Os japoneses, desde sempre, adoraram peixe fresco. Com o aumento da população, a quantidade de peixe nas águas costeiras do Japão tornou-se insuficiente para alimentá-la. Foi assim necessário investir em embarcações capazes de pescar em zonas cada vez mais afastadas da costa para colectar a iguaria.
Contudo, o aumento da quantidade não agradou aos consumidores, que começaram a rejeitar o peixe, visto que não apresentava a frescura pretendida, tendo em conta o número de dias no mar.
Ao depararem-se com esta situação, os nipónicos procuraram alternativas. Inicialmente congelaram o peixe em alto mar, medida que continuou a não ser muito satisfatória, nem para os consumidores, uma vez que eram capazes de distinguir a diferença entre o peixe fresco e o congelado, nem para os pescadores que, agora, competiam com a restante gama de peixe congelado e viam o seu produto perder valor de mercado.
Dado o insucesso da medida, optou-se, então, por colocar tanques com água salgada nos navios de pesca e aí armazenar o peixe até chegar à costa. Ainda assim, dada a falta de espaço no tanque e a estagnação da água, os peixes acabavam por permanecer no tanque vivos mas imóveis, algo que alterava o seu sabor, segundo o palato atento dos consumidores.
A solução final encontrada foi a inclusão nesses mesmos tanques de pequenos tubarões que animavam os outros peixes a fugir e a estar em movimentação constante, tendo em conta a perseguição de que eram alvo. Assim, os peixes mantinham-se activos e frescos até chegar ao consumidor final.
Esta pequena história alimenta, hoje em dia, uma ideia tantas vezes difundida pelo capital: o empreendedorismo. Dando, inclusive, nome a uma série americana cujo formato já foi também replicado em Portugal – o Shark Tank, lago dos tubarões.
Com esta parábola, pretendem passar-nos a ideia de que a melhor forma de inovar é investir e correr riscos e que o melhor estímulo que temos é o da sobrevivência, ou melhor, o medo de sermos comidos por um tubarão.
No meu entender, esta ideia parte de pressupostos errados: o medo não é um aliado do empreendedorismo e da inovação. Antes pelo contrário, várias pesquisas mostram que o medo da falência potencia más decisões de investimento. Quanto mais difícil é a situação de quem investe, pior é o seu discernimento na hora de tomar a opção correcta.
É surreal acreditar que o medo é a melhor forma de estar no mercado e de empreender. Pelo contrário, quanto menor é o risco do pequeno empreendedor, maior é a sua vontade de investir. Em França, por exemplo, a implementação de uma medida, que permitiu aos desempregados que iniciam um novo negócio manter os seus subsídios, potenciou um aumento de 25% do índice de crescimento de novos negócios.
Durante anos, as mentiras sobre as maravilhas do empreendedorismo foram amplamente disseminadas por vários agentes económicos e governamentais. A ideia de que cada um é responsável pelo seu destino encontra-se amplamente estabelecida, mesmo com as evidências actuais: negócios que abrem falência logo no primeiro ano e outros que, apesar de se manterem abertos, deixam os seus proprietários reféns, não permitindo que deles retirem os rendimentos necessários para subsistirem.
Empreendedorismo financeiro
Para além da inovação, que se manifesta na criação de serviços ou produtos, o empreendedorismo estende-se também ao mercado de capitais, a bolsa. Esta modalidade, tem atraído imensa gente, sobretudo jovens, que procuram incrementar as suas poupanças com este tipo de investimento.
Quando falamos em bolsa, a imagem que automaticamente nos vem à cabeça é aquela, imortalizada em filmes norte-americanos, de dezenas de corretores suados numa sala cheia de monitores, aos gritos uns com os outros, proferindo palavras como «compra» e «vende» de forma histérica. No entanto, no mundo actual estas caricaturas já foram há muito esquecidas.
Existem várias formas de investir na bolsa, uma das opções é através de um fundo de investimento onde um grupo de profissionais escolhe as acções. O seu papel é investir e distribuir os lucros e as perdas de forma proporcional ao investimento de cada participante. Outra é através de clubes de investimento que são, geralmente, grupos mais pequenos compostos por amigos e familiares e, outra via ainda, é através do investimento individual.
Neste último, também podemos ter dois grupos: uns que procuram comprar acções para vender a longo prazo e outros que preferem fazer compra e venda de acções no mesmo dia, o famoso day trading. O objectivo, aqui, é procurar ganhar dinheiro aproveitando as oscilações diárias do mercado.
Para efectuar este tipo de operações, existem, actualmente, uma série de aplicações na internet, com grande visibilidade. corretoras online norte americanas, como a TD Ameritrade, E*Trade e a Charles Schwab divulgaram, recentemente, que abriram números recorde de novas contas, sobretudo durante a pandemia.
Apesar de não existirem números oficiais por país, a corretora Degiro divulgou também um aumento de 265% de contas em todos os países, no primeiro semestre deste ano por comparação com 2019, tendência que é também acompanhada por Portugal.
Vários factores são apontados para este aumento. Alicerçados à ideia de que em cada um de nós existe um empreendedor em potência, concorrem também factores como o isolamento provocado pela pandemia e o fim dos campeonatos desportivos que culminou no fim das bolsas de apostas e na transferência de centenas de utilizadores para a modalidade de day trading.
Há também que destacar o trabalho desenvolvido pelas corretoras para simplificar o processo de compra e venda de acções. A RobinHood, por exemplo, diz ter como missão a «democratização» do mercado, permitindo que todos tenham a possibilidade de vender e comprar títulos. Outras plataformas seguiram esta estratégia e apresentam, agora, plataformas jovens, modernas e com uma interface semelhante a jogos de computador para atrair os ditos investidores.
Talvez, com isto, seja fácil de justificar que, nesta plataforma, operem maioritariamente homens, cerca de 80%, com uma idade média de 37 anos, correspondendo ao mesmo público-alvo das bolsas de apostas desportivas.
Contudo, as intenções deste tipo de empresas vão muito para além da dita «democratização» do mercado. Como explicar que, durante a pandemia, empresas como a Nikola, que se posiciona como concorrente da Tesla, mas que, contudo, ainda não produziu um único automóvel, e a Hertz, empresa do sector de renting automóvel, um dos mais afectados pela pandemia, foram, respectivamente, a segunda e a quarta no ranking de acções mais detidas pelos investidores?
Estes factores ajudam seguramente a explicar a extraordinária recuperação dos principais índices da bolsa, após a queda provocada pela pandemia. O FMI, por exemplo, já admitiu que a diferença entre o valor das acções e os valores estimados para os activos está em máximos históricos, em grande parte das economias.
Conta a lenda que Joseph P. Kennedy, pai de John F. Kennedy, ao receber uma dica de investimento do seu engraxador de sapatos na rua, retirou todo o seu dinheiro do mercado, evitando assim o impacto do crash da bolsa de 1929. O Sr. Kennedy percebeu, na altura, que ter um grande conjunto de peixes pequenos e assustados a nadar com ele no mesmo tanque não seria benéfico para as suas economias.
Poderíamos ser levados a pensar que o day trading é apenas prejudicial para aqueles que estão no mercado e que, para salvaguardar poupanças, basta não estar neste mercado. Mas como provou o crash de 1929, o mercado de capitais tem um impacto global na economia, quer nos que estão nesse mercado, quer nos que não estão. Assim, uma acção irresponsável por parte dos corretores, procurando lucros imediatos, terá efeitos catastróficos na nossa economia a longo prazo.
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