A fixação dos horários de trabalho de forma a promover a conciliação da vida profissional, pessoal e familiar é um princípio consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP). Os tempos de trabalho, os períodos de descanso, o trabalho suplementar e a isenção do horário de trabalho, quanto à sua previsão e definição, estão tipificados na legislação laboral.
A discussão sobre a «desconexão» dos trabalhadores, fora do seu horário de trabalho, seja através de telefone, e-mail ou outra plataforma informática, surge num contexto de cada vez maior utilização de tecnologias de comunicação à distância, em que os meios são fornecidos muitas vezes pela própria entidade patronal.
Existindo actividades que justificam a permanência de contacto em caso de urgência, como no caso dos cuidados de saúde, devido à sua natureza contingente, na generalidade dos casos não é justificável e a própria legislação laboral estabelece os limites dentro dos quais o trabalhador é obrigado a permanecer contactável.
A legislação laboral estabelece o limite diário e semanal à duração do período normal de trabalho, a obrigação da entidade patronal de estabelecer a fixação de um horário de trabalho, os limites relativos ao trabalho suplementar, à organização do horário de trabalho, à mobilidade geográfica e à determinação do local de trabalho.
Define ainda os limites relativos à retribuição do trabalho prestado e ao direito ao descanso, durante o tempo de trabalho e entre jornadas de trabalho consecutivas, assim como o direito à conciliação da vida familiar, pessoal e profissional.
Fica claro na lei que, fora do contrato de trabalho, o trabalhador está livre da obrigação laboral, não possuindo a entidade patrona qualquer poder sobre si.
Incumprimento e desregulamentação dos horários
Após a grande conquista das 8 horas e da fixação do horário de trabalho, a pretexto da «competitividade» e da «flexibilização», existiram várias alterações à legislação laboral que abriram portas à desregulamentação dos horários, como as adaptabilidades ou os bancos de horas, a eliminação de pausas ou o aumento da intensidade e ritmo de trabalho, que põem em causa a estabilidade do trabalhador e a conciliação da sua vida profissional com a sua vida pessoal e familiar.
47%
Percentagem de casos de trabalho levado ao limite da exaustão, segundo um inquérito de 2016 da Associação de Psicologia de Saúde Ocupacional
Também a eliminação de obrigações de informação à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) dos mapas de horários e as restrições à contratação colectiva resultaram na degradação das condições de trabalho e de fiscalização ao cumprimento dos horários.
O problema do incumprimento por parte das empresas dos limites legais do tempo de trabalho ganha no contexto actual uma grande actualidade tendo em conta as denúncias que vêm a público.
19,4%
trabalhadores que laboravam, em 2016, 41 ou mais horas semanais, segundo o INE
E muito se tem questionado no contexto actual: os avanços científicos e tecnológicos não deverão estar ao serviço do crescimento e desenvolvimento do País, da redução do horário e da penosidade do trabalho, transformando as conquistas tecnológicas em conquistas sociais?
Violar o tempo de descanso já é uma ilegalidade
No Parlamento estão esta sexta-feira em discussão três projectos de lei – do BE, PS e PAN –, que procuram consagrar o «dever» ou o «direito» de «desconexão profissional».
A discussão vem a reboque da medida implementada em França no início deste ano – o Código do Trabalho francês passou a prever o «direito à desconexão», embora apenas nas empresas com mais de 50 trabalhadores e sem prever qualquer consequência contra-ordenacional.
Propostas que podem parecer "bem intencionadas", vistas à luz dos direitos consagrados e do que está legislado, poderão contribuir para criar a ideia de que estas formas de intromissão das entidades patronais no tempo de descanso do trabalhador e de auto-disponibilidade dos trabalhadores podem ser consideradas de certa forma legítimas, precisando apenas de ser limitadas e reguladas.
O projecto do BE pretende consagrar o dever de não conexão no período de descanso do trabalhador associado à possibilidade de, por instrumento de regulamentação colectiva, serem garantidas formas de desconexão profissional, para além de o seu incumprimento poder constituir uma forma de assédio.
Já o do PS afirma que a utilização de ferramenta digital no âmbito da relação laboral não pode impedir o direito ao descanso do trabalhador, «salvo com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa», para além da contratação colectiva poder regular a utilização de ferramenta digital durante o período de descanso, férias e dias feriados, defendendo que a violação dos pressupostos é considerada contra-ordenação leve.
O projecto do PAN também estabelece o direito à «desconexão profissional», «sem prejuízo da existência de razões de força maior» e propõe que se constitua uma contra-ordenação grave a sua violação. O CDS-PP apresenta um projecto de resolução onde afirma que a discussão deve ser tida em sede de concertação social.
Propostas que podem parecer "bem intencionadas", vistas à luz dos direitos consagrados e do que está legislado, poderão contribuir para criar a ideia de que estas formas de intromissão das entidades patronais no tempo de descanso do trabalhador e de auto-disponibilidade dos trabalhadores podem ser consideradas de certa forma legítimas, precisando apenas de ser limitadas e reguladas.
Não poderá ser esquecido, num contexto em que é muito fácil proporcionar-se a permanente comunicação, que se deve continuar a cumprir e fazer cumprir a lei e a contratação colectiva no que diz respeito à organização do tempo de trabalho e ao direito ao descanso dos trabalhadores, por um lado, e rever os actuais regimes de flexibilidades dos tempos de trabalho de forma a melhorar a estabilidade da vida dos trabalhadores, por outro.
PCP e PEV focam-se na fiscalização e no cumprimento efetivo do direito ao descanso
Na perspectiva de que a «desconexão» do trabalhador já está consagrada em lei, o PCP e o PEV apresentam projectos no sentido do reforço da fiscalização e do do cumprimento do direito ao descanso e à conciliação da vida profissional com a vida profissional e familiar.
O PCP, no seu projecto de resolução, defende a reposição da obrigatoriedade de entrega dos mapas de horários por parte das entidades patronais à ACT, questão que o BE também propõe no seu diploma, assim como o reforço dos meios de fiscalização da ACT, nomeadamente em relação à organização do tempo de trabalho.
Recomenda ainda o reforço da contratação colectiva e que «a regulação de situações especiais que obriguem à manutenção, por parte dos trabalhadores, de estados de prevenção ou de estados em que estão contactáveis, seja feita no respeito pelos limites aplicáveis à duração do período normal de trabalho, à retribuição do trabalho suplementar, à retribuição do trabalho nocturno e por turnos, e da isenção de horário». Pretende também que estas situações sejam reguladas «no respeito pelos tempos de descanso, pelos intervalos de descanso e pelo direito a férias, bem como garantindo os respectivos descansos compensatórios aplicáveis».
O PEV apresenta um projecto de lei no sentido de qualificar como contra-ordenação muito grave a violação por parte da entidade empregadora do período de descanso do trabalhador, inclusivamente através da utilização das tecnologias de informação e de comunicação.
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