me às evidências, e juntar-me à massa de técnicos que trabalham em publicidade. Como amante e acérrimo defensor do cinema nacional, tal resolução não pôde vir sem uma mão-cheia de inquietações: «E se o tempo dedicado à publicidade entra em conflito com o meu trabalho em cinema?»; ou «E se o modus operandi da produção comercial me afasta do espírito aventureiro que caracteriza a criação artística?»; ou ainda «Poderá o mundo do dinheiro influenciar-me a ponto de pôr em causa a conduta que sempre definiu a minha vida profissional?».

Ora, tais incertezas só se poderão dissipar, com o tempo, no confronto com a minha posição perante a arte. É diante do conflito que o carácter se define.

Estudei para ser realizador, mas é como director de produção que ganho a vida. Na minha profissão, procuro encarar cada projecto com um forte sentido de compromisso, aliado à minha própria visão artística. Felizmente o trabalho não me tem faltado, mas tem sido cada vez mais difícil viver dele.

Com a migração dos conteúdos audiovisuais das salas de cinema para a internet, e com a chegada das multinacionais do streaming ao território nacional, torna-se cada vez mais evidente que o nosso cinema está em vias de extinção. Recordo, por exemplo, a infame «taxa Netflix», proposta no final de 2020 pelo governo de António Costa, e que isenta os gigantes do streaming de obrigações fiscais que poderiam facilmente compensar a queda de receitas que o Instituto do Cinema tem verificado nos últimos anos.

Essas obrigações, que não são mais do que um imposto cobrado pelo acesso privilegiado à rede de consumo (canais de televisão, por exemplo), têm sido aplicadas desde há décadas às empresas do audiovisual privadas que operam em Portugal, para além de serem amplamente aceites no estrangeiro, em países como a França, Alemanha, Itália, etc. Estamos a falar de taxas que poderiam chegar até aos 30% das receitas destas empresas, investidas directamente na criação de obras nacionais.

«Estudei para ser realizador, mas é como director de produção que ganho a vida. Na minha profissão, procuro encarar cada projecto com um forte sentido de compromisso, aliado à minha própria visão artística. Felizmente o trabalho não me tem faltado, mas tem sido cada vez mais difícil viver dele.»

Com a taxa aplicada de 1% que a muito custo se conseguiu – depois de uma manifestação estudantil e diversas audiências parlamentares – o governo português abriu as portas àquilo que mesmo eufemisticamente se poderia considerar um verdadeiro «colonialismo cultural». É o que acontece quando a cultura e o turismo se confundem.

Para além disto, num momento em que estas (e outras) multinacionais avançam na criação dos seus próprios conteúdos em território nacional – produções colossais com estruturas totalmente desproporcionais à nossa realidade – começam a sentir-se os primeiros efeitos de uma asfixia de meios. Por exemplo, na falta de técnicos: com produções internacionais a requisitar dezenas de trabalhadores aos quais se oferecem salários muito acima das possibilidades das produtoras nacionais, o cinema português – em especial as muito pequenas produções, como as curtas-metragens ou os documentários – tem vindo a deparar-se com cada vez mais dificuldades na formação de equipas para os seus filmes.

Ora, a solução para este problema tem sido a mesma de sempre, aquela que o liberalismo impõe: se quiserem salvaguardar o cinema nacional, que sejam os trabalhadores (como eu) a sujeitar-se às más condições laborais e aos baixos salários. É uma escolha nossa, é certo, mas o governo lava as mãos, votando-nos ao abandono.

Enquanto este problema não for solucionado, e não for criada uma conjuntura que permita que as produtoras nacionais possam oferecer condições laborais equiparadas às destas multinacionais, continuarão a ser os trabalhadores a acartar o peso dessa escolha. E os filmes sofrerão com isso. Para dar um exemplo, com os actuais subsídios do Instituto do Cinema e o aumento das tabelas salariais, as produtoras nacionais, para não terem de negociar os salários dos técnicos abaixo do que lhes é devido, têm vindo a optar por duas soluções: reduzir o número de elementos numa equipa (o que acaba por recair nos restantes, forçados a desdobrar-se em múltiplas tarefas); ou reduzir o número de dias de rodagem (o que significa menos tempo de trabalho, sacrificando os trabalhadores; ou filmes mais pequenos ou filmados à pressa, sacrificando as obras).

Mais do que uma vez ouvi de colegas estrangeiros o testemunho daquilo a que ironicamente se tem atribuído o sucesso do cinema nacional: «Vocês fazem tanto com tão pouco!». E enquanto os filmes portugueses ganham prémios pelo mundo e a nossa cinematografia é reconhecida como uma das mais relevantes da actualidade, os nossos dirigentes colhem a fama e não retribuem com as medidas que nos são devidas: mais impostos para as empresas monopolistas, mais receitas para o Instituto do Cinema que permitam mais e melhores subsídios, mais cursos superiores públicos de qualidade que formem mais técnicos, mais apoio à distribuição de obras nacionais, mais protecção laboral e regulamentação do mercado a fim de evitar disparidades que coloquem em perigo a nossa produção.

«Enquanto este problema não for solucionado, e não for criada uma conjuntura que permita que as produtoras nacionais possam oferecer condições laborais equiparadas às destas multinacionais, continuarão a ser os trabalhadores a acartar o peso dessa escolha.»

Quando vemos os sucessivos ministros da Cultura nas antestreias dos filmes ou na apresentação de uma obra em algum festival de relevo, eles parecem ter sempre a mesma expressão ambígua, uma espécie de mistura entre o orgulho e a noção de que nada contribuíram para aquele feito. Mas para quê? Com tantos prémios e menções importantes, deve querer dizer que tudo anda bem na pequena Gália que é o cinema português.

É, pois, neste ponto em que me encontro, acabado de ligar a um colega a quem pedi trabalho. Fui directo e taxativo: «Não tenho conseguido viver das curtas. Se é para fazer publicidade, quero que seja contigo.» Correndo o risco de parecer condescendente para com este tipo de actividade – e que desse risco incorra algum traço de hipocrisia – reservo-me o direito de lutar para que me possa dedicar exclusivamente à profissão que escolhi: a do cinema.

De momento, a realidade não deixa espaço para dúvidas: recorro ao mercado porque o Estado me falhou. Como nota final, recordo as palavras de um amigo que, face à minha resistência e identificado com a situação, se dirigiu a mim há uns tempos: «Trabalho em publicidade, mas tenho regras: não aceito cargos de chefia, não me envolvo artisticamente, e só trabalho na medida em que isso me permite participar em projectos de colegas realizadores, independentemente do financiamento. Nunca recuso um filme de um amigo por questões financeiras. Trabalho com o mesmo empenho, por zero ou mil euros.»

Pareceu-me um argumento justo, ainda que, mais uma vez, seja uma solução a curto prazo. Céptico, pergunto o que sucederá no dia em que as grandes produções internacionais deixarem de estar de passagem e aterrarem definitivamente em território nacional. Nesse dia, as nossas produtoras – incapazes de competir nessa luta desigual – estarão reduzidas a meros produtores executivos de obras estrangeiras, e os nossos técnicos perdidos no meio de gigantescas obras sem nacionalidade.

Esperemos que ainda haja tempo de o evitar.

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