Não sou a melhor pessoa para falar da vida e obra de José Saramago. Simplesmente porque não é de todo o tema sobre o qual me debruço habitualmente. Contudo, visto que, de forma muito mais pobre, participo em alguns dos ofícios que nos trazem aqui hoje1, nomeadamente o cinema e a escrita, aceitei o convite para vir debitar umas palavras que, com algum esforço, se podem enquadrar.
Vivemos tempos que passam por várias etapas de lavagem: desde o capitalismo ser lavado para verde, ao enxaguamento do sistema com perfumadas águas elogiosas, até à forçosa centrifugação que separa os crimes do imperialismo. Já se ouviu por aí dizer até que o statu quo actual é o socialismo, grande raiz de todos os males.
Dizendo respeito a José Saramago, prestigiado autor que dispensa apresentações, também o tentam empurrar pela máquina-de-lavar adentro, lavando a obra para lhe retirar o homem, e separando o homem do comunista que era. Pois bem, ao arrepio de todas essas tentativas, suspeito porque é um solo que também me é comum, afirmo a impossibilidade de desligar todos esses elementos. Se é evidente que um livro para ser escrito necessita de mãos que o façam, óbvio também é que sem um cérebro os dedos não mexem. E, se a massa cinzenta foi tingida de vermelho pelo próprio, quem são os outros para lhe tirarem a foice e o martelo das mãos com as quais escreveu?
«E, se a massa cinzenta foi tingida de vermelho pelo próprio, quem são os outros para lhe tirarem a foice e o martelo das mãos com as quais escreveu?»
José Saramago afirmou, numa entrevista, que observava um mundo terrível, um mundo que podia ser muito melhor, mas onde reina a tirania, a exploração do homem pelo homem, e que foi no Comunismo que encontrou a forma de participar na luta contra esse estado de coisas – ainda hoje evidente apesar de todas as tentativas de encobrimento. A sua maior participação na luta traduziu-se em várias línguas e ganhou um Prémio Nobel. Galardão que se entalou no âmago de anti-comunistas da sociedade em geral e autodeclarados concorrentes do mundo literário.
A obra de Saramago é marcada por uma análise da natureza humana. Por vezes marcada pelo realismo. Outras vezes, através de hipóteses desenvolvidas hiperbolicamente até um extremo que permite dissertar acerca dos comportamentos humanos perante a adversidade, dando ao leitor ferramentas para pensar o mundo em que vive. É o caso do Ensaio Sobre a Cegueira ou As Intermitências da Morte. E também do conto em que se baseia o filme Embargo.
A literatura em geral, e a de Saramago em particular, através da criação de situações e personagens, consegue comunicar de uma forma que, por exemplo, a filosofia não consegue. Abordo a filosofia devido ao meu defeito de formação (académica). Esta disciplina pretende explicar o real através de categorias universais, conceitos que servem de ferramentas ao pensar, para que se chegue a mais perguntas em torno de questões que importunam a humanidade há milénios, as soluções estão no percurso e não na meta. No caso da literatura, as mesmas questões são expostas, porém ganham uma forma facilmente transmitida a qualquer ser alfabetizado. Na literatura, onde a realidade é maleável, onde todas as figuras de estilo são permitidas, as contradições podem ser efectivamente resolvidas, e as perguntas respondidas – mesmo que venham no encadeamento de uma multiplicidade de questões.
(Num parêntesis. No cinema, a comunicação adquire uma complexidade diferente, mas não menos rica. Os sons e as imagens em movimento têm um poder expressivo sem igual. No entanto, mesmo que na forma de um guião, necessitam, quase sempre, da escrita que é o embrião do que virá a ser.)
Atente-se que não estou a fazer uma hierarquia entre as várias áreas, estou apenas a realçar, sem qualquer rigor, características que lhes são particulares.
«Há gente neste mundo que deve ter no seu plano de actividades uma quota de embargos e novas alíneas-embargantes a cumprir. Dos embargos gerais, normalmente focados em nações, surgem os embargos individuais»
Então, para terminar, após uma curta des-lavagem a seco, falemos de embargos. Parece-me que nunca os embargos estiveram tanto na moda. Mantêm-se uns antigos e criam-se novos a todo o momento. Há gente neste mundo que deve ter no seu plano de actividades uma quota de embargos e novas alíneas-embargantes a cumprir. Dos embargos gerais, normalmente focados em nações, surgem os embargos individuais – que são, muitas vezes, consequências transfronteiriças. E, à custa de uns poucos indivíduos que detêm o poder de os declarar e fazer cumprir, milhões de pessoas têm a sua vida embargada em diferentes níveis. Populações inteiras passam fome. Guerras escalam para patamares que roçam o fim da humanidade. Os preços dos bens alimentares inflaccionam, empurrando para a pobreza milhões de pessoas. O custo dos combustíveis dita o dia-a-dia do povo. Podíamos ficar aqui horas a fio enumerando os embargos e as consequentes desgraças no mundo, e amanhã teríamos de voltar, porque surgem embargos a todo o momento. Porém, tal como Saramago, há quem não se conforme com o «lado para o qual o mundo gira», e lute todos os dias contra esse despotismo.
Fugi à literatura, e ao «Embargo», do Saramago. Porém, por muito descabidas que sejam as interpretações, transplantações, acrescentos e mutações, as grandes obras servem para nos fazer pensar e debater, e elas não necessitam de lavagens, porque são elas que ajudam a limpar o mundo de ideias que promovem a sua destruição.
- 1. Texto escrito para organizar ideias para uma intervenção de apresentação de uma sessão dos filmes A Maior Flor do Mundo e Embargo, pelo Cineclube de Torres Novas, no âmbito do Centenário de José Saramago.
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