Alguns dos melhores momentos

Breve viagem pela música portuguesa de 2017

Chegamos ao final de 2017 e, entre os habituais doces da época, recolhemos alguns dos melhores frutos do ano, no tradicional balanço para os melhores discos da música portuguesa.

Imagem do vídeoclipe de «Mamá tchiga Portugal», tema do álbum 'Passaporti', de Karlon
Créditos / YouTube

Neste ano em que, finalmente, os músicos puderam ver a taxa de IVA dos instrumentos passar do luxo anterior de 23% para os actuais 13%, a produção nacional continua a dar mostras de uma grande riqueza e diversidade. Qualidade, maturidade e certeza são as palavras do ano para aqueles que seguem a música portuguesa nas suas múltiplas formas.

Os «Heróis No Ar» continuam a crescer apesar de todas as condicionantes que uns meros 0,2% do Orçamento de Estado para a Cultura e a persistência de um quadro de trabalho sem direitos impõem. Mas o que a sua determinação demonstra, na sua desavergonhada coragem de construir um mundo onde se possam encaixar todas as cores da música portuguesa, é que, se mais espaço, investimento público e vontade houvesse para que a sua criatividade crescesse, as sementes que aí estão poderiam desenvolver o mais belo pomar da música, para todos desfrutarem e onde todos pudessem criar.

Muitos são os artistas e discos que aqui deveriam estar, mas é com o desejo que esta lista alimente o apetite pela busca da música de produção nacional que vos trazemos, sem qualquer ordem ou escala de valor, alguns dos melhores momentos da música portuguesa de 2017.

Se não há justiça numa lista de melhores do ano, pelo que de subjectivo encerra e por tudo o que obrigatoriamente deixa de fora, é importante ainda assim recuperarmos o disco Passaporti, de Karlon, que, apesar de editado em Dezembro de 2016, foi neste ano que agora termina que nos inebriou com o sabor doce do hiphop cabo-verdiano, cortado com o sabor amargo da realidade dos subúrbios e dos seus habitantes, da saudade distante das suas ilhas-mãe. Passaporti é um disco que há muito se esperava na produção nacional; actual, real, interventivo e que, a partir das raízes africanas de Karlon, retrata uma realidade bem portuguesa, a dos emigrantes cabo-verdianos e de todo o mundo, obrigados a aventurar-se na antiga capital do império e que persistem em preservar a sua cultura atlântica.

Sara Tavares tem a proeza de transmitir com apenas a sua voz e a guitarra uma das melhores tradições da cultura urbana lisboeta, a da canção negra, da cultura afrodescendente e da África lusófona contemporânea. Fitxadu, de 2017, revela uma cantora e compositora corajosa nos novos caminhos que desbrava, com a mesma riqueza melódica e simplicidade de sempre; uma das melhores vozes, compositora e guitarrista que Lisboa tem neste momento.

Os Beatbombers não são só a maior dupla de DJ nacionais, eles são uma verdadeira empresa de demolições que arrasa pistas de dança, derruba fronteiras e não deixa nada sobre pedra no final dos preconceitos que ainda resistam em relação ao hiphop e à música electrónica. 2017 viu o lançamento do primeiro disco da dupla de DJ Ride e Stereossauro, um disco maduro onde nada é descurado, desde os cortes de scratch, a construção de canções (é verdade, também as há!), até ao poderio do som final e da masterização. Não sendo música de fácil digestão, é com certeza música de grande diversão, que com o passar do tempo e audições atentas deixa descobrir uma imensa babel de referências destes campeões do mundo do scratch, numa clara demonstração de que na música e sobretudo no hiphop não há nenhum som que seja demasiado tabu.

Slow J, é uma das grandes revelações de 2017. Um dos protagonistas do mega álbum dos Beatbombers e oriundo do meio hiphop, Slow J extravasa o universo do rapper/mc para se aventurar em melodias e imagens poéticas próprias de um escritor de canções. Por outro lado, os seus graffitis musicais sopram as cores de tantas latas dispersas que não cabem no rótulo do simples hiphop, antes se inscrevem na «sopa de influências» deste filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa. The Art of Slowing Down é a revelação de uma arte que é tanto maior quanto menor é a nossa capacidade de a definir o que faz de Slow J uma das maiores promessas da colheita de 2017.

 

Língua Franca é uma feira de verbos, metáforas e maravilhas gramaticais que reduzem o Atlântico a um sinónimo de lusofonia. Entre Portugal e o Brasil, sob a bandeira do hiphop, Capicua, Valete, Emicida e Rael dão ritmo às palavras em português no melhor disco de rap de 2017, que demonstra sem papas na língua como somos mais iguais que diferentes.

Os Orelha Negra são já uns veteranos da música portuguesa apaixonada pelo groove e pelo hiphop. Com elementos dos Cool Hipnoise e Buraka Som Sistema e sob a batuta da MPC de Sam the Kid, o super grupo de Lisboa reúne consensos entre público e crítica, e o novo álbum, Orelha Negra IiI, é mais uma demonstração da arte e rigor de que o groove dos Orelha Negra é garantia.

Moullinex é o alter ego de Luís Clara Gomes, artista que há vários anos é presença assídua aos comandos das pistas de dança mais importantes da capital, um pouco por todo o país e por toda a Europa. Formado numa cultura musical onde a electrónica, o disco sound e a inspiração da década de 80 servem o prazer da dança, Moullinex tem construído uma sólida carreira de sucesso ao longo dos últimos anos. Mas é com Hypersex que a música de Moullinex salta para um outro nível.

Mantendo a leveza descontraída da pop como elemento central na sua composição, o novo álbum está recheado de poderosos grooves, simples e sincopados, grandes linhas de baixo e sintetizadores acutilantes, num dos discos mais funky da música portuguesa.

Maduro, dançável e repleto de grandes canções, Hypersex faz de Moullinex um dos mais importantes produtores da música portuguesa. E colaborar neste disco com Georgia Anne Muldrow, que bem trocávamos por dez Madonnas para vir morar para Lisboa, é só a confirmação da sabedoria e do bom gosto de Moullinex, e da importância deste surpreendente Hypersex.

PZ regressa aos discos em 2017 com Império Auto-Mano. E o mesmo é dizer que regressa assim ao conforto do quarto, do pijama e dos seus brinquedos electrónicos, com que constrói naves e exércitos rebeldes contra a conspiração global que ameaça a música pop. É de tudo isto e também de hiphop, tecno, experimentalismo rock e pós de pós-qualquer-coisa que é feito o humor, perdão, a música rebelde de PZ. De tudo isto e de uma das grandes canções do ano, «Anda comigo para a Lua».

Com os pés bem assentes no melhor da soul, rock e do rhythm 'n' blues, os TT Syndicate partem do Porto para uma viagem que nos leva a Memphis e só termina quando o último amante da boa música de dança cair para o lado. Uma pequena orquestra que não teme soltar amarras e fazer o circuito de bares e clubes, de fumo, carrinha e ressacas, de que são feitos os blues, o rock e a história da música. A construir uma reputação alicerçada na melhor tradição negra, os TT Syndicate podem olhar para o passado sem medo, porque sabem que é rumo ao futuro que a estrada os leva até ao palco do próximo bar.

A história dos Gaiteiros de Lisboa iniciou-se em 1991 e, desde então, a música portuguesa ganhou novos heróis e uma referência na boa forma de mergulhar na tradição e de renascer com ela. Revolucionários na forma de reinventar a tradição e responsáveis por toda uma nova geração de fiéis seguidores da música popular e tradicional, estes históricos da música portuguesa (dele fazem parte elementos do GAC-Vozes na Luta, Sétima Legião ou Almanaque) lançaram História em 2017, onde se narra a vida dos Gaiteiros de Lisboa como um verdadeiro ronco do diabo.

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