No texto introdutório do filme lê-se: «Este filme apresenta uma experiência na transmissão cinematográfica de fenómenos visíveis. Sem a ajuda de intertítulos, de um guião, ou do teatro.»
O Homem da Câmara de Filmar (Liudyna z Kinoaparatom/Chelovek s kino-apparatom, 1929) de Dziga Vertov1 é um filme-manifesto, uma obra que serve de declaração sobre uma forma de fazer cinema, defendendo-a e mostrando-a. Logo no início, antes da primeira imagem captada por uma câmara, comunica à assistência as bases do seu projeto artístico. O texto que abre este «excerto de um diário de um operador de câmara», como se lê por baixo do título, pretende deixar explícito como a proposta deste filme é diferente da de outros filmes. Essa diferença começa logo nos elementos que rejeitou utilizar na sua produção: não usou intertítulos (exceto nesta comunicação inicial), guião, cenários, e actores.
A introdução escrita continua, focando-se no propósito do filme: «Esta obra experimental tem o objectivo de criar uma linguagem de cinema absoluta e verdadeiramente internacional baseada na sua total separação da linguagem do teatro e da literatura.» Portanto, assistir a O Homem da Câmara de Filmar é entrar em contacto com um cinema ímpar, para o qual esta obra serve quase como modelo. A importância do texto introdutório está, assim, no modo como liga directamente a teoria à prática, e a reflexão à obra cinematográfica.
Trata-se de um dos documentários mais influentes e estudados da história do cinema. Em 2015, o crítico Peter Bradshaw condensou a perspectiva crítica actual: «O espírito do punk pulsa neste extraordinário clássico mudo de 1929 [...]. O ensaio documental experimental de Dziga Vertov continua fascinante depois de todos estes anos, tão potente quanto um fragmento exposto de sódio. [...] Este filme é visivelmente animado pelas possibilidades do novo meio artístico, repleto de ideias, cheio de energia […].»
Estreado em 1929, fruto do período mais inventivo do cinema soviético, O Homem da Câmara de Filmar permanece uma obra fundamental para entendermos o cinema como uma arte que pode captar, revelar e transfigurar a realidade. A visão torna-se ágil, acrobática, e o cinema aproxima-se da magia. Combina técnicas cinematográficas criativas e complexas que mostram o dia-a-dia do povo soviético como uma aventura em que o elemento humano é valorizado pela máquina, desde logo através da câmara de filmar. Foi filmado nas cidades ucranianas de Kyiv, Carcóvia e Odessa, com filmagens adicionais do Teatro Bolshoi em Moscovo. Os diferentes locais podem passar despercebidos porque o filme assume-se como uma crónica esfuziante de uma grande cidade, composta a partir de imagens de várias cidades – depois das chamadas sinfonias urbanas de Alberto Cavalcanti e Walter Ruttmann sobre Paris e Berlim em Rien que les heures (1926) e Sinfonia de uma Capital (Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, 1927). A ideia original partiu do diretor de fotografia Mikhail Kaufman, o operador de câmara que vemos no ecrã. O cineasta Dziga Vertov desenvolveu a ideia até a transformar num verdadeiro manifesto.
A união entre as máquinas e os seres humanos é um dos temas significativos do filme. O conceito de cine-olho aproxima o olho mecânico do olho humano, mas, ao mesmo tempo, afasta-o, porque o primeiro vê sem restrições espaciais e temporais. Nesta visão, esta obra permite que a máquina expanda e refaça a perceção da humanidade, contribuindo para o seu progresso. Além de filmar, a maquinaria é filmada. Na altura em que o filme foi produzido, as máquinas ganhavam uma importância crescente na produção industrial de bens, noutros sectores do trabalho facilitado por avanços tecnológicos, e até no lazer.
«A união entre as máquinas e os seres humanos é um dos temas significativos do filme. O conceito de cine-olho aproxima o olho mecânico do olho humano, mas, ao mesmo tempo, afasta-o, porque o primeiro vê sem restrições espaciais e temporais.»
Apesar de o filme não ter tido um guião – isto é, um documento escrito com indicações precisas para realizar o filme –, isso não significa que não seja uma obra narrativa. Se entendermos a narrativa como uma sucessão logicamente encadeada de eventos, então rapidamente concluímos que este documentário é narrativo. Então, o que narra? Um dia típico de uma cidade da Ucrânia soviética. A estrutura em seis capítulos, bem assinalados, acompanha os vários períodos do dia, do amanhecer ao fim da tarde. O amanhecer é o momento em que as pessoas acordam e se preparam para ir trabalhar. Tudo se começa a mover. O fim da tarde é o tempo de lazer e convívio, após a saída do trabalho. É a altura em que o movimento é suspenso.
Mesmo celebrando a industrialização urbana, o filme não deixa de exibir vestígios de uma urbanidade pré-industrial. As carruagens puxadas por cavalos percorrem as vias. Os mesmos animais são postos a trabalhar com os mineiros. O acordar da cidade mostra também contrastes sociais indesejáveis. Um menino dorme num banco de jardim e veste farrapos. Há outros sem-abrigo nas ruas. O progresso industrial é visível nas fábricas, na telecomunicação, nos transportes, nos utensílios, e no próprio cinema. A evolução social também é evidente, diminuindo as desigualdades e promovendo o bem-estar, mas é ainda insuficiente.
Ao longo dos seus capítulos, o filme vai mostrando os vários aspetos da história do quotidiano urbano que pretende documentar. Esses aspectos narrativos ganham um cunho estético. É como se fossem transpostos da cidade, transformada pela multiplicação das máquinas, para o filme — contaminando-o com o movimento incessante depois do amanhecer, a mudança de ritmos, a rotação mecânica, e, finalmente, com os engenhos animados (o tripé e a câmara) e os engenhos que produz imagens animadas (a câmara e o projector). Antes desta conclusão no último capítulo, que rima com o Prólogo, surgem as actividades culturais, físicas, e de recreio dos trabalhadores (banhos de praia, ginástica, natação, atletismo, corridas de cavalos, mergulho, basquetebol, futebol, motociclismo, confraternização, tiro ao alvo sob o lema «abaixo o fascismo!», jogos de tabuleiro, música, dança). Este tempo diário aparece como resultado da reorganização permitida pelo desenvolvimento tecnológico.
O filme recorre a variados mecanismos de encenação, juntando elementos ficcionais e documentais na sua construção narrativa. A componente documental predomina e é enquadrada e reforçada pelos ingredientes ficcionais.
Muita da energia e do impacto de O Homem da Câmara de Filmar resulta da clareza das suas imagens a preto e branco, do trabalho sobre os planos na montagem, não apenas devido aos ângulos imaginativos, mas sobretudo pelo modo como o dinamismo da imagem procura captar o movimento frenético da cidade em planos mais abertos e pormenores da vida pessoal em planos mais fechados. As imagens foram cuidadosamente escolhidas de entre todas as que foram filmadas num período de três anos.
É no campo da imagem que o filme coloca questões em torno da realidade, da visão, e dos géneros cinematográficos. O que produz o «real» no ecrã? O que separa a ficção do documentário? Desde a primeira imagem que o filme olha o próprio cinema — a câmara, primeiro, seguida da projeção, da filmagem, e da montagem. No entanto, não o faz para esvaziar a capacidade de fascínio da imagem em movimento, mas para demonstrar que, mesmo quando o cinema revela os seus bastidores e o modo como é feito, esse fascínio permanece. A arte cinematográfica e a nova cidade são ambas produtos da tecnologia industrial. Esta semelhança facilita que o cinema converta a cidade numa experiência fílmica e mostre como a máquina não se sobrepõe nem se contrapõe ao ser humano, valorizando-o e promovendo o seu progresso.
«É no campo da imagem que o filme coloca questões em torno da realidade, da visão, e dos géneros cinematográficos. O que produz o «real» no ecrã? O que separa a ficção do documentário?»
A montagem constrói relações entre as imagens e dentro delas. O processo é mostrado no filme: a catalogação temática dos rolos, a seleção dos planos e fotogramas, o corte e a colagem de segmentos de película. Inicialmente, o homem da câmara de filmar, Mikhail Kaufman, filma as imagens. Depois, a mulher da mesa de montagem, Elizaveta Svilova, monta o filme. O filme tira partido da arte do enquadramento nos planos rodados, mas só existe através da montagem, nomeadamente fazendo sobressair a composição visual e as manipulações do movimento.
Svilova deve ser reconhecida como decisiva em muito do que é hoje celebrado no filme. O valor do seu trabalho, como o de muitas mulheres na área do cinema, precisa de ser reconhecido. Se a sua carreira começou em 1922, com a montagem de uma edição de Cine-Verdade de Vertov, a sua obra transcende esta colaboração com o marido. Como realizadora-montadora a solo, criou mais de 100 documentários e filmes de actualidades, entre 1939 e 1956, que demonstram a sua inventividade e o seu interesse pela dimensão política da montagem.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui