Há um fantasma que assombra as nossas casas: a televisão. Horas e horas de inutilidades, que têm a utilidade de destruir a realidade para a reconstruir como um mundo estandardizado que, com eficácia crescente, prega a liberdade de escolha cerceando despudoradamente essa liberdade com uma oferta que objectivamente promove a despersonalização e a passividade.
Nos pacotes que os operadores oferecem em mais de duzentos canais é uma raridade encontrar algo que vitamine o pensamento. Os nacionais são aquela maravilha das manhãs e tardes de programas descartáveis, que embalam milhares de pessoas com banalidades embrulhadas em recreações patéticas.
Os horários ditos nobres são ocupados por centenas de horas semanais em que umas dezenas de especialistas se atropelam repetindo sisudos argumentos sobre futebol como se futebol fosse sinónimo de desporto e o futebol fosse aquilo que eles mastigam.
O horário sobrante é ocupado com noticiários e programas de opinião em que os comentários sobre a actualidade económica, política e social se submetem ao pensamento único dominante. As derivas e diferenças que capciosamente os pontuam não disfarçam esse seu alinhamento sem reservas.
De quando em quando, nesse deserto, aparecem raríssimas excepções muito excepcionais, passe o pleonasmo, para mimar um pluralismo inexistente. No seu todo é o triunfo da cultura de divertimento que, como Michael Ventura escrevia em 1985, «marca uma paragem nos valores. (…). Poderá mesmo dizer-se que nos conformamos e entregamos a essa prática com alívio. Um vazio de valores que estamos fatigados de viver, mas cuja ausência nos alarma, enquanto vemos nos ecrãs outros viverem de modo mais interessante que nós, no que é a vida americana para a grande maioria».
A Warner Communications, a primeira grande sociedade das indústrias de divertimento, no seu relatório anual de 1977 anotava: «Divertir-se tornou-se uma necessidade como comer ou vestir.»
Explorou com êxito essa área de negócio que muito convinha para promover o imobilismo social. O seu exemplo e acção multiplicou-se com outros protagonistas, dando origem a inúmeras empresas, desde há algumas dezenas de anos estão em processo de concentração.
O resultado esperado e alcançado é o já referido processo de despersonalização e de passividade. Um pântano em que a esmagadora maioria se passeia na vida como a personagem feminina de Pedro, o Louco de Goddard a deambular à borda do mar: Que posso fazer? Não sei o que fazer?
O divertimento é necessário e positivo se for inteligente. A vida de qualquer pessoa tem sempre muito mais de romance de cordel do que de drama shakespereano. Ainda bem que assim é para não nos condenarmos a um insuportável desequilíbrio psicológico.
Há é que saber escolher os romances de cordel, excluir os que nos são impostos. Que pode fazer? Desligue a televisão!!! Levante-se! As telenovelas, as de ficção e as reais, que anda a seguir daqui a oito dias continuam sem sobressaltos de maior. Por cá continua o pingue-pongue de exclamativas declarações políticas que logo se esvaziam. Preparam-se os ringues para o próximo grande espectáculo, os duelos Dupont/Dupond para ocupar o leme do PPD/PSD, sejam em directo ou treslidos pela chusma de opinadores de serviço.
É a diversão da política, do que deveria ser a política, a que trabalha para melhorar as condições de vida das pessoas. Desligue a televisão! Vá ao cinema ver Django, sobre a vida desse fabuloso guitarrista cigano que escapou ao holocausto de quinhentos mil ciganos franceses e que, com dois dedos paralisados por acidente, deu um novo impulso a esse instrumento no jazz.
Ou vá ver Elis para redescobrir Elis Regina, essa voz que assombrou a música brasileira vivendo intensamente à beira do abismo por onde acabaria por cair.
Ou veja Al-Berto, um dos mais singulares poetas portugueses do séc.XX que começou por querer ser artista plástico antes de descobrir o poder das palavras. Há mais cinema, em várias salas por todo o país.
Se ainda não viu não deve deixar de ver A Fábrica do Nada, uma história bem actual do mundo do trabalho, em que os trabalhadores enfrentam a retaliação dos patrões quando se opõem ao roubo das máquinas e matérias-primas para deslocalizar a produção.
Uma história que se pode transpor para outras situações que estão sempre a acontecer. Desligue a televisão. olhe para o seu lado esteja onde estiver em Portugal, de certo encontrará um motivo que o liberte do poder hipnótico do pequeno ecrã.
Leia ou releia Sibila e Vale Abraão de Agustina Bessa-Luís, agora reeditados. Agustina é uma escritora desenquadrada do politicamente correcto e que, em cada romance, exige leitores difíceis como toda a boa literatura determina. Leia para seu prazer com a esperança que outros bons escritores portugueses a viver no limbo do quase esquecimento sejam reeditados.
Por Sibila vá ao Museu de Arte Antiga ver a pintada por Velásquez, a grande pintura não sofre desgastes. Desgastes vai descobrir nos trabalhos de Almada Negreiros, propostos no livro Almada Negreiros. Um percurso possível de Maria Antónia Maia, um roteiro da sua obra pública.
Apesar de vários sinais preocupantes da usura do tempo e do desleixo na sua manutenção serem visíveis em várias das obras, é uma viagem a realizar que complementa a exposição que esteve na Fundação Gulbenkian.
A finalizar a correria por estas notas rápidas, sente-se e ligue a televisão. Sintonize, no domingo às 21h, a RTP2, para ver «História a História-África». É o primeiro episódio de uma série documental de treze sobre a história colonial portuguesa em África.
Os mitos da excepcionalidade da colonização portuguesa, do seu paternalismo compassivo para com os colonizados por via dos brandos costumes, são postos em causa nessa série dedicada aos tempos mais recentes do colonialismo português em África, desde finais do séc. XIX.
A realização é de Bruno Moraes Cabral, o autor é o historiador Fernando Rosas. Debate-se o luso-tropicalismo que alimenta nostalgias coloniais, as fantasias dos bons colonos que são sempre desmentidas pela realidade.
A expansão portuguesa foi desde sempre marcada pela violência. Logo nos seus primórdios, Afonso Albuquerque na India fazia exibir orelhas e narizes cortados aos autóctones para aterrorizar quem tivesse a veleidade de se lhe opor.
Em África os portugueses escravizaram e deportaram mais de seis milhões de negros. A história da colonização portuguesa é uma história de violências comparáveis, à nossa escala, com as perpetrados pelas outras nações colonizadoras.
Ainda na televisão tem outra série interessante com filmes portugueses. Todas as terças-feiras às 22h, na TVCine 2, um Especial Documentários Portugueses. Cinema que não se vê nos circuitos comerciais. Desligue a televisão, mas não seja radical, uma vereda sempre perigosa.
Por documentários, prepare-se para a 15.ª edição da DocLisboa. Começa na próxima 5.ª feira, na Cinemateca, na Culturgest, nos cinemas São Jorge e Ideal. Consulte o programa para estabelecer um roteiro.
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