Publicado em Dezembro de 2021 pela Página a Página, O Novo Normal, Securitização, Precariedade e (des)Integração Europeia em tempos de pandemia é um exercício de sistematização e análise dos últimos dois anos, que pretende convocar o debate público sobre as implicações das medidas adoptadas na gestão da pandemia.
Quando é que decidiram começar a escrever e depois publicar, sem esperar por um eventual desfecho da pandemia?
Manuel Loff: Tomei a iniciativa de fazer este livro, desafiei o Tiago Vieira e, ainda no Verão de 2020, juntou-se o Filipe Guerra. Era forçoso que, do ponto de vista das Ciências Sociais, se reunisse documentação e informação sobre a qual pudéssemos reflectir e que nos permitisse dar nome aos fenómenos que estávamos a viver. Eric Hobsbawm dizia que raramente se consegue dar nome àquilo que se vive enquanto se vive, que é difícil reflectir sobre as coisas enquanto elas estão a decorrer. No entanto, apesar de ter alguns elementos novos, parecia-nos que aquilo que estava a decorrer era uma acentuação muito acelerada de tendências que vinham de trás, o que acaba por ser uma das teses centrais do nosso livro. Afirmamos que, não havendo nada de estritamente novo na gestão da pandemia, a diferença está na dimensão das coisas e na rapidez com que processos que já estavam em curso se estão a acentuar. Assim, em primeiro lugar parecia-nos urgente reflectir e, em segundo lugar, tentar dar nome a esses processos.
«Afirmamos que, não havendo nada de estritamente novo na gestão da pandemia, a diferença está na dimensão das coisas e na rapidez com que processos que já estavam em curso se estão a acentuar»
Manuel Loff
Alguns dos conceitos que vão surgindo ao longo do livro são reflexo de preocupações específicas que cada um de nós tinha, tendo em conta o contexto: o medo político e a política do medo, as questões da securitização ou a uberização das relações de trabalho, são metáforas muito evidentes do capitalismo do século XXI. Era preciso testar se conceitos que já tínhamos se aplicavam agora, e se achávamos que deveriam surgir outros. Por outro lado, ao longo deste ano e meio – começámos no Verão de 2020 e acabámos em Outubro de 2021 – várias vezes pensámos que a pandemia tinha acabado e que iríamos escrever uma coisa histórica, referente estritamente ao passado, e que não iríamos publicar reflexões com a pandemia a decorrer, sem nunca tomar uma decisão sobre se deveríamos ou não esperar pelo seu fim.
Insisto na ideia de a gestão da pandemia ter sido pautada por continuidades. Defendem que os maiores problemas que enfrentámos neste período também têm a ver com uma retirada de direitos que já estava em curso, como a precariedade nas relações laborais, a falta de investimento público na saúde e a desigualdade na distribuição dos rendimentos?
Tiago Vieira: Sim, mas creio que o grande desafio foi emprestar densidade analítica a um alvo em movimento. Nós não queríamos fazer um resumo do que se passou, pelo que o livro não é uma cronologia da pandemia. Tínhamos que reportar os factos, é certo, mas tentando introduzir uma dimensão analítica àquilo que estava a acontecer. Começamos a pandemia com apelos de diversas entidades a dizer «vai ficar tudo bem» e nós começámos a escrever o livro justamente para desmontar essa ideia. Haverá hoje muito pouca gente a pensar que ficou tudo bem ou que vai ficar. O agravamento das injustiças sociais e das desigualdades são exemplos muito prementes. Só o futuro nos trará um retrato completo, mas o que conseguimos antever a partir do presente e que vertemos no livro é que, por exemplo, no quadro das relações laborais há, mais do que uma alteração de forma, uma alteração de conteúdo nas relações de poder dentro dos locais de trabalho.
A pandemia é colocada ao serviço de um agravamento da securitização [das relações laborais]. Hoje, as relações de força em muitas realidades que gravitam na esfera laboral são mais desfavoráveis aos trabalhadores, que estão sujeitos a mais constrangimentos, quer pela precarização formal das relações laborais – toda esta gente que foi despedida e que agora é recontratada mas em condições piores –, quer por se continuar a cavalgar neste fetiche das plataformas, quer pela realidade do teletrabalho. Continua talvez por discutir e por apurar quais são as implicações do ponto de vista da organização dos trabalhadores, seja da sua organização de vida individual, mas sobretudo da organização colectiva, em momentos de embate com entidades patronais ou em momentos de embate com políticas laborais ainda piores. A desarticulação do movimento dos trabalhadores é um risco iminente, embora talvez ainda não evidente, da forma como a gestão da pandemia afectou as relações de trabalho.
Outra das vossas teses é que as medidas de «excepção» poderiam ser utilizadas a favor dos trabalhadores – impostos sobre o capital, maiores investimentos, contratações, políticas públicas, mas que a correlação de forças determinou o contrário. Os trabalhadores têm à partida razão para desconfiar quando se fala de aplicar medidas de excepção?
Manuel Loff: Sim, e notamos que o contexto político-ideológico tem criado o paradigma de que toda a vida colectiva está baseada, acima de tudo, na prioridade da segurança. E isto tem sido imposto – do ponto de vista do ciclo histórico, porque não começa aí – sobretudo desde o 11 de Setembro de 2001, com o agravamento brutal das medidas de segurança, assumidas quer por Estados, quer por empresas. Este paradigma da segurança pode ter várias dimensões. Habitualmente associamo-lo às questões ligadas à chamada prevenção anti-terrorista ou luta anti-terrorista, mas isso é apenas uma das dimensões que ela tem tido.
«Quando chegámos à pandemia de Covid-19, mais do que se tomar os agentes patogénicos como inimigo, as políticas implementadas tomam as pessoas e as sociedades como inimigo.»
manuel Loff
Chamamos à atenção no livro para um exemplo que tem sido dado à escala internacional: a França é um dos casos mais acabados de uma chamada democracia consolidada na Europa, onde a adopção de medidas securitárias desde 1995, pelo menos, atravessando governos do centro-esquerda às várias direitas francesas, tem servido para a repressão de movimentos sociais, nomeadamente toda a contestação da reforma laboral iniciada em 2015, ainda por cima durante um governo socialista, e se prolonga com a repressão a outros movimentos sociais como por exemplo os Gillets Jeunes [coletes amarelos]. O caso francês é paradigmático porque raramente se foca este país para demonstrar este tipo de coisas, e focamo-nos – e bem – nos casos polaco, húngaro, filipino, russo, etc. Sabemos quais são em geral os objectos de análise que os média e os produtores de ideologia disfarçada de ciência social à escala internacional usam, tendendo a esconder aquilo que acontece consolidadamente e de forma irrevertida nestes casos, pelo menos há 20 anos.
Quando chegámos à pandemia de Covid-19, mais do que se tomar os agentes patogénicos como inimigo, as políticas implementadas tomam as pessoas e as sociedades como inimigo. É dos aspectos que mais sublinhamos, de que a maioria da sociedade aceitou a ideia de que quem é responsável pelo número de vítimas e pelas pessoas que estão doentes são… as próprias pessoas. Como acontece com toda a ideologia conservadora e liberal, a responsabilidade nunca está no contexto, num Serviço Nacional de Saúde sem recursos, não está na forma como nos organizamos para o confinamento, e na realidade social da habitação, por exemplo.
Portugal teve 15 estados de emergência. E quando terminámos os três primeiros, que tiveram a preciosidade anti-democrática de suspender o direito de greve, quase se jurou que não voltaria a ser proclamado o estado de emergencia, que não seria necessário, que os portugueses teriam aprendido a lição. Por outras palavras, tinham interiorizado a forma como se deviam comportar, nomeadamente as medidas de segurança a cumprir. E de repente, a partir de Novembro, instauraram-se os estados de emergência sistematicamente, que se revelaram contraproducentes ou pelo menos irrelevantes. Não esqueçamos que é durante a segunda fornada – os segundos 12 estados de emergência – que decorre o pior momento da pandemia, fim de Janeiro/início de Fevereiro 2021, mas já havia estado de emergência há vários meses. Nesse momento explicou-se – quer o Governo [PS], quer o Bloco de Esquerda, que votou favoravelmente à renovação dos estados de emergência – que eram medidas de excepção a favor das pessoas, para garantir os recursos do SNS, para garantir a manutenção dos postos de trabalho e os rendimentos dos trabalhadores. Mas o Governo nunca requisitou serviços à saúde privada e não conseguiu sequer impor normas que impedissem os hospitais privados de bloquear o acesso aos seus equipamentos por pacientes com suspeitas de Covid. Depois diziam-nos que a Lei de Bases da Saúde não permitia a mobilização e a requisição civil que o Estado pudesse vir a fazer da saúde privada, mas tal requisição nunca foi feita com a declaração dos estados de emergência. E a saúde privada não perdeu um cêntimo, pelo contrário, ganhou milhões à custa do Estado.
Assim, a emergência foi-nos apresentada como a melhor forma de preservar a saúde e os direitos dos trabalhadores, mas não só não preservou, porque o pico da pandemia foi atingido apesar dos estados de emergência, como não serviu para nenhumas medidas excepcionais a favor daqueles que pudessem precisar de medidas verdadeiramente excepcionais.
O medo e incerteza que floresceram durante este período deveriam ser mitigados através do reforço da democracia e não da sua suspensão?
Manuel Loff: Sim, mas o que é preocupante é que, com muito sucesso, conseguiu-se que uma grande parte da sociedade estivesse de acordo com isto, de que de facto a normalidade democrática seria incompatível com situações de emergência. O que afirmamos neste livro é que agora, a todo momento, os agentes securitários e sobretudo aqueles que podem impor medidas de segurança em cada sociedade, podem invocar ameaças à segurança, seja relativamente a doenças, ou a acções terroristas, para aplicar medidas que levam ao silenciamento da oposição e da resistência. Dessa forma é muito mais fácil impor determinadas medidas, se formos permanentemente governados a partir do medo. E a bandeira que levantamos é que o medo não é admissível como forma de governo. Sim, toda a vida social inclui determinados aspectos de insegurança, como na vida quotidiana. Mas não vamos desmontar o que foram centenas de anos de construção de direitos democráticos, nomeadamente direitos de resistência e de alternativas às formas de dominação, porque atravessamos uma pandemia, que exigiria, pelo contrário, maior debate democrático em torno das soluções e caminhos a seguir.
Muitos estimaram que o impacto da Covid-19 seria inferior a outras pandemias, a começar pelo HIV, evidentemente. A grande diferença é que a Covid-19 ameaçava afectar, como se verificou, os países mais ricos do mundo do hemisfério norte. Portanto, se morrerem por ano uns milhões de africanos, asiáticos, e latino-americanos, mas particularmente africanos, de HIV, isso é secundário. Porque não nos esqueçamos: a morte tem cor, tem perfil étnico, tem perfil de género, tem uma série de coisas, como tem o trabalho, como tem a desigualdade, como tem a distribuição da riqueza. É mais do que evidente e creio que este é um aspecto importante.
«A pandemia e o clima de medo e de ansiedade levaram à condenação da participação dos cidadãos, à condenação da actividade política nos vários sentidos que referimos no livro, desde logo no famoso 1.º de Maio de 2020 »
Filipe guerra
Filipe Guerra: Sim, e nesse sentido a pandemia de Covid-19 é um pouco como uma tempestade perfeita, na medida em que reparamos que o ataque à democracia, até no sentido da participação cívica na vida político-partidária, foi um aspecto flagrante desde o início. A pandemia e o clima de medo e de ansiedade levaram à condenação da participação dos cidadãos, à condenação da actividade política nos vários sentidos que referimos no livro, desde logo no famoso 1.º de Maio de 2020. De facto, verificou-se que a pandemia apanhou o país e a sociedade já com a «terra lavrada» para a aplicação destas medidas.
Ou seja, já havia anos de políticas que tornaram a sociedade permeável a isto. É muito curioso, e chamava a atenção para um aspecto porque já ocorreu depois da publicação do livro, mas que encaixa perfeitamente nesta ideia. Durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas, que se realizaram no passado dia 30 de Janeiro, verificou-se um período com taxas de infecção altas. E houve quem afirmasse que um dos elementos que estava a contribuir para o aumento do número de casos naquela altura era o decorrer das campanhas eleitorais, da existência de comícios e de manifestações de rua. Ou seja, esta ideia da suspensão da democracia tinha terra lavrada e impôs-se, e só não se impôs totalmente porque houve quem resistisse, aliás com grande coragem moral e quase que física. Mas continua a ter sequelas e pequenos episódios que se adivinha que poderão perdurar dependendo naturalmente do que for o curso, do ponto de vista sanitário, da pandemia.
Tiago Vieira: Eu acho que nós temos de reflectir sobre as implicações que as coisas têm para lá do tempo em que acontecem. Refiro outro exemplo que me parece ilustrativo: há umas semanas, o entretanto promovido a perito sobre tudo e mais umas botas, Filipe Froes, dizia, sendo citado na capa do Diário de Notícias, que os portugueses conquistaram o direito ao alívio de medidas. E isto é uma coisa que, parecendo absolutamente corriqueira, não é, porque, na verdade, se nós reflectirmos cinco segundos sobre o que isto significa, percebemos que, segundo ele, as liberdades, direitos e garantias fundamentais estão dependentes do juízo moral sobre se os portugueses merecem ou não o alívio dessas medidas. No livro usamos a expressão de um certo paternalismo, e afirmamos que é de uma enorme gravidade normalizarmos a ideia de que há aqui uma validação moral do acesso aos direitos. O alívio de medidas, ainda incompleto, na verdade já aconteceu e está a acontecer em vários outros sítios dentro da Europa, dentro da União Europeia, e não tem uma ligação directa à taxa de vacinação, nem a determinados indicadores que agora podem vir a ser justificados racionalmente. Mas o que importa é este pendor moralista sobre os direitos fundamentais que é obviamente não só inaceitável como perigosíssimo.
Um grande desafio que resulta claro da leitura do vosso livro é que a um cada vez maior controlo sobre os trabalhadores, através de meios tecnológicos instituídos em nome da produtividade, parece corresponder uma cada vez maior individualização do processo produtivo, dificultando a organização dos trabalhadores. Como superar isto?
Tiago Vieira: Esta pergunta suscitava múltiplas considerações. Mas vou ficar-me só por uma. Nós estamos num quadro em que não é líquido que as alterações tecnológicas vertiginosas a que assistimos venham a garantir maiores índices de produtividade, tendo em conta os impactos que elas têm sobre os seres humanos, sobre os trabalhadores. Há até sinais muito contraditórios. Nós procuramos dizer ao longo do livro que uma parte decisiva deste fascínio pelo teletrabalho decorre de dois tipos de factores: por um lado, do aproveitamento da realidade terrível que se vive em muitos locais de trabalho, que faz com que os trabalhadores tenham repulsa pelo seu local de trabalho. Por outro, do aproveitamento de problemas como as deslocações pendulares, que decorrem da gentrificação, e que leva a que os trabalhadores prefiram trabalhar a partir de casas onde não têm condições de trabalho, a ter que ir para os seus locais de trabalho. Portanto há aqui uma perversão terrível, que é a lógica do «mal menor» que não é tão menor assim. Mas em cada buraco que se abre poderemos encontrar também novas formas de resistência. E não há outro caminho que não seja a resistência e a luta dos trabalhadores. Eu creio que os tempos que vivemos serão particularmente desafiantes sobretudo para as estruturas do movimento sindical, que é algo que não pode ser ignorado. Não obstante, não há nenhuma razão para acharmos que o movimento sindical não encontrará também os caminhos para, neste quadro, organizar os trabalhadores, porque todas as formas, por mais opressivas e exploradoras que sejam dos trabalhadores, nunca deixaram de encontrar resistência por parte dos mesmos. Portanto, não há uma fórmula escrita, mas eu tenho confiança que os trabalhadores encontrarão naturalmente, ainda que arduamente, as formas de contrariar todos estes mecanismos que lhes estão a ser impostos.
«Não há uma fórmula escrita, mas eu tenho confiança que os trabalhadores encontrarão naturalmente, ainda que arduamente, as formas de contrariar todos estes mecanismos que lhes estão a ser impostos»
Tiago vieira
Não obstante, não deveríamos desvalorizar que, no entretanto, nós vivamos num tempo profundamente contraditório: as possibilidades que as máquinas de hoje oferecem aos trabalhadores e trabalhadoras do ponto de vista da libertação da carga de trabalho, do ponto de vista da articulação da sua vida pessoal com a sua vida profissional, de maximização de aprendizagens e de contactos para lá das fronteiras físicas em que eles estão, são completamente desaproveitadas em nome de uma exploração atroz e profundamente insidiosa. Desde a monitorização das suas rotinas mais básicas, como seja ir à casa de banho ou qual é o grau de ansiedade que determinada tarefa de trabalho lhes provoca, para depois instrumentalizar essa informação para, por exemplo, concretizar um despedimento passado umas semanas ou uns meses.
E quanto ao processo de integração europeia, que abordam no terceiro capítulo. Está ameaçado por conta das contradições que foram expostas no decorrer da pandemia?
Filipe Guerra: Eu creio que é precipitado procurar fazer alguma espécie de previsão em relação àquilo que possa ser o futuro da União Europeia, de mais integração ou mais desintegração. Aquilo que nós verificámos foram tendências. E, se por um lado, se verifica uma acumulação de processos e de momentos de crise política desde a crise económica de 2008, à questão dos refugiados, ou ao próprio Brexit, por outro, também verificamos que frequentemente o aprofundamento do processo de integração europeia tem sido a saída política para a resolução das crises, ou seja, o processo não é repensado mas acelerado.
Em relação àquilo que foram as políticas da União Europeia durante a crise sanitária, ao longo dos últimos dois anos, no essencial creio que é muito claro que evidenciaram de uma forma muito bruta, muito cruel, aquilo que são as suas contradições essenciais. Acima de tudo, aquilo que é uma não correspondência entre o seu discurso e a sua acção e também uma cruel exposição, muito notória, daquilo que, de facto, são as suas ambições e os interesses que no essencial esta instituição defende. Verifica-se uma não correspondência muito grande entre aquilo que são as práticas e o que são as declarações pomposas que em larga medida foram sustentando o processo ideológico que vai impondo o processo de integração europeia, nomeadamente a solidariedade, os grandes valores humanos. Verificamos que esses valores não tiveram qualquer tradução real, logo no primeiro trimestre de 2020, por ausência de solidariedade entre os países. Por exemplo, na partilha de material sanitário, isto foi muito claro, e na forma como os países, no essencial, mandaram às urtigas aquilo que eram os compromissos europeus. Veja-se a forma como, unilateralmente, se faz o encerramento de fronteiras ou a forma como, por exemplo, se boicota a exportação e importação de produtos sanitários e outros, o que revelou uma enorme divergência de interesses, e uma tendência para romper com aquilo que são as ideias da União Europeia e os seus programas e até aquilo que está assinado em vários tratados e acordos.
«Verificamos que frequentemente o aprofundamento do processo de integração europeia tem sido a saída política para a resolução das crises, ou seja, o processo não é repensado mas acelerado »
filipe guerra
Repare-se na construção do Plano de Recuperação e Resiliência e em todas as suas contradições que expomos neste livro. Também quanto ao processo de vacinação, é revelador o facto de a União Europeia ter tido um papel de agente privatizador. Porque abdicou completamente do caminho da aquisição e distribuição de vacinas com base naquilo que foi a investigação pública, e entregou esse processo aos grandes grupos económicos da indústria farmacêutica que são grupos económicos, com um poder económico e de lobby muito forte. É de facto uma indústria cujo grande interesse não é a saúde e a promoção da saúde, mas o seu lucro, numa lógica perfeitamente capitalista, à qual a União Europeia se entregou de forma incondicional. Para além do mais, tratou-se de um processo de reserva total em relação à contratualização com as denominadas Big Pharma. Portanto, a União Europeia fez um processo de absoluta opacidade, resistindo tanto quanto pôde a critérios de transparência, e dando-se ao absurdo de publicar documentos com partes rasuradas.
Outro exemplo foi a forma como a União Europeia anunciou ao mundo, logo em Junho, que iria fazer enormes doações de centenas de milhões de vacinas no âmbito da Covax, quando na realidade ficou muito longe de fazer as entregas com que se tinha comprometido. Aliás, a União Europeia é acusada de, objectivamente, ser um agente que dificulta o acesso às vacinas a outros povos do mundo.
Por último, este processo revelou também que a União Europeia se entregou incondicionalmente aos grandes interesses dos grupos económicos, não priorizou o interesse da saúde pública e falhou do ponto de vista político e até moral para com os povos do mundo, naquilo que devia ser uma prioridade absoluta que era resolver a pandemia e partilhar as soluções que pudessem existir.
Podemos dizer que as democracias lançaram as bases do securitarismo, que facilmente podem ser usadas para o estabelecimento de regimes autoritários? Mas como desmontar o facto de, em alguns países, serem as forças mais reaccionárias a utilizar uma narrativa contra as medidas securitárias?
Manuel Loff: Sim, há uma evidente hipocrisia e dualidade de critérios moral, ética e política de sectores como a extrema-direita portuguesa, em que os ultra-securitários de sempre, que entendem que nunca há medidas suficientes de segurança e que, quando os Estados as tomam – nos casos em que a extrema-direita ainda não está no poder –, o fazem de forma incompleta, mas que agora se opuseram às medidas mais restritivas relacionadas com a pandemia. Esses, em determinado momento, podem assumir uma retórica desta natureza. Por outro lado, apontavam o dedo quando havia outros que não cumpriam as regras. Mesmo que depois, eles próprios, apareçam em iniciativas políticas públicas não usando máscara, não cumprindo o distanciamento... mas exigindo que os outros, os pobres, os subordinados, os subalternos, o devem fazer. Mas isso é a história da dominação. As classes dominantes nunca cumprem a mesma moral social que fixam legalmente para as classes dominadas.
Essa hipocrisia existiu sempre, não é nenhuma novidade. Agora nós sublinhamos no livro que devemos ter sempre muito cuidado em não descrever toda a extrema-direita à escala internacional como contrária a medidas de emergência. A extrema-direita mobilizou-se contra, em alguns países, aproveitando um mal-estar muito generalizado e crescente nas várias sociedades relativamente às evidentes limitações de liberdades cívicas, colectivas e individuais. Mas, onde a extrema-direita está no poder, as medidas securitárias foram impostas de forma exemplar, como nas Filipinas, quando o Presidente Duterte ameaçou, literalmente, que se as pessoas saíssem de casa teriam o Exército à porta com ordens para disparar. A Polónia e a Hungria, com governos de ultra-direita dentro da União Europeia, foram campeãs das medidas securitárias na primeira fase. Não hesitaram em introduzir essas medidas. A extrema-direita à escala internacional, quando não está no poder, aproveitou sistematicamente a possibilidade de mobilizar o mal-estar para desestabilizar governos, de cor contrária. Mas quando está no poder, evidentemente, assumiu atitudes securitárias e ultra-securitárias, que foram denunciadas por organizações não-governamentais à escala internacional, do ponto de vista da interferência na liberdade de expressão e do controlo quer dos cidadãos à escala individual, quer dos movimentos sociais.
Torna-se um exercício crítico muito complexo, por vezes, distinguir como, à esquerda e à direita, se interpretam as evidências científicas e a relação que estas assumem com as políticas implementadas...
Manuel Loff: É verdade que a extrema-direita e os sectores ultra-reaccionários costumam fazer leituras da realidade social contrárias à ciência, de natureza apocalíptica, atribuindo as doenças ou as catástrofes naturais à imoralidade social. É uma coisa antiga, basta referir exemplos como o da direita religiosa norte-americana na sequência do 11 de Setembro de 2001, por ser Nova Iorque a capital do pecado, ou os sectores ultra-reaccionários dos ortodoxos judeus sobre o Holocausto, como um castigo pela laicização e pela presença do marxismo dentro das comunidades judaicas europeias. Não há nenhuma novidade nisto.
Mas atenção, eu não tenho nenhuma religião da ciência. E recordo que a corporação profissional com mais militantes em proporção no Partido Nazi na Alemanha era a dos médicos. E recordo o peso que médicos e biólogos tiveram na produção do discurso racial eugenista e genocida naquele período. A pandemia não nos pode obrigar a esquecer que a análise da ciência e da sua produção deve ser contextualizada do ponto de vista de classe e do ponto de vista social. Com isto não estamos de forma alguma a produzir um discurso relativista sobre a ciência. Mas é preocupante e perturbante que se tenha adoptado, a propósito da gestão da pandemia, o discurso de que as autoridades políticas não deveriam ouvir diferentes opiniões da comunidade científica. Que o Governo não deveria ter autoridade para confrontar um suposto unanimismo científico.
A epidemiologia não é uma ciência exacta. Basta comparar com o papel que podem desempenhar outros cientistas, noutras situações. Como o da crise económica, em que seriam os «técnicos» a resolver a crise, como se os economistas não tivessem ideologia. Ou na discussão em torno da natureza do regime do Estado Novo. Eu teria que chegar a acordo com o Rui Ramos sobre se a ditadura em Portugal foi fascismo ou não, para depois um de nós se calar perante uma suposta unanimidade do veredicto científico? Não. É importante percebermos que a ciência é feita de revisibilidade, de pluralidade. É totalmente natural que haja diferentes opiniões nestas questões.
E, nesse sentido, é potencialmente embaraçoso para muitos daqueles que mantivemos uma atitude crítica sobre as medidas de emergência sanitária e denunciámos a sua natureza securitária, o facto de vermos na rua e nas redes sociais uma infinidade de pessoas que negam as evidências científicas. Mas atenção, só os que negam as evidências científicas é que são negacionistas. Nem toda a gente que saiu à rua em muitos lugares do mundo contra a paranóia do uso dos certificados Covid era do campo do negacionismo.
«As medidas de segurança são como drogas aditivas. Começa-se, e não se deixa mais.»
manuel loff
Tive essa polémica entre amigos que começaram a suspeitar que eu estava a entrar no campo do negacionismo por alertar para a securitização da sociedade... E haverá muita gente à nossa volta, e seguramente muito leitor do AbrilAbril , que pergunta: não era necessário impor medidas de emergência? Ao que eu responderia: é necessário impor medidas de excepção todas as vezes que há um atentado terrorista? É necessário que todas as estações de metro de Paris tenham soldados com metralhadoras? É necessário que todos os aeroportos estejam securitizados da forma como estão? É absolutamente imprescindível? Eu acho que não, é tão simples quanto isso. E aquilo que quero é que discutam connosco, nomeadamente à esquerda, a quem serve a securitização da sociedade. Porque é importante que percebam que as medidas de segurança são como drogas aditivas. Começa-se, e não se deixa mais. E o que nos preocupa é que um grande número de pessoas tendam a entender, por se tratar do campo da segurança sanitária, que isto é diferente. É uma tese que nós ouvimos muito. De que seria sempre intolerável que nos impusessem medidas de emergência a propósito de questões de segurança, como ameaças terroristas, mas que eram inevitáveis em relação à pandemia. Essa dualidade é equívoca e acho que tem que ser denunciada.
Tiago Vieira: Correndo o risco de repetir o que o Manuel disse por outras palavras: este é um momento interessantíssimo desse ponto de vista. Qual é a avaliação ou a valoração que se faz da ciência? Eu considero que quem sacraliza uma conclusão científica está a negar o que é a ciência enquanto processo constitutivo e de permanente revisão. Desde logo porque a boa ciência tem que ser escrutinada pelos pares à luz do conhecimento existente. Portanto, aquilo que nós temos é uma tentativa de instrumentalização de determinadas conclusões políticas que vão radicar em determinadas conclusões científicas. Aí deixamos de estar a discutir o valor da ciência para estarmos a discutir qual é a tradução política que a ciência tem e este pode ser um debate quase meta-filosófico, ultra-abstracto. Corremos esse risco, mas não consigo deixar de sublinhar esta questão.
«O pior que nós podemos fazer é deixarmo-nos acantonar nesta ideia de que há uma dicotomia entre o questionamento e a liberdade, porque nada é mais livre do que o questionamento»
Tiago vieira
Como dizia Marx, e como citamos na conclusão do nosso livro, «as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade, é ao mesmo tempo, o seu poder espiritural dominante». E sim, há uma instrumentalização fortíssima da ideia de liberdade pela direita. Mas o pior que nós podemos fazer – nós gente de esquerda – é deixarmo-nos acantonar nesta ideia de que há uma dicotomia entre o questionamento e a liberdade, porque nada é mais livre do que o questionamento. E esta pode ser a grande perversão do nosso tempo, que é termos de facto um conjunto de sectores que se deixe esmagar pela ideia de que não há uma tradução política da ciência. Como o exemplo já referido do 1.º de Maio de 2020. O posicionamento de diferentes forças políticas e sociais relativamente a este acontecimento é um exemplo paradigmático de como é tão fácil, de repente, o rolo compressor da ciência nos fazer perder de vista que há uma leitura política para lá da leitura científica. E depois cada um tem que escolher o seu caminho.
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