Há uma tendência para usar Trump como uma espécie de álibi para as barbaridades que os EUA têm espalhado pelo mundo, tantas e tão sucessivas são as diatribes do sujeito.
Barbaridades que não são de hoje nem de ontem. Sente-se quem se sentar na sala oval da Casa Branca, chame-se Bush ou Clinton, Obama ou Trump, prosseguem-se políticas na defesa dos interesses imperiais dos EUA, seja sob a bandeira do excepcionalismo teológico dos Estados Unidos da América em que Obama acredita «com toda a fibra do meu ser», ou do demagógico Make America Great Again de Trump.
Agora há um polimento de Obama, como José Goulão muito bem denunciou, contrapondo-o ao estilo grosseiro proto-fascista de Trump o que, de algum modo, lança uma cortina de fumo sobre séculos de intervenções dos EUA no mundo. Do apoio às ditaduras nas Américas ao Plano Condor, da guerra no Vietname ao caos que actualmente espalharam e espalham no Médio Oriente, no norte de África, ao intervencionismo directo e indirecto de África à Europa. Do apoio a recentes golpes de estado das Honduras à Ucrânia.
Bem nos lembramos do inefável mon ami Frank Carlucci que estava no Congo quando Patrice Lumumba foi assassinado e voou para Portugal no pós-25 de Abril para bem conhecida actividade contra-revolucionária Obama e Trump foram e são muitíssimo perigosos. São a expressão política muito clara do fracasso e da crise estrutural do modelo neoliberal nos Estados Unidos. Os confrontos a que estamos a assistir pouco tem a ver com democracias e muito com uma guerra entre interesses divergentes de grupos de plutocratas.
Nem todos os norte-americanos que se opõem a Trump são aqueles norte-americanos que desde sempre se têm oposto a essas políticas, como bem lembrou José António Gomes com uma longa lista de óptimas sugestões para revisitar esses EUA de resistência que Warren Beatty retratou em Reds, relembrando John Reed que celebrou a Revolução de Outubro cujo centenário se comemora este ano.
Os EUA de Max Roach e Abbey Lincoln de We Insist! Freedom Now Suite, de Max Roach e Archie Shepp em The Long March, de Charlie Mingus nas suas várias invectivas contra o racismo com destaque para The Fables of Faubus, no Mingus Ah Um ou em Mingus Oh Yeah com Oh Lord Don’t Let Them Drop That Atomic Bomb On Me, em Prayer for Passive Resistance ou Freedom.
A estes EUA contrapunha-se um continente norte-americano reaccionário, mesmo fascista que surge nos filmes de David Lynch. Os EUA que estão por detrás do bilhete postal, visual e sonoro, com que se inicia Veludo Azul, que se vai revelando em Coração Selvagem e Twin Peaks.
Nos confrontos sociais em Easy Rider, de Peter Fonda e Dennis Hopper ou a falência da saga da conquista do Oeste no Duelo no Missouri de Arhur Penn, com um cowboy atípico protagonizado por Marlon Brando ou no romance Meridiano de Sangue de Cormarc McCarthy que narra a violência da expansão norte-americana subvertendo a mitologia do Oeste Selvagem.
Os mesmos EUA que, generosamente, receberam os foragidos ao nazismo como Hans Eisler, o discípulo preferido de Schoenberg ouça-se as Quatorze Maneiras de Descrever a Chuva no seu radical atonalismo, que troca Viena por Berlim para se integrar na luta política colaborando com Brecht.
Eisler que escreve muita música para cinema até o macartismo o expulsar com o epíteto de ser o Karl Marx da música. Que retorna à Europa, à República Democrática Alemã, escreve o seu hino. Eisler que só agora, depois da queda do Muro de Berlim, quase trinta anos depois da sua morte, tem sido resgatado pelas etiquetas discográficas. Do seu exílio ouça-se o Holywood Songbook, numa excelente interpretação do barítono Matthias Goerne com Eric Schneider ao piano. Neste discorrer sobre os tempos sobressaltados que vivemos são várias as sugestões entre muitas que se poderiam fazer.
Por cá um destaque que já foi feito no AbrilAbril que deve ser sublinhado: Os Sábados para a Infância, no Teatro da Cerca de São Bernardo em Coimbra. Um programa diversificado, aliciante e bem estruturado em oficinas temáticas que acontecem todos os fins de semana até ao fim do ano lectivo.
O público jovem tem em Lisboa, no CCB na Fábrica das Artes – para todas as infâncias, dias 10, 11 e 12, um concerto para piano e desenho Qual é o som da tua cara? de António Jorge Gonçalves, desenhador, e Filipe Raposo, pianista, que exploram as relações entre o desenho e a música, com trabalhos realizados com a comunidade escolar em oficinas que culminam neste concerto.
No cinema destaque para três filmes. A Morte de Luis XIV de Albert Serra, com um Jean-Pierre Leaud a demonstrar, tal como Isabelle Huppet o fez em Elle de Paul Verhoeven que esteve em cartaz até à semana passada, como um actor excepcionaliza um filme que já é um filme excepcional.
Em Lisboa, no Nimas, no Porto, no Medeia/Teatro Municipal de Campo Alegre, o sublime As Asas do Desejo de Wim Wenders. Em muitas salas de todo o país, continente e ilhas, Silêncio de Martin Scorsese, sobre os dramas dos jesuítas no Japão, no séc XVII.
Na Casa da Música, no Porto, o cinema também é celebrado em dois concertos : dia 11, a Orquestra Sinfónica do Porto, maestro Jayce Ogren, toca em simultâneo com a exibição do filme de Chaplin As Luzes da Cidade.
Chaplin, que tinha as maiores dúvidas sobre o advento do cinema sonoro, «os filmes falados estão a estragar a arte mais antiga do mundo – a arte da pantomima. Estão a destruir a grande beleza do silêncio. Estão a derrotar o significado do ecrã», rende-se a essa novidade, o novo paradigma cinematográfico, escreve a banda sonora do seu primeiro filme sonoro embora mantenha os diálogos como nos filmes mudos, em cartões escritos intercalados nas cenas do filme.
«Os filmes falados estão a estragar a arte mais antiga do mundo – a arte da pantomima»
cHARLIE CHAPLIN
Retomando o que se escreve no início destas sugestões, é de lembrar que Chaplin também foi um dos perseguidos pelo macartismo. Incluído na Lista Negra de Holywood, sem nunca ter sido ouvido na célebre comissão ao que consta pelos senadores temerem ser ridicularizados pela sua conhecídíssima veia satírica, sai dos Estados-Unidos em 1952 para nunca mais voltar.
Dia 14 é a vez de Nosferatu de Murnau. Filme mudo para quem Michel Obst, em 2002, escreveu uma banda sonora, que vai ser tocada pelo Remix Ensemble Casa da Música, direcção de Brad Lubman.
Ainda no norte em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor pode assistir, até dia 11, ao GUIdance 2017 – Festival Internacional de Dança Contemporânea, com alguns dos mais destacados coreógrafos, nacionais e estrangeiros, da actualidade.
O panorama das exposições é dominado por José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno na Fundação Gulbenkian até 5 de Junho. Organizada por Mariana Pinto dos Santos com Ana Vasconcelos, reúne um conjunto de obras desse artista multidiversificado que percorreu quase todos os géneros das artes e das letras com uma persistência invulgar. Um artista que cunha toda a sua obra com o selo de uma modernidade contraditória, híbrida, complexa. Que a assume sobretudo como espectáculo permanente em que é figura central.
António Ferro que, com Duarte Pacheco, procurava soldar uma modernidade europeia de raiz fascista ao bafiento salazarismo percebeu como poucos o ecletismo de Almada, «O português sem Mestre», como o classificou José-Augusto França:
«José de Amada Negreiros faz tudo o que quer, é o grande saltimbanco da arte moderna portuguesa (...). A arte é para Almada Negreiros uma vitrina de brinquedos. Dá corda a este, dá corda àquele – mas não se decide por nenhum... Almada não se decide por nenhuma arte, toda a arte, contudo, se decidiu por ele.»
É um genial intuitivo como se descobre na sua obra literária, revelada nos anos 70 pela Editorial Estampa onde Herberto Helder colaborava activamente com os irmãos Manso Pinheiro, António e José, com um talento extravagante que antecipa muitos ismos posteriores. Leia-se Nome de Guerra que Herberto Helder considera «um dos apenas três ou quatro romances portugueses deste século que se podem ler sem desbaratos de tempo», o conto O Kágado, os poemas, poemas em prosa e poemas-ensaio como Rondel do Alentejo, A Invenção do Dia Claro (1921), o poema Litoral (1916), A Scena do Ódio, para ser publicado no n.º 3 da revista Orpheu, que teve a vida atribulada que se conhece e que só seria dado à estampa em 1984, numa compilação de Arnaldo Saraiva.
Registe-se que a editora A Bela e o Monstro, em 2015 fez edições fac-smiladas dos três números da Orpheu. Almada que, ainda muito jovem, publica K4-O Quadrado Azul, em colaboração com Amadeo, o texto Saltimbancos, que nenhuma pontuação interrompe, ou a novela A Engomadeira, em que é surrealista antes do Manifesto Surrealista de Breton.
Almada possuidor de uma energia criativa presente em toda a sua obra como poeta, ficcionista, conferencista, ensaísta, desenhador, pintor, artista gráfico, muralista, ceramista, vitralista, cenógrafo, coreógrafo, bailarino, performer, geómetra. Almada, sempre em estado de performance narcisista, ele próprio assim se classifica provocatoriamente na assinatura do já referido poema A Scena do Ódio: José de Almada-Negreiros (poeta sensacionista e narciso do Egypto). Foi e é um caso ímpar e irrepetível nas artes portuguesas. A ver a exposição, a ler o muito bem estruturado catálogo, a ler nas já referidas Obras Completas em seis volumes da Editorial Estampa para se (re)descobrir o inclassificável e incatalogável Almada Negreiros.
Já são muitas as sugestões culturais, implícitas e explícitas. Completem-se com mais algumas musicais.
A 12 Fevereiro, na Fundação Gulbenkian, András Schiff, um dos grandes pianistas do séc.XX, toca J.S.Bach, Bela Bartok, Schumann, Janacek, um reportório que para ele representa a grande alegria de tocar.
Dia 19, durante todo o dia e com entrada livre, mais uma edição de Portas Abertas-Rising Stars, para se ouvirem jovens músicos, interpretes e compositores, em início de carreira. O Dia de São Valentim, Dia dos Namorados é assinalado em vários registos. Na Fundação Gulbenkian, um Concerto de São Valentim com o Belcea Quartet que convida o violoncelista Jean-Guihen Queyras no Quinteto para Cordas de Schubert, em Dó Maior, D. 956. O quinteto com dois violoncelos, obra musical que provoca grande prazer, inquietude e perplexidade. É talvez a obra musical que mais fale directamente à alma e ao coração. Schubert escreveria “O produto da minha genialidade é a minha miséria, o que eu escrevi em minha maior angústia, é o que o mundo parece mais gostar.”
De Norte a Sul, o Dia dos Namorados é pretexto para muita música. São propostas algo desiguais, mas fica aqui o aviso. Em Aveiro, Beja, Coimbra, Faro, Viana do Castelo, Castelo Branco, Leiria, Lisboa, Porto e Vila do Conde, o Festival Às Vezes o Amor leva a essas cidades concertos com Rui Veloso, Jorge Palma, Deixem o Pimba em Paz (com Bruno Nogueira e Manuela Azevedo), Amor Electro, Aurea, Gisela João, HMB, Raquel Tavares, André Sardet, João Pedro Pais.
Teatro em Almada, na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, de 10 a 19 de Fevereiro, O Feio, de Marius von Mayenburg, com encenação de Toni Cafiero, que foi estreado no último Festival de Teatro de Almada. Uma parábola bem actual sobre o mundo das aparências e o recurso às operações plásticas que se tornaram triviais neste mundo em que os simulacros e simulações são quotidianos, por cá é assistir aos malabarismos dos nossos políticos PSD-CDS, e que nesta peça de teatro são encenadas usando a cirurgia plástica a que se submete o personagem principal em que a emenda é pior que o soneto.
Na Sala Principal, dias 11 e 12 de Fevereiro, Fã, um musical de Gaston Leroux inspirado no Fantasma da Ópera, com os Clã ao vivo numa encenação de Nuno Carinhas.
Em 2014, no Teatro Taborda, seis artistas grávidas representaram Consegues Ver os Teus Pés?, um texto poético-dramático sobre o reflexo nas suas vidas desse seu estado. Dois anos depois, essas seis artistas, agora mães, representam e são co-criadoras de Filhos das Mães, texto e encenação de Martim Pedroso, um texto que dá continuidade ao anterior reflectindo sobre filiação e a responsabilidade que assumiram. No Teatro Municipal São Luiz até 18 de Fevereiro.
No Teatro Nacional Dona Maria II, até 19 de Fevereiro, O Duelo, de Bernardo Santareno, comemora os 20 anos de O Útero, numa encenação de Miguel Moreira que utiliza com violência o texto e transmite essa violência aos actores, apoiado na música de Pedro Carneiro. Um espectáculo não aconselhável a menores de 18 anos.
No Porto, no Teatro Nacional de São João, A Noite da Iguana de Tennesse Williams pelos Artistas Unidos, que já esteve em Lisboa com grande êxito e que voltará ao Sul ao Teatro Municipal Joaquim Benite.
A finalizar, o circuito vai longo e diversificado, dois romances de Rachel Kushner: Os Lança-Chamas e Telex de Cuba. Livros de escrita poderosa e absorvente que agarram o leitor da primeira à última linha.
No primeiro, descreve de modo fascinante e bastante mordaz o ambiente dos dois lados do Atlântico nos anos 70, época de decadência das artes, de políticas radicais a baterem nos muros da sua inconsequência, de vidas fragmentadas nos acidentes dos becos em que se fecham, da voracidade de mudanças sociais sem rumo. No outro, a sordidez da comunidade americana na Cuba de Fulgêncio Baptista, de facto uma colónia norte-americana dominada pelas máfias, que levaram à revolução de Fidel de Castro que os expulsou da ilha em 1958, dando origem ao criminoso bloqueio que ainda persiste apesar de alguns muito tímidos recuos, mais aparentes que reais.
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