Com os anos as palavras diluíram-se em novas e pudicas tendências. Substituiu-se o conceito de popular ou de coletivo, de trabalho ou de cultura, por outros menos resistentes à lei dos caminhos feitos, como diria Manuel da Fonseca. Fala-se, hoje, de popular apenas pela característica da popularidade, da massificação, e não pela sua natureza, por aquilo que é do povo. Aquilo que é, de facto, popular e coletivo, por exemplo, parece frustrar a fruição individual de todas as coisas, obriga-nos a existir com os outros, a coexistir, a construir algo que não é só nosso, deixando o mundo órfão de individualismo. É no popular e no coletivo (aquilo que é feito e promovido por nós, em conjunto) que a voracidade da mercadorização perde a sua força e se retrai e, por isso, são palavras malditas, que precisam de ser reformadas ou substituídas, até à sua extinção. Mas por mais que essa voracidade tente obstruir os caminhos para o futuro, os indivíduos vão sempre precisar de encontrar uma forma de se reunir, de se manifestar e de partilhar aquilo que os liga.
Não sei, nem tenho pretensões de encontrar uma definição para Cultura, mas creio que não andará muito longe deste fenómeno de produção e manifestação coletiva e popular, desta construção criativa e reativa ao que nos rodeia e da sua partilha – da gastronomia ao folclore, da arte aos rituais, da língua ao conhecimento. A Cultura é a malha que tece o nosso entendimento do tempo e do espaço que partilhamos e onde nos identificamos. É por isso que este é um tema central da nossa relação coletiva e exige uma resposta política que também proponha a estrutura de apoio público, de estímulos e de produção da expressão cultural dos indivíduos e das populações.
No momento em que somos convocados para decidir a composição da Assembleia da República será importante perguntar o que defendem os partidos para a Cultura do país, qual a sua conceção cultural, as suas prioridades e qual é para si o papel da Cultura no panorama do desenvolvimento social das comunidades e na sua relação.
A Cultura tem, porém, um bloqueio: para os pragmáticos, os empreendedores, os fazedores, falta-lhe tangibilidade. Não imaginam que haja uma dimensão da nossa vida que não tenha uma etiqueta com um preço, que não represente uma despesa ou que não seja lucrativa. Nas últimas décadas, sobretudo após a violência das crises do capitalismo sobre o trabalho, foram muitos os trabalhadores da Cultura, até então convencidos de que se caminhava no sentido de combater a precariedade no setor, que se viram obrigados a encontrar novas abordagens para vender a sua força de trabalho: fizeram formação de formadores, pós-graduações de gestão cultural ou workshops em marketing cheias de análises swot e folhas de cálculo. Ao primeiro sinal de abrandamento económico, a Cultura é o primeiro alvo do ataque a tudo o que não traga um retorno financeiro considerável aos mesmos que provocaram a própria crise.
«Não imaginam que haja uma dimensão da nossa vida que não tenha uma etiqueta com um preço, que não represente uma despesa ou que não seja lucrativa.»
Do património cultural material à criação artística, passando pelo movimento associativo popular e pelos equipamentos públicos, a Cultura foi sendo arrasada por políticas neoliberais, de desinvestimento e de entrega aos interesses privados. São os museus invadidos por instituições bancárias e outros mecenas; é a apologia do trabalho precário; é a falta de investimento em equipamentos para a criação, produção e fruição cultural; é o agravamento do domínio de pequenas elites nas cidades; a apropriação do trabalho das comunidades e do seu movimento associativo por alguns autarcas oportunistas e sem projeto; é a desvalorização do trabalho, os baixos salários e a falta de meios dos trabalhadores da administração pública no setor; é o monopólio de espetáculos pelas empresas de entretenimento e pelos «agentes culturais» que ali parasitam, vendendo influência e pacotes de artistas; é a total ausência de uma política de serviço público para a rádio e televisão onde, por vontade de alguns trabalhadores, vamos assistindo a alguns movimentos de resistência; é a ausência da cultura popular nos media e na programação dos equipamentos públicos que – qual contradição em termos! – se encerra no seu elitismo de classe.
Nos últimos anos, as opções políticas do Governo do PS foram operacionalizadas por dois ministros nos quais podemos identificar uma mensagem neoliberal muito clara. Graça Fonseca e Pedro Adão e Silva, apesar da diferença na forma, não divergiram no conteúdo e a substituição na pasta acabou por ser feita apenas pelo desgaste da imagem da antiga ministra. Mas se, com Graça Fonseca, a Cultura foi enfiada na pasta do «empreendedorismo» e a atividade cultural tratada como projeto de startup, com Adão e Silva conhecemos um discurso mais agressivo, com a apologia da precariedade, da entrega de certas áreas, como museus e património cultural, aos privados, com o financiamento aos grandes grupos de media e com a recusa em investir mais na criação e na produção artística. O PS mais à direita de sempre esteve, ao longo destes anos, em áreas que determinam de forma inequívoca o mundo em que queremos viver – as Relações Internacionais e a Cultura. A certa altura, em cada (escassa e discreta) declaração de Adão e Silva só apetecia repetir a indignação de Nanni Moretti em Abril: «Diz qualquer coisa de esquerda!»
Com um orçamento do qual metade é transferido para a RTP, o Ministério da Cultura sob tutela do PS avançou com mais uma reforma, que não resolve o problema estrutural do subfinanciamento. A exigência dos movimentos em defesa da Cultura, de 1% do Orçamento do Estado para a Cultura, seria um mínimo indispensável para o setor não continuar a viver abaixo da linha da água. A insuficiência dos apoios da Direção-Geral das Artes não é resolvida com a integração desta e de outras direções-gerais noutras estruturas, nem com a mesma falta de trabalhadores, mas sim com mais investimento e com a valorização das carreiras na Administração Pública e a contratação de mais técnicos.
As necessidades e urgências com o Património Cultural Material não se resolvem com a desresponsabilização da Administração Central através de transferências de competências. A missão dos museus – de salvaguarda e divulgação dos acervos – não se cumpre com reformas de autonomia, que só servem para estas instituições públicas, enfraquecidas pela falta de investimento público, ficarem dependentes dos mecenas do investimento privado, que ali andam para lavar a imagem e receber benefícios fiscais.
«A insuficiência dos apoios da Direção-Geral das Artes não é resolvida com a integração desta e de outras direções-gerais noutras estruturas, nem com a mesma falta de trabalhadores, mas sim com mais investimento e com a valorização das carreiras na Administração Pública e a contratação de mais técnicos.»
Apesar de não ter tido espaço para discussão ao longo dos debates entre os representantes das forças partidárias que vão a eleições, mesmo depois da observação de Paulo Raimundo, representante da CDU, em que o tema merecesse uma discussão séria, a Cultura não deixa de estar presente nas opções que cada partido faz noutras áreas, da educação à saúde, passando pelo ambiente, pelas políticas para a juventude ou para os pensionistas. A conceção que cada um tem da Cultura também define muito aquela que é a sua conceção de uma sociedade livre, mais justa, mais avançada, emancipada e desenvolvida. É cada vez maior a urgência de uma política cultural que aproxime as populações, que lhes devolva o espaço público, que lhes dê as ferramentas para a emancipação e para o sentido coletivo de produção e fruição, que estimule a criação artística e que salvaguarde a riqueza patrimonial (material e imaterial). Tudo isto só se faz, em primeiro lugar, valorizando o trabalho e os salários dos trabalhadores da Cultura, envolvendo o movimento de massas na construção de um orçamento para a Cultura e retirando ao Ministério das Finanças o poder de decidir sobre o que é e o que não é passível de ser valorizado.
No dia 10 de março também a Cultura irá a votos. É sobre o país em que queremos viver e que futuro podemos construir que iremos decidir, ao decidir sobre a composição da Assembleia da República para a próxima legislatura. Para lá dos slogans, dos lugares-comuns e de inovações retóricas para distrair, é esse horizonte de uma sociedade onde todos têm direito a uma cultura integral, de uma sociedade emancipada e livre que temos de ambicionar.
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