É mesmo assim que o dia começa. Dirigimo-nos à estação do comboio do Rossio, onde todos os dias milhares de trabalhadores e estudantes da linha de Sintra se deslocam pendularmente entre a capital e o subúrbio infinito. Mas desta vez não vamos apanhar o comboio. Vamos apenas visitar os Painéis. O segurança, prevenido e conhecedor da lei, sabe que tem de deixar entrar sem bilhete todos quantos queiram visitar apenas o cais e aquele conjunto artístico e sorri-nos, com eficácia e uma ponta de orgulho.
Por instantes esquece-se das multidões enlatadas cujo direito à cidade depende do passe social e do Lisboa Viva (viva?) e recorda-se de que parte do seu trabalho também é ser guardião daquela arte que conta a história de Lisboa, e a história de Portugal. Mas uma história pintada por um pintor-visionário, alguém que resumiu a nossa história destacando não as glórias imperiais nem as imperiais patifarias, mas os sonhos dos poetas.
Da lenda da fundação da cidade por um S. Vicente transportado numa barca voadora, passeando por um S. António medieval numa Lisboa de amarelos da Carris, deambulando por Camões, Francisco de Holanda, Herculano, Garrett e Pessoa, está lá tudo, onírico e instigante. Com a alma cheia decidimo-nos a apanhar mesmo o comboio.
Aquele conjunto de painéis de azulejo sempre pareceu uma banda desenhada e isso deu-nos vontade de ir à Capital. Capital da Banda desenhada, bem entendido: Amadora City, cuja Bedeteca pode ser visitada no piso 2 da Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos, de terça-feira a sábado, das 10h às 18h.
O acervo desta Bedeteca é riquíssimo, ainda para mais agora que conta com o acervo de milhares de fanzines da colecção que o Mestre Geraldes Lino generosamente ofereceu. É a isto que eu chamo património! A visita tem ainda outra justificação: está patente até 26 de Agosto uma exposição de obras de Augusto Trigo e Jorge Magalhães, autores bem familiares para quem foi alfabetizado através da revista Tintim e catequizado para sempre pelo Vasco Granja. Uma iniciativa da Bedeteca e do Clube Português de Banda Desenhada. Outra maravilha!
Saímos da Bedeteca e apressamo-nos. Dirigimo-nos a outra Utopia realizada, tudo mais ou menos perto, que a cultura não é para nos cansarmos: Estes dias a Associação Moinho da Juventude promove o Kova M Festival, o verdadeiro festival de Verão, na Cova da Moura – onde é que havia de ser? –, com danças africanas, debates, muita música da boa, gastronomias, workshops variados, teatro do oprimido, pois claro, que não andamos aqui para ornamentar a vida, mas para a transformar.
Depois de saudar o enorme graffiti representando Martin Luther King, com a alma cheia, regressamos ao comboio. No comboio pomo-nos a ler O Deputado da Nação, de Manuel da Silva Ramos e Miguel Real, sátira contundente dos anos da troika recentemente publicada por estes dois heróis da escrita. Tenho de procurar uma comunidade de leitores que escolha este livro.
Talvez os excelentes organizadores da comunidade da Biblioteca do Feijó lhe queiram pegar (reúnem sempre no terceiro sábado do mês), ou os imprevisíveis tertuliantes dos Meninos da Avó, tertúlia de Sintra, que reúne nas últimas quintas-feiras de cada mês. Afinal, o genuíno prazer solitário da leitura é muito multiplicado pela descoberta colectiva dos seus sentidos. É ver na internet, que isto hoje sabe-se tudo!
Como tenho um aniversário, ponho-me a deambular pela baixa para fazer tempo. Vou tirando umas fotografias a algumas inscrições epigramáticas que vou lendo nas paredes, como aquela rima que diz «A Arte de Caber em Toda a Parte» encaixada num vidrão. Um dia destes devia organizar-se um passeio cultural para ler esta sabedoria urbana.
No Chiado, a vender junto à Brasileira, encontro o grande pintor e ilustrador Délio Vargas a quem compro um magnífico acrílico, pintado a espátula, representando uma paisagem feérica. Aproveito para levar também um desenho de um animal mitológico, a tinta-da-china sobre cartão. Recomendo uma visita ao Délio que faz mais parte da paisagem poética do Chiado e Rua Augusta que os cafés gourmet que agora pululam. Se tivesse tempo ainda fazia o circuito dos alfarrabistas, mas caminho com o Délio e entro apenas no Bernardo Trindade, na Rua do Alecrim, onde compro a bíblia do galeguismo, Sempre em Galiza, do Castelao, o grande político debuxador que teve de se exilar na Argentina quando os franquistas fizeram das suas (e fez este Julho 80 anos).
Afinal tenho de estar preparado para receber Santiago, que chega a dia 25 de Julho, e com ele a promessa de uma Galiza mais encontrada e reconciliada consigo própria. Ainda encontro um livro do Bocage, de quem este ano se assinala 250º aniversário, e folheio-o deliciado. Tenho de ir a Setúbal, ao Centro de Estudos Bocageanos perguntar ao Daniel Pires pelo programa do Congresso evocativo, no Outono.
Vou aproveitar Agosto para trabalhar mais e melhor. Acho que já não tenho férias desde o 4 de Agosto de 1578 quando o Sebastião ficou em Alcácer. A ver se me lembro de nesse dia reler o Encoberto da Natália. Não ligo para efemérides, mas adoro bons pretextos.
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