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Requiem para a democracia

Do America First e Make America Great Again de Trump e a promessa de Biden que os EUA vão voltar a liderar o mundo há diferenças de forma, as de fundo permanecem inalteradas.

Metropolis, George Grosz
CréditosGeorge Grosz

O espectáculo das últimas eleições nos EUA, com todos os lances da campanha eleitoral desde as primárias à tumultuosa transmissão de poderes entre os candidatos, é a demonstração de como a democracia, como é entendida no auto-proclamado «mundo livre», está agónica.

Rousseau, que com Montesquieu lançou as bases da democracia como ainda hoje nos seus traços gerais e nas suas variantes é prática corrente, princípios impulsionados pela Revolução Francesa, quando a burguesia que já detinha o poder económico ascendeu ao poder político e com o parlamentarismo em prática na Inglaterra, um longo processo histórico iniciado com a Magna Carta e que culminaria na instituição de uma monarquia constitucional, viu claramente os limites dessa democracia. Refugiado em Inglaterra, acusado em França de afronta aos costumes morais e religiosos pelos contra-revolucionários que tinham tomado de assalto o poder, observando o funcionamento do parlamentarismo inglês, mesmo considerando que era um grande passo no avanço civilizacional comparado com a situação anterior, analisou com grande lucidez esses limites em O Contrato Social: «os representantes do povo não são, nem podem ser, seus representantes, não passam de seus comissários, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda a lei que o povo não ratificar directamente; em absoluto não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só é durante a eleição dos membros do parlamento, uma vez eleitos ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso que dela faz mostra que merece perdê-la». Rousseau, para ultrapassar esses impasses, postula «no exercício do poder legislativo, o povo não pode ser representado, mas no poder executivo, o qual é a única força que é aplicada para tornar a lei efectiva, ele pode e deve estar representado (…) a liberdade não pode existir sem igualdade».

«Na actualidade [as desigualdades económicas] têm-se agravado brutalmente com a enorme concentração da riqueza num número reduzido de plutocratas, num mundo em que há empresas cuja capitalização é maior que o PIB de muitas nações, mesmo algumas integrantes do G-20, e em que o fosso entre ricos e pobres aumenta exponencialmente. A grande evidência é que nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais»

O nó górdio é que no capitalismo as desigualdades económicas são integrantes do sistema, desde essa época até aos nossos dias. Na actualidade têm-se agravado brutalmente com a enorme concentração da riqueza num número reduzido de plutocratas, num mundo em que há empresas cuja capitalização é maior que o PIB de muitas nações, mesmo algumas integrantes do G-20, e em que o fosso entre ricos e pobres aumenta exponencialmente. A grande evidência é que nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais. Com tamanhas desigualdades a democracia é impossível no quadro da democracia burguesa, quaisquer que sejam as variantes da representação democrática, do voto mais universal, mais representativo da vontade popular, às que o condicionam com desenhos de círculos eleitorais em que com menos votos expressos se elegem mais deputados para garantir a hegemonia das forças mais conservadoras, ou com o sistema de colégio eleitoral nos EUA, onde não há correspondência entre o número de votos obtido por um candidato, podem ser milhões a mais, e a sua eleição. Marx denunciou ferozmente a democracia formal das sociedades burguesas sublinhando que o que é dado ao proletariado e às massas populares é a liberdade de votar nos seus carrascos.

«[Entre Trump e Biden] há diferenças de forma, as de fundo permanecem inalteradas, são comandadas pelo complexo industrial-militar-financeiro de que eles são desiguais executantes, Distinções mínimas, separadas por finíssima folha de papel de arroz. Com um ou com outro, o mundo continua ameaçado pelo imenso poderio militar de uma potência económica e tecnológica em decadência»

O reality show das últimas eleições presidenciais norte-americanas, da selecção dos candidatos à certificação dos resultados, é o espectáculo deprimente de um requiem para a democracia. Espectáculo encenado, coreografado e financiado pelos oligarcas – 1,51 milhares de milhões de dólares para a campanha de Biden e 1,57 milhares de milhões de dólares para a de Trump – que detêm de facto o poder e tudo confeccionam para fazer acreditar aos eleitores que fazem escolhas. Há diferenças entre os protagonistas? Há, claro que há. Trump é um proto-fascista inepto, desonesto, uma ameaça para a democracia ainda que formal. Biden tem um perfil de sonsa submissão a essa democracia mas foi um falcão como presidente da Comissão para as Relações Externas do Senado, ainda com Bush presidente, falcão que nunca deixou de voar como vice-presidente de Obama, promovendo guerras, bombardeamentos, revoluções coloridas que destruíram países ou fizeram ascender ao poder partidos neo-nazis. Entre o America First e Make America Great Again de Trump e a promessa de Biden que os EUA vão voltar a liderar o mundo há diferenças de forma, as de fundo permanecem inalteradas, são comandadas pelo complexo industrial-militar-financeiro de que eles são desiguais executantes, Distinções mínimas, separadas por finíssima folha de papel de arroz. Com um ou com outro, o mundo continua ameaçado pelo imenso poderio militar de uma potência económica e tecnológica em decadência, mesmo que um seja preferível ao outro por mais previsível, por anunciar ir repor, ver-se-á em que quantidade e de que forma, acordos internacionais que o outro com grande estardalhaço tinha rasgado. As guerras económicas iniciadas por Trump serão outras, os equilibrismos entre proteccionismo e globalização seguirão o seu curso por outras veredas. As interferências noutros países, os boicotes a países como Cuba não serão levantados, Biden alarve e sintomaticamente proclama que Fidel de Castro é igual a Trump. A luta contra as ameaças climáticas que um negava contra todas as evidências científicas, ressurgirão com o outro que empunha essa bandeira como lucrativo negócio nos subterrâneos dos acordos de Paris, quando se fica a saber que as 250 maiores empresas do mundo controlam as unidades mais poluidoras que geram 86% das emissões, um terço são activos de fundos especulativos financeiros globais, BlackRock, Vanguard, State Street Capital e que 1% da população mundial, a que é super rica e que à vez apoia Biden ou Trump, causa metade das emissões de CO2 da aviação, o que enfatiza que o capitalismo não é verde e recorda Chico Mendes, sindicalista-ambientalista brasileiro, assassinado em 1988, quando afirmou que «ambientalismo sem luta de classes é jardinagem».

O totalitarismo democrático tem a sua expressão mais acabada na democracia espectacular dos EUA. Um supermercado em que a liberdade, as liberdades são as que o mercado vende, em que os cidadãos são aceites e tolerados unicamente enquanto participam da ilusão de que vivem numa democracia participativa, como extensivamente o demonstrou Sheldon Wollin que o classifica como o totalitarismo invertido. Para quem se recusa a participar dessa ilusão «o rosto do totalitarismo invertido parecerá o rosto dos sistemas totalitários do passado». Um supermercado da democracia, em que as liberdades são uma máscara, em que não há lugar para dissidências, em que dois partidos se alternam para prosseguir políticas similares numa sociedade uniformizada, inerte, portadora de um mesmo conjunto de opiniões comandadas pelo domínio total dos plutocratas nas formas de comunicação tradicionais e nas de interacção digital que impõem a uniformidade de opinião com o trabalho eficaz e circense dos malabaristas que jogam bolas todas iguais de cores diferentes para ofuscar o estado de sítio.

O exemplo mais acabado de um universo concentracionário, modelo de públicas virtudes e vícios privados, que tem o objectivo de encerrar a humanidade no silêncio do excesso de ruído com que querem ensurdecer a democracia que, mesmo nas suas formas mais mínimas, se degrada.

E a esquerda? A esquerda, numa acepção de crivo de malhas muito largas, assiste ao espectáculo e agora aplaude com ambas as mãos Biden, sentada sobre esperanças que irão naturalmente escambichar. Tem por maioria de razões razão (passe o pleonasmo) em preferir Biden. Isso está fora de questão. Perde essa razão quando embandeira com arcos e balões na sua eleição sem se resguardar por ter perdido memória dos encómios que estenderam o tapete a Obama até ao cadeirão do nobel da paz, paz que estraçalhou com fragor nos seus dois mandatos.

«À esquerda, para lá de todos os acordos e desacordos, convergências e divergências, tem que se exigir que construa um projecto de luta e transformação política do existente. Não pode continuar sentada a ouvir tocar o Requiem para esta democracia nos seus diversos formatos, que se toca em todos os Teatros do Tempo e agora soa bem alto nos EUA»

Paradoxalmente hoje nem é difícil ler em livros, revistas e jornais análises realistas e incisivas sobre a condição actual nas nações, no Ocidente, no mundo, sobre o lugar ocupado pelos EUA no aprofundar dos problemas e dramas de nosso presente, em que há um esvaziamento da democracia, em que à crise política acresce a crise económica, em que se regride com a subordinação às grandes fortunas e à plutocracia. Exemplo recente são as Teses apresentadas e debatidas no XXI Congresso do PCP, a melhor reflexão política sobre o estado de sítio até agora feita em Portugal. A questão central que se coloca é outra. Se as Teses tornam evidente que o PCP é força necessária e imprescindível para uma alternativa de esquerda também demonstram que naturalmente não é suficiente para essa alternativa. Uma dificuldade que não é um exclusivo nacional. Está na ordem do dia no Ocidente, no mundo. As análises, por melhores que sejam, são insuficientes. À esquerda, para lá de todos os acordos e desacordos, convergências e divergências, tem que se exigir que construa um projecto de luta e transformação política do existente. Não pode continuar sentada a ouvir tocar o Requiem para esta democracia nos seus diversos formatos, que se toca em todos os Teatros do Tempo e agora soa bem alto nos EUA. Não pode extasiar-se com um dos extraordinários Requiem’s do Cherubini1, admirados por Beethoven, Schumann ou Brahms, sem atentar na venalidade do seu autor, que é o que contumazmente faz para adiar o que é inadiável. A esquerda, as esquerdas têm que perceber que o que ouvem também é o Requiem que a direita, as direitas estão a ensaiar. Exige-se que percebam, como as esquerdas revolucionárias por todo mundo o apreendem adequando as suas lutas aos enquadramentos políticos específicos, que, como a história demonstra, as sociedades capitalistas neoliberais variam entre tanto serem limitadamente libertárias como não hesitarem em recorrer aos extremos mais repressivos, tanto se apresentarem múltiplas como monolíticas, modalizando-se conforme as geometrias dos enquadramentos sociais, económicos e políticos resultantes dos avanços e recuos da luta de classes, para que a exploração da força de trabalho se mantenha intocada. Têm que se empenhar numa urgente e necessária transformação da democracia, ainda que de forma gradual, por vezes até fragmentária, não se ausentando de todas as lutas e em todos os planos por uma democracia avançada.

  • 1. Luigi Cherubini (Florença, 1760 – Paris, 1842) tinha tanto de excelente músico como de venal. Vendia-se com facilidade e desfaçatez a quem estava no poder. Na Revolução Francesa ocultou a suas ligações e a admiração que tinha pela antiga aristocracia, procurando compromissos com os revolucionários, escrevendo mesmo música patriótica por mais de uma década. Bajulou Napoleão e o Império que enterrou a Revolução, para logo tudo renegar em favor dos Bourbons.

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