Uma editora moçambicana – uma grande surpresa na Feira

No universo dos pequenos editores na 89.ª Feira do Livro de Lisboa, de súbito tropeça-se com um grupo de livros, estacionados num canto cedido por uma pequena editora, que é uma verdadeira surpresa: as edições da EPM.

Capa de «Wazi», com texto de Roberto Manjate e ilustrações de Celestino Mudaulane
Créditos / pinterest.com

A Feira do Livro reserva sempre algumas surpresas. As grandes editoras que desde há alguns anos se têm concentrado em grandes grupos mantendo muita da autonomia e identidade das que vão adquirindo, embora algumas colecções tenham desaparecido ou tenham entrado em estado comatoso, usam, e bem, a Feira do Livro para se afirmarem com várias iniciativas, de que a mais comum são as sessões de autógrafos, agora complementadas com as selfies. É um saco onde coexistem escritores respeitáveis e de assinalável obra, escritores assim-assim mesmo que tenham obra premiada e outros que muito vendem sem que isso lhes apure a escrita.

As grandes surpresas descobrem-se nas pequenas editoras que encontram na Feira do Livro espaço privilegiado para dar a conhecer o seu trabalho. É um mundo mutável de ano para ano. Muitas não resistem à voragem da economia e ao tratamento subalterno que as livrarias lhe concedem, porque também aqui a concentração é feroz. Muitos desses espaços do comércio livreiro integram o universo dos grandes grupos editoriais. Nesse campo têm um peso nada despiciendo as grandes áreas comerciais com secções dedicadas aos livros; 60% dos locais de venda de livros são em hipermercados, com tratamento igual aos dos legumes, carnes, peixes, etc., congelados ou frescos, o que condiciona obviamente a selecção, dado o peso no volume das vendas e inevitáveis repercussões nas políticas editoriais. O marketing em todo o seu esplendor.

«As grandes surpresas descobrem-se nas pequenas editoras que encontram na Feira do Livro espaço privilegiado para dar a conhecer o seu trabalho.»

 

O trabalho das pequenas editoras é um trabalho de resistência, contra a corrente dominante, em que é justo destacar os excelentes editores que trabalham nos grandes grupos editoriais. Nesse universo, o dos pequenos editores na 89.ª Feira do Livro de Lisboa, de súbito tropeça-se, é o verbo adequado, com um grupo de livros, estacionados num canto cedido por uma pequena editora, que é uma verdadeira surpresa: as edições da EPM.

Escola Portuguesa de Moçambique/Centro de Ensino e Língua Portuguesa. São edições coordenadas por Teresa Noronha, que produziram um catálogo pequeno, mas diversificado.

Está organizado por colecções que evidenciam critério seguro com objectivos didácticos e pedagógicos:

na colecção «Pensar a Educação», editam-se livros de reflexão sobre as práticas pedagógicas, que procuram aferir as teorias com a realidade empírica, numa dimensão multicultural, dada a escola ter alunos de dúzia e meia de nacionalidades;

a «Infanto-Juvenil», onde se intenta incentivar a literatura infanto-juvenil e criar as bases para que um núcleo de jovens autores moçambicanos se cimente e cresça, de forma acompanhada e com um mínimo de «rede», de regularidade de edição e de distribuição; tendo-se até agora distinguido nesta colecção Pedro Pereira Lopes, que vai agora lançar o seu primeiro livro de contos para «adultos», Celso Cossa, Mauro Brito e Helder Faife;

a colecção «Estórias que Tecem a História», livros de entrevistas, que pretendem através de histórias pessoais contribuir para a construção duma outra narrativa histórica-quotidiana, realçando figuras que enriquecem o tecido sócio-intelectual do país e são modelos de liberdade e de excelência nas suas áreas. O fotógrafo Kok Nam (um «chinês em África», que foi um dos expoentes da «escola de Maputo» e o fotógrafo oficial de Samora) e José Forjaz, um dos grandes arquitectos africanos, foram os primeiros entrevistados nesta colecção que colige igualmente imagens antológicas dos entrevistados, e que tem tido a colaboração de António Cabrita;

a «Colecção Contos e Histórias de Moçambique», com uma notabilíssima recolha de histórias tradicionais em livros muito bem ilustrados, com a particularidade de serem distribuídos gratuitamente pelas escolas de Moçambique para o fomento da leitura e para que o imaginário popular não seja varrido pelo tempo; sendo variações dos melhores escritores moçambicanos em torno das fábulas, colecção que integra nomes como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Kossa, Rogério Manjate ou Marcelo Panguane, para só referir alguns dos autores desta primeira série de 12 livros.

Há ainda colecções e extra-colecções em que se revelam novos escritores, poetas, artistas plásticos e trabalhos de escrita e desenho de alunos das escolas; livros sobre a arte em Moçambique, antologias de poetas – como a do Virgilio de Lemos – e outros curiosos «ovnis», como uma colectânea de poesia de intervenção com poetas dos PALOP.

O grafismo, em quase cem por cento do excelente aguarelista e gráfico Luís Cardoso, é óptimo, devia ser olhado com atenção por muitos dos ataviados designers das editoras continentais.

Tem outras iniciativas em destaque e nas quais se publicam originais, como a «Colecção Acácias», com o formato de quatro livros de autores lusófonos e que se reúnem em caixas de grande apuro gráfico. Dez caixas de pequenos livros de até 64 páginas, cuja direcção editorial esteve a cargo de António Cabrita, e onde foram publicados inéditos de portugueses, moçambicanos e brasileiros, sobretudo numa porta de entrada para o que de melhor a literatura lusófona tinha para oferecer, num incentivo para a conhecer. Aqui publicou por exemplo o poeta Mbate Pedro, o melhor poeta moçambicano desde Luís Carlos Patraquim, ou João Paulo Borges Coelho.

«O preço dos livros, em média 10% do salário mínimo, é outro obstáculo acrescido do preço de produção dos livros.»

 

Os problemas desta pequena editora são muitos. Num país que percorre os caminhos da alfabetização – quando Moçambique se tornou independente havia 90% de analfabetismo, tendo esta percentagem sido actualmente reduzida para 50% –, a presença de iliteracia entre esses falantes de português é calamitosa. Em Moçambique há pelo menos 14 línguas, algumas delas com raízes semânticas comuns e que se entendem entre si, e o português é uma língua sobretudo urbana. O preço dos livros, em média 10% do salário mínimo, é outro obstáculo acrescido do preço de produção dos livros. Os custos de impressão em offset de um livro são cerca de três vezes superiores aos mesmos em Portugal. E ainda que se possam produzir em Portugal ou noutro lugar qualquer, em detrimento da economia moçambicana, acrescem os custos ligados ao transporte e desalfandegamento dos mesmos, o que duplica os custos de produção e faz com que os preços ao consumidor disparem.

O outro, não menos relevante, é não existir uma rede de distribuição, por as livrarias e os espaços onde se vendem livros estarem concentrados na capital, Maputo. Para dar a volta a essa situação têm sido procuradas parcerias com editoras de países de língua portuguesa.

As respostas fazem-se esperar, até hoje só uma editora brasileira firmou essa ligação. Uma luz de esperança ao fundo do túnel que com muita perseverança e competência a EPM está a percorrer.

Deveria a CPLP olhar e dar apoio a este projecto, nem que fosse meramente logístico, pelo efeito multiplicador que poderia e deveria ter noutros países da comunidade.

Olhar para esse caleidoscópio coloca-nos frente a uma realidade que nos é distante, mesmo algo estranha, a de uma vida cultural muito mais intensa do que se poderia supor e de uma actividade editorial que, num país com conhecida grave situação económica, enfrenta dificuldades de toda ordem e espécie mas que neste caso se consegue superar de forma nada banal e com imaginação.

E dá-nos a conhecer um universo que ultrapassa largamente o que conhecíamos por via de escritores consagrados como Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, Paulina Chiziane, que encontram albergue em grandes editoras.

Alguma dessa factualidade vai sendo conhecida, nomeadamente na revista on-line Caliban e pelos textos de António Cabrita, emigrado em Moçambique há uns anos, efervescente escritor e poeta que quem o conhece só o pode imaginar a manter a chama bem acesa dessa fogueira.

Mas a outra está agora bem presente para nosso gozo e alumbramento num discreto canto do STAND A26, ARIANA EDITORA, DA FEIRA DO LIVRO. Onde se mostra que as teimosias valem a pena e como a EPM-CELP é um exemplo de verdadeira prática lusófona – um exemplo pioneiro que merecia reconhecimento e ser replicado.

Visite-o, para também se surpreender e celebrar o trabalho de Teresa Noronha, a coordenadora das edições EPM-CELP.

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