Mais do que nunca, e perante a ameaça da escalada do conflito, precisamos de nos envolver em organizações e iniciativas que não nos coloquem de um ou de outro lado da batalha, mas que tenham como lema e objetivo bem claro a oposição ao envio de armas e a defesa da Paz, do cessar fogo e das vias do diálogo.
Atacar e defender nesta guerra não é do interesse de nenhum dos povos. O nosso interesse é a paz entre nós e a guerra a quem nos quer colocar a todos numa trincheira que não é a nossa, que não é a dos que lutam pela Paz, pelo desarmamento, por um mundo onde a violência e a morte não seja a realidade que temos todos de aceitar e de viver.
Nas velhas histórias é, às vezes, a voz dos loucos ou das crianças que nos traz a lucidez necessária ao momento. Penso nisto quando ouço a miúda curiosa que espreita o telemóvel da mãe no banco em frente do metro de Lisboa. No telemóvel passam em loop notícias de guerra, e, lendo pelas imagens ou relembrando alguma conversa preocupada, ela sentencia do alto dos seus aparentes cinco anos: «Quase de certeza que vão proibir a guerra mãe, não viste que na escola não houve a festa de Natal? Não podem estar muitas pessoas juntas.»
Entre os sorrisos condescendentes às suas palavras e as expressões onde adivinhamos alguma reflexão ou a preocupação destes dias com a exposição das crianças às notícias da guerra, o metro segue com as pessoas que vão para os seus empregos, as suas casas e as suas vidas. A Guerra é o assunto diário estas semanas em nossas casas, a pandemia de Covid-19 ficou para segundo plano.
Penso no que representará a escalada deste conflito na Europa, nas condições em que ele se tem desenvolvido e se agrava nas últimas semanas para a grande maioria destas pessoas, essas que usam o metro e vivem do seu trabalho. As pessoas que , em cima de uma pandemia que já as inferniza há dois anos, adivinham uma crise económica e enfrentam as restrições no seu dia-a-dia. As mesmas que seguem a correria para as suas casas e para os seus empregos.
A esta grande maioria, os que nunca ganharam nada com a guerra, mas que tiveram os seus avós a lutar na frente, perdendo saúde, morrendo ou sobrevivendo em países destruídos pelas bombas, é preciso convencer sempre da inevitabilidade da guerra, da sua necessidade premente. Ela não é uma desconhecida novidade para ninguém, mas é vendida como se fosse, e como se fosse sempre uma necessidade.
Em Portugal, a de que nos lembramos e aquela de que ainda hoje sofremos as consequências e os traumas a todos os níveis, é a Guerra Colonial. Para os povos de outros países são outras, mais próximas ou mais distantes no tempo. Eduardo Galeano, diz-nos nas suas palavras lúcidas que «os que decidem sobre a guerra nunca dizem a verdade aos que têm de lutar na Frente que a guerra é para roubar, matar e morrer, que a guerra é por dinheiro, recursos ou território, eles dizem-nos sempre que a guerra tem razões nobres, que ela se trava por causa da Pátria, da Paz, da Justiça ou de um Deus...»
Assim, os poderosos que «autorizam» a guerra, mesmo proibindo tudo o resto nesta pandemia, usam dos seus meios para nos convencer a todos de que o caminho, por estes dias, é o caminho da direcção única: uma vez mais a guerra é inevitável é preciso escolher o lado pelo qual torcer. E, num discurso repetido por séculos de domínio, dizem-nos que é necessário comprar e pagar armas e soldados com o rendimento do nosso trabalho, aceitar o crescimento e o lucro da indústria do fogo e do nuclear. Aceitar a guerra, tolerar a violência e a morte porque, afinal de contas, ela «sempre há-de existir», como aliás a pobreza, a exploração e as outras mil violências diárias a que os homens e as mulheres são sujeitos.
Precisamos de aceitar e escolher a nossa trincheira. Igual a tantas outras, esta tem dados novos. E assim, nas mãos de empresas poderosíssimas, a comunicação social a que a maioria tem acesso vende-nos, estas semanas, e em primeiro lugar, a ideia de uma Europa em Paz, assente nos humanistas valores do «Ocidente», apagando, as imagens dos refugiados das guerras que a NATO semeou no Médio Oriente, dos campos enlameados e das fronteiras de arame farpado nas suas modernas democracias. Israel, país que não reconhece e ocupa a Palestina há décadas, pasme-se (ou não!), é apresentado como país negociador entre os dois lados do conflito. A NATO como bastião defensor dos «valores da democracia».
«Aceitar a guerra, tolerar a violência e a morte porque, afinal de contas, ela "sempre há-de existir", como aliás a pobreza, a exploração e as outras mil violências diárias a que os homens e as mulheres são sujeitos.»
Correm os dias em que a comunicação considerada mais eficaz e o trabalho jornalístico considerado mais valorizado é aquele que dá a informação mais curta, aquela que funciona em clarões rápidos, e por isso fatais para qualquer reflexão minimamente aprofundada. Quem paga a guerra, não tem direito a ouvir falar dela noutros moldes senão os traçados superiormente.
Quem ousa por vias alternativas, mesmo em países de livre expressão como o nosso, falar dos já longos conflitos no Leste da Europa, apontando as causas e dizendo que a sua análise é essencial na busca de soluções, é silenciado. Também o é quem aponta a clara intervenção da NATO neste território, como em tantos outros territórios pelo mundo, e o interesse das empresas multi-milionárias de venda de armamento.
O jornal Expresso, com grandes fotografias de rosto, rotula de «Pró-Putin» vários generais que não seguem o discurso oficial. Não podemos senão ouvir a voz única, a que nos mostra até o charme do camuflado. Dizem-nos que temos de escolher o camuflado russo ou o ucraniano, apresentando-nos nesta estação o ucraniano como a opção mais correta.
Por estes dias, juntamente com a Miss Ucrânia, fotografada de armas nos braços e padrão militar, Zelensky é elevado a herói mundial e defensor da sua pátria. Vladimir Putin, antes recebido pelos mais destacados líderes europeus e apadrinhado na sua política conservadora, expansionista e destruidora do Estado Social, é remetido à categoria de ditador «louco e diabólico».
Há um movimento já para propor a nomeação de Zelensky a prémio Nobel da Paz, e toda uma estetização pop da sua imagem concorre com a censura de filmes e literatura russa em vários festivais e eventos por toda a Europa. Nem precisavam de proibir Tchaikovsky porque já ninguém o ouve com o barulho das bombas desde 2014, e, ainda assim, há quem o sugira sem nenhuma vergonha.
O clima de caça às bruxas parece aceitável e vem justificado nos jornais por intelectuais, que demitindo-se do seu papel de estudo e análise rigorosa dos factos, se colocam no papel de idiotas úteis. Apelam à análise simplista, omitem acontecimentos e, tendo vivido outras épocas e escrito antes sobre outros temas, chegam a espantar-nos hoje com a sua falta de memória histórica e capacidade de análise racional factos. Mas, habituados a outras guerras, que como nos diz Galeano, sempre tiveram de ser justificadas com belas palavras, no meio das notícias falsas e comuns neste cenário, sabemos que vivemos tempos em que a informação circula, a partilha de informação entre quem resiste e quer a Paz é possível, e as palavras encontram, ainda assim, caminho no nosso esforço, no nosso trabalho para as escrever e para as fazer circular. Elas podem ser luz, lucidez e esperança possível.
Ainda podemos destacar e ver claramente os factos se procurarmos para lá da propaganda de guerra, mas também se observarmos a propaganda de guerra e a forma como ela é veiculada, em particular a valorização da guerra como um espectáculo e como uma inevitabilidade. Se pensarmos e alertarmos os outros sobre as consequências que este conflito já está a ter na nossa vida diária, na nossa liberdade e no ambiente social criado nestas últimas semanas. Vejamos estes. O actual Presidente da Ucrânia, desde o início do seu mandato mão tolerante para as milícias nazis e seus desfiles em várias cidades do seu país, proíbe partidos políticos com uma posição diferente da sua, ilegalizando quase uma dezena de organizações legalmente constituídas no seu país.
Isto acontece sob o olhar compreensivo da «Velha Europa», essa que nunca poupou críticas ao mesmo tipo de atuação em outras latitudes. Dá-nos disso conta a recente notícia do Diário de Notícias.
Zelensky tem também, neste cenário, mão pesada para os homens com mais de 18 anos que ousem «fugir da frente de batalha», tendo decido que ficam dentro das fronteiras do território. Negando e dificultando os corredores humanitários consagrados no Direito Internacional. Têm-nos passado assim pelos ecrans, como dramáticas mas heroicas, imagens de jovens sem qualquer treino militar, pais com filhos pequenos e homens de várias idades, convencidos e obrigados pelo governo ucraniano a ficar nas suas casas e a combater. Não é escondido que são impedidos de sair e separados da sua família. Apresentam-nos os mesmos ecrans as mulheres, representando o papel a que a barbárie sempre as remeteu: o de fugirem com os filhos para os abrigos, o de chorarem os homens, e o de se refugiarem em países que as acolham. Tudo banalizado e tido como a ordem normal dos factos e acontecimentos, em pleno século XXI. O Presidente pediu até há poucos dias que a Lei Marcial se prolongue até ao final de abril.
Em toda a Europa, em Portugal também, reconhecidos neo-nazis, alguns deles com cadastro, fazem apelo à solidariedade com o governo da Ucrânia, chegando mesmo a mobilizar-se para partir, e a treinar com as milícias que já existem no terreno.
O que fazemos nós, os que usamos o metro todos os dias? Os que queremos Paz e queremos trabalho, dignidade e vida feliz, tempo de vida e saúde? Os que nos importamos e somos solidários com os refugiados destas guerras? Que neles reconhecemos «vidas iguais às nossas»? Que não desejamos para as crianças da Ucrânia a mesma sorte dos seus pais e avós, mergulhados no clima de guerra e de ascensão de ideias fascistas há anos a fio?
Na segunda década do século XXI, depois de todo o caminho e de todos os avanços no reconhecimento da igualdade entre mulheres e homens, de todo o conhecimento que temos sobre as marcas da violência, do sofrimento das mulheres e das crianças na guerra, depois de todas as conquistas sociais e democráticas que os povos dos vários países da Europa conseguiram ao longo do século XX, depois da construção de um Direito Internacional que possibilitaria a resolução diplomática destes conflitos, é ainda possível a aceitação acrítica de tal cenário?
Restar-nos-á, uma vez mais, como afirmou tristemente o primeiro-ministro António Costa, «disponibilizar, em cinco dias, as nossas forças militares ao abrigo da NATO Response Force, no âmbito de uma força conjunta multinacional» para defesa da Ucrânia?
«Num momento em que vemos a urgência de aumentar os salários, de investir na Educação, na Saúde e na Cultura, e o Governo do PS nos responde que não há condições numa época pós-pandemia, como podemos aceitar que as haja para enviar armamento e outros recursos?»
O que diremos sobre a estratégia dos governos europeus? A decisão de pagar com os nossos impostos armas, escalada de violência e crise militar no terreno, que já está a provocar um aumento dos combustíveis e, consequentemente dos preços dos bens de consumo? Podemos sujeitar-nos a despender recursos económicos necessários ao desenvolvimento e à melhoria das nossas condições de vida, num conflito que em tudo prejudica os povos da Europa?
Num momento em que vemos a urgência de aumentar os salários, de investir na Educação, na Saúde e na Cultura, e o Governo do PS nos responde que não há condições numa época pós-pandemia, como podemos aceitar que as haja para enviar armamento e outros recursos?
Podemos concordar com sanções financeiras que deixarão intocáveis as fortunas dos milionários, como já vimos em outros cenários, mas que tornarão pior a vida dos trabalhadores e das suas famílias tanto na Rússia, onde já há uma crescente rejeição da política belicista e expansionista de Putin, como em outros países da Europa e mesmo no nosso?
Como defensores da Paz, como aqueles a quem não interessa de todo esta guerra, nem todas as que se passam no mundo, por mais que nos ordenem seguir a voz de comando, precisamos de dizer de forma inequívoca e unida que a defesa da Paz não se consegue enviando tropas e armas. As armas e os recursos enviados por Portugal e por outros países da Europa não servirão para defender o povo da Ucrânia contra o povo da Rússia. Servirão para continuar a impedir o diálogo, o caminho do cessar-fogo, o cumprimento dos acordos de Minsk. Servirão para alimentar a máquina de guerra, o negócio do armamento, do nuclear, a acumulação de lucro dos milionários que vivem da guerra e da destruição de vidas e países.
Mais do que nunca, e perante a ameaça da escalada do conflito, precisamos de nos envolver em organizações e iniciativas que não nos coloquem de um ou de outro lado da batalha, mas que tenham como lema e objetivo bem claro a oposição ao envio de armas e a defesa da Paz, do cessar-fogo e das vias do diálogo.
Atacar e defender nesta guerra não é do interesse de nenhum dos povos. O nosso interesse é a paz entre nós e a guerra a quem nos quer colocar a todos numa trincheira que não é a nossa, que não é a dos que lutam pela Paz, pelo desarmamento, por um mundo onde a violência e a morte não seja a realidade que temos todos de aceitar e de viver.
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