Em 2008 realizaste O Segredo, sobre o quotidiano de resistência e luta de António Dias Lourenço na prisão de Peniche, documentário, aliás, que mereceu o Prémio de Melhor Documentário Português no DocLisboa desse ano. Sentiste novamente uma urgência em preservar os testemunhos de militantes que lutaram para nos trazer a liberdade do 25 de Abril?
Há muitos anos que eu sinto isso, que é necessário escutar os testemunhos das pessoas que lutaram de facto pela nossa liberdade, antes que elas morram; ouvir através das suas histórias o que foi o Estado Novo, o que foi o Salazarismo. A sensação que eu tenho, hoje, é que os miúdos com 20 anos não sabem nada do que é que se passou. E o que me faz mais impressão é que não estamos a falar de uma História com 500 anos, estamos a falar de uma realidade mais ou menos recente. Há protagonistas da resistência e da luta que ainda estão vivos. Acho que é um problema português, parece que não se quer saber da história, vai-se esquecendo; é um país que não preserva a cultura. Eu já pensei que podia ser uma espécie de revisionismo, querer dizer que o Salazar não era fascista, querer dar um lado mais bonzinho ao personagem. Também existe isso, mas eu acho que é um problema mais de fundo da nossa identidade nacional.
A tua série abrange diferentes dimensões da luta na clandestinidade, salientando o carácter tentacular e opressor da ditadura do Estado Novo, até no domínio da vida privada. Cuidar destas memórias é, também, uma forma de resistires contra o branqueamento do passado?
Sim, claro. Há uns anos houve um concurso na televisão sobre quem os portugueses achavam que era o melhor português de todos os tempos. Quem ganhou? O Salazar! Eu fiquei lixado. Esse concurso é a génese do documentário com o Dias Lourenço (O segredo, 2008). Eu costumava ir a um restaurante nas Olaias em que o António Dias Lourenço lá ia também. Acabámos por nos conhecer, falámos várias vezes sobre as suas memórias de luta antifascista. Este homem esteve 17 anos na prisão, e houve outras pessoas que lutaram tanto, e este «povo» vota no Salazar… Nessa altura eu pensei em propor ao Dias Lourenço fazer com ele um documentário. A ideia original até nem era a sua fuga da prisão de Peniche, mas mais uma vez são as pessoas retratadas que me levam a fazer os filmes. Ou seja, os protagonistas é que me levam a fazer o filme que no fundo eles querem que eu filme.
Quando é que o projeto da série começou?
Estávamos em 2014, não havia trabalho, porque a crise no setor bateu forte, e foi quando começámos a fazer estes filmes/episódios, sem qualquer espécie de apoio financeiro, ninguém tinha um tostão. E o lado bonito desta série tem, também, a ver com isso; isto nasce por uma vontade minha, do Ricardo Machaqueiro (que foi dirigente da UEC), e do Paulo Guerra, mas depois juntou-se mais gente, desde artistas plásticos, músicos, técnicos, sempre trabalhando sem nunca ninguém perguntar quanto é que ia ganhar. É um trabalho que se começa sem pensarmos no dinheiro, e eu acho que essa entrega deu uma força interior a cada episódio. Por um lado, há esta garra de quem faz e de quem quer fazer este trabalho. Por outro lado, a ideia nunca foi tentar fazer um tratado político; isso, eu acho, que os livros o fazem melhor. O que nós quisemos foi acompanhar descrições de pequenos episódios do quotidiano de pessoas que resistiram e lutaram contra o fascismo em Portugal. Foi um trabalho coletivo que começou com o Paulo Guerra e o Ricardo Machaqueiro que, infelizmente, já morreu.
Juntos fizemos os dois primeiros episódios: Os médicos comunistas do Salazar e Os primeiros desertores (da guerra colonial). Eu era amigo do Ricardo, e ele tinha já um trabalho de recolha sonora com histórias de protagonistas da luta antifascista. E juntamo-nos, no fundo, para tentar fazer estes filmes/episódios. O núcleo duro desta série sou eu, o Ricardo e o Paulo. Através do Paulo e do Ricardo, consegui chegar, com alguma facilidade, aos protagonistas que participam na série.
Como é produzir uma série que parece lutar contra a influência da reportagem?
A produção desta série não tem grandes segredos, a ideia era ir filmando, apanhar as pessoas, conseguir pô-las a falar, num ambiente tranquilo, descontraído. E depois é montar, é saber montar. Nós começámos a filmar com o que tínhamos; as câmaras eram velhas, o material era todo tosco, mas tu sentes uma verdade naquelas coisas todas (os episódios). Isto tem a ver, obviamente, com as pessoas que são filmadas, com a maneira como as pessoas são filmadas, mas também porque há toda uma equipa atrás que está a fazer tudo aquilo, simplesmente, por paixão. A chegada dos ilustradores e dos músicos, mas também as fotografias de época, veio ajudar em muito a montagem das histórias. O segundo episódio, que retrata o quotidiano de dois desertores do exército colonial em Angola, foi dos episódios mais complicados de se resolver na montagem, e acaba por ser este episódio que nos obriga a criar um modelo para a série beneficiando da intervenção dos artistas plásticos e dos músicos, e, neste caso, das fotografias de Manuel Soto, um dos protagonistas do primeiro episódio que esteve na mesma zona em Angola.
«Eu prescindo de muita coisa técnica mas não prescindo da informalidade.»
Também foi importante podermos gravar a maioria das conversas numa sala de um pequeno restaurante, o Cantinho da Amizade. Cederam-nos a sala sem nos pedir um tostão. Eu prescindo de muita coisa técnica mas não prescindo da informalidade. Nada como um restaurante, uma tasca, onde haja uma mesa com uns copos de água ou um copo de vinho, se alguém quiser, uns cigarros, também, se alguém quiser fumar. Há uma lógica de reportagem na maneira como a série é feita, mas depois a maneira como se monta é que vai definir tudo. Por exemplo, nunca confundir ritmo com muitos planos, haver ao mesmo tempo uma atenção às durações justas, mesmo se ultrapassam, muitas vezes, o «tempo televisivo». Tudo isso, se quiseres, torna a coisa mais humana.
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