No mundo do scroll, vigora o streaming. O imediatismo leva ao consumo rápido do single, à utilização excessiva do shuffle e a necessidade individual de exposição de um gosto único à criação de playlists. A quantidade leva a que tanto dê que seja um EP ou um LP. O álbum, no seu todo, ficou para trás e é por isso que, em certos momentos, há uns poucos que surgem e nos fazem parar.
O ritmo de vida imposto a quem trabalha faz com que já não seja normal a apreciação e contemplação. O hábito de nos desligarmos do mundo, ficarmos afastados do computador ou do telemóvel, de ficarmos meramente sentados na sala de estar a olhar para uma parede enquanto simplesmente ouvimos um álbum está em vias de extinção.
Acontece que, recentemente, saíram dois álbuns que têm o poder de contrariar este fenómeno que para muitos parece inevitável. Falo do Afro Fado de Slow J e do Xei di Kor de Prétu (por muitos conhecido como Chullage). Cada um à sua maneira traz a sonoridade vinda das suas raízes. Afirmam que África está presente, mas também a presença de África em Portugal. Num Portugal cada vez mais multicultural que não tem uma realidade única, algo que por mais que tentem apagar é impossível de branquear.
Afro Fado - a dimensão individual em Slow J que é uma uma confissão a quem o ouve
Se The Free Food Tape apresentou Slow J, The Art Of Slowing Down afirmou-o. You Are Forgiven confirmou-o e agora, Afro Fado consolida-o. É sobre este último que recai a análise. A capa faz jus ao álbum. A fotografia de Eusébio a cumprimentar Amália Rodrigues rodeada de pessoas nas bancadas do antigo Estádio da Luz para assistir a um jogo é o espelho do álbum e, talvez até, de Slow J. Filho de um angolano e de uma setubalense, é, por sua vez, filho do rio Kwanza e do rio Sado: como tal, filho do semba e do fado. O rapper é a ponte que liga duas realidades que originam o Afro Fado.
O álbum é uma experiência. É daqueles que se deve ouvir de fio a pavio, de modo a que não fique nada por ouvir, mas acima de tudo para que Slow J não fique com nada por dizer. Chega a ser estranho ouvi-lo. Parece que a cada faixa Slow J está a falar com o ouvinte, a confessar os seus estados de espíritos, as suas angústias e a expressar os seus pensamentos mais profundos. Isto dá-nos sensações distintas. Enquanto sentimos esperança ao ouvir Tata, a primeira faixa do álbum; sentimos também nostalgia com Terra; inquietude com Cor da Pele e Nascido & Criados; esperança com Sem Ti; ou tristeza com Origami, a última do álbum.
A verdade é que em praticamente todas as músicas está a totalidade de Slow J, com a tal mistura de culturas e sons de que é fruto, mas também as partes que o compõem a cada momento. Estão as guitarras portuguesas, o ritmo africano, a sensação de não pertencer a lado algum, e a noção que se está a fazer algo. Estão as suas reflexões e a necessidade de a expressá-las a alguém, o que parece um exercício de alguém que tem consciência do quão mau é reprimir emoções.
«'Tou com saudade de uma terra sem nunca lá ter vivido / Onde eu nasci, metade daquilo que eu sou, é reconhecido / A tentar sentir que pertenço, nasceu o sonho, agora eu consigo / Ver a terra prometida, fecho os meus olhos, vejo tão nítido / Afro Fado meu espírito, nas minhas veias é o químico / Minha terra é cor do xadrez, meu cinza brilha tão vívido /Misturo a cor outra vez, mistura ecoa no olimpo», versa Slow J na última faixa do álbum. Esta é capaz de ser a melhor descrição do trabalho que realizou e demorou 14 faixas até estar concluído.
A identidade cultural é bastante vincada, mas pela individualidade do rapper nascido em Setúbal, e que nunca se fixou em lado algum. Afro Fado é África e é fado.
Xei di Kor - Prétu apresenta-nos a herança cultural vivida colectivamente por aqueles que são silenciados
Se no caso do álbum anterior a identidade é vincada de uma forma mais subtil, já Xei di Kor diz-nos, nos primeiros segundos, ao que vem. Na realidade, já nos dizia a carreira de Prétu, mais conhecido pelo público como Chullage, um rapper que nunca desligou o seu trabalho da intervenção política e social, encarando-as como duas esferas complementares.
Se na realidade tudo se transforma, podemos diz que Chullage transformou-se em Prétu, sendo que, na verdade, liberta-se para defender os seus. Não deixou de ser quem é. A língua continua afiada, a intervenção continua presente e a vida continua a ser relatada. O que mudou foi a sonoridade. Ao invés de bombos, pratos e tarola igualmente sequenciados e típico do rap, Pretú abriu espaço a instrumentos presentes em géneros musicais africanos como o gumbé, djambadon ou o funaná, dando-lhes uma inserção nova, fazendo-os acompanhar por sons electrónicos.
Xei di Kor é um grito de revolta, o que pode parecer simples, não sendo. Prétu não renega a questão de classe, fala dos trabalhadores africanos e dos portugueses com origem africana que vivem nos subúrbios das grandes cidades, marginalizados. No quadro que nos é pintado, a denúncia da exploração está presente, assim como o racismo enquanto instrumento utilizado pelas elites económicas e as grandes potências capitalistas para perpetuar a exploração do homem pelo homem num ciclo histórico. Surge ainda a denúncia do pseudo-activismo muito presente nas redes sociais e o activismo simbólico e inconsequente, típico de uma pequena-burguesia que procura apenas dormir bem à noite e não superar o sistema económico que impõe todos os problemas sociais.
A obra é então o reflexo do colectivo, mas não pela longa lista de colaborações - Braima Galissá, Mick Trovoada, Lowrasta, Landim, Scúru Fitchádu, Dino d’Santiago, Cachupa Psicadélica, John d’Brava e Tristany. Isto somente demonstra a unidade e cooperação que Prétu procura. O álbum é também colectivo porque, além das participações, fala-nos de Marega, Claudia Simões, Giovanni, Flávio, Kuku e Mussu, todos vítimas de racismo. Mas é ainda mais. É colectivo porque evoca aqueles que estão a tirar capim nos latifúndios, aqueles que acordam de madrugada para limpar os escritórios das firmas, aqueles todos que vendem a sua mão-de-obra.
A língua é ainda um elemento central em todo o álbum. É tudo dito sem filtros e falado da mesma forma como aqueles que sentem na pele o peso da exploração pela cor da pele. O português está presente, mas também o criolo já tão enraizado no nosso país. É a mistura ouvida por quem apanha os primeiros comboios da manhã e proferida por quem não consegue tirar da cara o cansaço acumulado típico de quem acumula trabalhos.
As denúncias são feitas, sem deixar de ser feito um apelo à acção. Em 1971, o músico e poeta americano Gil Scott-Heron lançou uma música chamada The Revolution Will Not Be Televised (A revolução não será transmitida pela televisão). Em 2023, seguindo as pisadas do icónico Gil Scott, Prétu lança A Revolução Não Vai Ser Um Tweet, a última música do álbum. Nessa música, Prétu reitera essa afirmação, mas vai mais longe ao dizer que «a revolução não vai ser um hit», «não vai ser uma playlist», «não vai ter wi-fi», «não vai ser um Podcast», «não vai ser um hashtag, um stencil num tote bag», «não vai ser o número de visualizações», «não vai ser dum hippie que virou yuppie e inventou uma app», «não vai ter uma location no Google Maps», «não vai ser encomendada na amazon», «não vai ser um evento que o mundo comenta», «Não vai ser on-line», «não vai ser efémera, descartável, não vai ser fake news», «não vai ser uma performance num Zoom», «não vai ser um hijab da Louis Vuitton», «não vai ser o capitalismo Benetton» e «não vai ser ter uma sponsored review com influencers».
Em Xei di Kor, com o tal colectivo, Prétu a conclusão, após tudo o que é dito é somente uma: que a revolução «vai ser na street / A Montar barricadas / Fugir dos drones, das granadas e jatos de água, / Lançadas pelos cães de guarda da elite». O recado foi dado, a mensagem passada e o albúm disponibilizado para a audição, mas sobretudo, para a reflexão e acção.
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