O Festival Literário Internacional de Óbidos – Folio – tem todas as condições para servir de cenário a uma história de psicopatia e homicídio. Por toda a vila de Óbidos há uma tentativa desesperada de perfeição, uma obsessão com a harmonia das coisas em tons de pastel e sorrisos de realeza.
O som dos passarinhos é substituído pelas vozes melífluas que, aos microfones, conduzem conversas literárias cheias de bonomia e uma vaidade contida que anseia por se revelar debaixo da caxemira. Entre os paralelos e as casinhas castiças, uma bicicleta inútil com um cestinho com livros indiferenciados completa esta complexa estética das vidas simples. Só um coração sem qualquer maldade não veria aqui um psicopata a emergir.
O Folio não é só um exemplo de como o turismo se transformou na única alternativa de muitas localidades. O festival demonstra bem como a cultura, trabalhada enquanto entretenimento, pode ser um produto turístico com tanto valor como o chocolate e a ginja. O produto que está ali à venda não é, contudo, a literatura. Em Óbidos vende-se um sonho de pertencer a um mundo literário, passear no meio de escritores e editores, críticos, jornalistas e outras personalidades que preenchem o espectro desse imaginário de sofisticação e vanguardismo intelectual. A aparência do ser culto constitui-se como um imperativo moral e um gesto necessário de pertença.
«Em Óbidos vende-se um sonho de pertencer a um mundo literário, passear no meio de escritores e editores, críticos, jornalistas e outras personalidades que preenchem o espectro desse imaginário de sofisticação e vanguardismo intelectual.»
Há uns anos, a propósito da chacota com a forma de falar de Jorge Jesus, Manuel Sérgio dizia que há no mundo intelectual uma certa sobranceria, um complexo de superioridade, muito semelhante ao dos aristocratas, como se a intelectualidade lhes estivesse no sangue. A consequência disso é um julgamento público das capacidades intelectuais e cognitivas das pessoas que não partilham a mesma condição e a criação de uma divisão cujos critérios são, essencialmente, classistas.
Apesar da total ausência de confronto no mundo literário (se queremos polémicas temos de ir às páginas da Vértice dos anos 50 e 60), há conceções de vários assuntos que saem de festivais como o Folio que necessitam urgentemente de uma análise crítica e de discussão. Naqueles espaços existe uma espécie de pacto de não-agressão, para não ferir suscetibilidades e para parecermos todos muito civilizados. Provocar uma discussão, entrar em desacordo frontal, é quebrar aquela harmonia e desestabilizar aquele sistema de relações públicas, dependente, que tenta sobreviver num país pequeno e periférico. Mas, sem este confronto, corremos o risco de agravar ainda mais os problemas de acesso à cultura. Há determinado tipo de ideias que, não tendo qualquer contraditório, se disseminam e criam clivagens socioculturais de difícil reversão.
Veja-se, por exemplo, este texto de Paula Perfeito, apresentado no Folio a propósito do projeto literário Bode Inspiratório. A certa altura, a jornalista conta que em conversa com o filho disse que «quando escrevemos com erros, significa que pensamos mal». A facilidade com que isto é dito sugere-nos que esta ideia lhe parece consolidada, comprovada, certamente pela profunda análise social feita a partir da relação entre a ortografia e o processo cognitivo.
Este fetiche com a ortografia não nos é estranho, claro. Já assistimos a algo parecido nas discussões sobre o acordo ortográfico (que permanecerão mesmo depois do apocalipse). Em primeiro lugar, temos a ortografia como o fim último da expressão escrita. Depois, temos uma relação entre pensar mal e ser ignorante, o que nos leva a perguntar: o que é pensar mal?
Consigo imaginar uma dezena de razões para as pessoas darem erros ortográficos (ou até gramaticais, que são bem mais frequentes e menos percetíveis). Entre a dislexia e as várias circunstâncias do acesso à educação, tenho alguma dificuldade em fazer a associação implacável de Paula Perfeito.
Considerar que dar erros na escrita é um sintoma de mau pensamento é o mesmo que tratar o analfabetismo como uma falha do caráter, uma inevitabilidade moral. Essa conclusão não é só um erro de análise. Ela reflecte uma posição de classe, mesmo que sem consciência – a posição de quem vive alheado da realidade dos outros.
Há muitos anos, era eu um adolescente, entrei com um amigo numa livraria no Porto, frequentada por bastantes operários da zona. Enquanto procurávamos qualquer coisa que nos interessasse, uma mulher de bata e chinelos entrou na mesma loja, dirigindo-se à caixa e perguntando à livreira por um disco ao vivo do José Mário Branco. A mulher jurava que havia um disco ao vivo chamado Remendos e Côdeas, como a canção de 1978 de A Mãe.
A discussão envolveu uma troca de argumentos sobre censura e sobre a importância de o disco se chamar Remendos e Côdeas. Não me recordando bem da conclusão, lembro-me sim de uma mulher destemida a discutir com uma livreira sobre assuntos que na altura eu julgava só estarem reservados a uma elite. Imagino que aquela mulher não tivesse nenhum doutoramento em cultura popular contemporânea, mas a forma como expressou as suas ideias, o caráter revolucionário das suas ideias, é ainda um dos momentos mais marcantes da minha formação enquanto indivíduo.
«Há muitos anos, era eu um adolescente, entrei com um amigo numa livraria no Porto, frequentada por bastantes operários da zona. Enquanto procurávamos qualquer coisa que nos interessasse, uma mulher de bata e chinelos entrou na mesma loja, dirigindo-se à caixa e perguntando à livreira por um disco ao vivo do José Mário Branco. A mulher jurava que havia um disco ao vivo chamado Remendos e Côdeas, como a canção de 1978 de A Mãe.»
O que falta nestes festivais de literatura é aquilo que falta em praticamente todo o setor da cultura: o acesso de todos à criação, produção e fruição cultural. O Folio, como as Correntes d' Escrita, e outras iniciativas da família, estão feitos para um nicho. Neles não vemos uma única área onde se procure ouvir a classe operária sobre cultura.
Mas, a literatura não se faz sem a classe operária. Ela está, aliás, presente em toda a sua história, mesmo que subentendida, e sobretudo no seu processo de produção. Acredito que sem a sua presença, que não é nem pensada nem estimulada, se torne mais fácil simplificar estereótipos e tirar conclusões, que acabarão validadas pela anuência desse mesmo nicho. Porém, não se pode ignorar o caráter proletário desse processo de produção, nem deixar de envolver os seus protagonistas numa programação sobre cultura.
Sabemos, porém, que a necessidade do turismo, visto da perspetiva do capitalismo, dita que o sucesso de uma iniciativa está dependente da captação do «público-alvo» e da promoção de uma «experiência» que «inspire» os «clientes». É a cultura num parque de diversões que muda de cenário de quatro em quatro meses, conforme o tema – hoje, mundo dos livros; amanhã, aldeia do chocolate.
Não sei quando regressarei a Óbidos. Mas não minto se disser que me assusta um aglomerado de tanta gente perfeita, tanto cenário de ficção policial em pequena vila castiça. Sinto-me bem mais seguro nas imperfeições, nos «erros» e nas contradições da realidade.
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