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Fascismos em marcha acelerada

Ao contrário do que nos querem fazer acreditar os fascistas, a extrema-direita europeia nunca foi isolada. Deram-lhe sempre corda por saberem que contam com eles na primeira linha do combate às esquerdas consequentes.

CréditosGiuseppe Lami / EPA

Vive-se um tempo em que há um substancial ressurgimento reaccionário que se verifica e consolida com os avanços da direita e extrema-direita por toda a Europa. Não são os fascismos clássicos, apesar das referências explícitas e nostálgicas aos regimes dos anos vinte e trinta do séc. XX, em que as referências mais explícitas são metidas nas gavetas durante os períodos eleitorais, mantendo todo o seu travejamento principal: autoritarismo, limitação das liberdades democráticas, nacionalismos reaccionários variáveis de país para país mas de raiz comum, xenofobias e racismos variados apontados a grupos e comunidades específicas.

Esses fascismos em marcha acelerada na Europa, classificados de ultra-direita para legitimarem a sua integração nos jogos demo-liberais tornando-os aceitáveis, distinguem-se dos seus antepassados por dispensarem tropas de choque, substituírem as camisas castanhas, negras, azuis e verdes por vestimentas ditadas pela moda, não proporem genocídios em massa ainda que tenham um discurso revisionista sobre os que foram praticados, moderarem alguns dos seus tiques totalitários, enquanto lhes for conveniente, almofadando os combates com que deveriam ser enfrentados, escusarem-se a prosseguir políticas económicas corporativistas em favor do aprofundamento das políticas económicas neoliberais com colorações nacionais que aliás o têm, embora mal guardado e mal oculto, nos seus subterrâneos.1

«Metropolis», de Georges Grosz Créditos

Neofascismo que se apresenta, como sempre o fez, com uma paleta variada de tipologias interventivas, dos tiques mais trauliteiros aos mais fragantes de que, por cá, os melhores exemplares são o Chega e a Iniciativa Liberal, à semelhança do que acontece, por exemplo, em Itália, com os Irmãos Itália, Força Itália e a Liga. São os neofascismos que se têm espalhado por todo o planeta como uma epidemia bem alimentada pelos diversos formatos de uma desenfreada especulação financeira, pela ordem unipolar comandada pelos EUA/NATO e seus satélites, e toda uma bem oleada máquina de condicionar a informação com relevo para a comunicação social estipendiada e os meios universitários vendidos ao pensamento dominante a produzirem toda uma enorme variedade de opinantes com assento garantido na imprensa, rádio, televisão e nas redes sociais.  

Na Europa, partidos assumidamente herdeiros dos fascismos históricos assumem o poder, como agora em Itália, ou estão com larga representação no poder influenciando-o decisivamente, como na Suécia, depois das últimas eleições, o que já era regular na Polónia, Hungria, Eslováquia, Eslovénia, dirigidos por partidos que não se assumem como fascistas mas que homenageiam e exaltam o fascismo e condenam a resistência antifascista tal como sucede nos países do báltico, Letónia, Lituânia, Estónia, onde a ultra-direita tem forte influência no poder.

A realidade é que o fascismo ocupa de facto um vasto território europeu e tem registado avanços importantes em França, Espanha, Alemanha, Áustria, Croácia, o que deveria ser um fortíssimo sinal de alarme, sobretudo quando a direita, mesmo a mais moderada, se tem demonstrado disposta a fazer acordos e partilhar o poder com os neofascistas, fazendo as mais cínicas e hipócritas declarações políticas lavando-o e branqueando-o, mesmo quando os partidos com quem se dispõem a fazer acordos não o neguem, ou neguem o nome e não as práticas. 

Para os partidos ditos do centro, centro-direita e direita, dispostos a todos os acordos com os fascistas qualquer que seja a sua origem e destino, enfaticamente ocultando-os sob a designação de ultra-direita, a democracia sempre foi instrumental, tem uma malha larga é um albergue espanhol como se pode verificar na composição do Partido Popular Europeu amplamente maioritário nos areópagos e nos burocratas de Bruxelas.

«A realidade é que o fascismo ocupa de facto um vasto território europeu e tem registado avanços importantes em França, Espanha, Alemanha, Áustria, Croácia, o que deveria ser um fortíssimo sinal de alarme (...)»

O que lhes interessa é que as elites da sua corte mantenham a hegemonia, os autocratas não aviltem a sua maquilhagem liberal, os capitais fluam e que se cumpram os acordos mais vantajosos para o grande capital, que a Europa se mantenha submissa e a prestar vassalagem aos EUA e à ordem unipolar que o império decadente quer continuar a impor. Se o neofascismo assalta a Europa foi porque lhe abriram as portas e as esquerdas, de forma diversa, claudicaram ou se ausentaram.

Ao contrário do que nos querem fazer acreditar os fascistas, a extrema-direita europeia nunca foi isolada, deram-lhe sempre corda por saberem, até bem demais, que contam com eles na primeira linha do combate às esquerdas consequentes, as que não dão por eterno o princípio da dominação capitalista por mais consistente e hegemónica que se apresente mesmo que essa seja a sua imagem actual. Desde que a extrema-direita se comprometa com os ditames nucleares das políticas impostas pelos EUA/NATO à Europa, aliás, nunca negaram esse compromisso, as suas outras opções políticas são questões subsidiárias do grande jogo geoestratégico que nos dias de hoje está a viver lances impactantes.

São várias as falácias que os demo-liberais serventuários das imposições imperiais unipolares andam a vender nos media. A primeira é que a extrema-direita tem sido apartada na Europa, um desiderato que, na opinião deles, se mostrou ineficaz, como se algum dia os fascistas tivessem sido afastados da vida política e dos processos eleitorais. Por cá, de forma enviesada, foi o argumento usado pelo líder parlamentar do PSD a querer obrigar os deputados do seu grupo parlamentar a votar num deputado do Chega para vice-presidente da Assembleia da República, o que só iluminou a vontade do presidente do seu partido ir para a cama com os lusos fascistas se isso for necessário para chegar ao poder, um amor de perdição que tem procurado a todo o custo ocultar. 

A segunda falácia é que havendo uma forte vontade popular a exprimir o seu apoio à extrema direita há que aceitar e acreditar na daí decorrente normalização do fascismo. Esquecem o que Manuel Loff já evidenciou: «descrever a chegada da ultra-direita ao poder como uma normal consequência do jogo eleitoral — exactamente como se diz, e mal, sobre a chegada de Mussolini ou Hitler ao poder — desvaloriza o que é óbvio: ela nunca reúne maiorias absolutas no campo eleitoral, e muito menos as consegue no campo social, pelo que só ganha a batalha pelo poder impondo-se no interior de grandes frentes de direita nas quais os partidos tradicionais têm hoje, como vemos, um papel crescentemente subalterno».

Na prática, aceitar como normal a ideologia fascista é extremamente curioso numa situação em que a direita, o centro-direita, o centro-esquerda e mesmo muita esquerda estão desideologizados, centram a sua acção no jogo eleitoral, na conquista do voto e nos apoios que os grupos económicos lhes concedem variavelmente.

O que se oculta é que só chegámos a essa situação por uma prolongada, crescente e eficaz sabotagem intelectual das massas empreendida pelos meios de comunicação social, os tradicionais e os modernos digitais, na sua esmagadora maioria controlados pela plutocracia, em que a informação se constrói com verdades, meias-verdades e mentiras, é sobretudo propaganda o que se já era há muitos anos percepcionável ainda se tornou mais visível com a guerra da Ucrânia, pela degradação da actividades culturais submetidas à lógica cultural do que é vendável, maioritariamente produzidas e comercializadas pelas indústrias culturais norte-americanas ou por elas padronizado, em que a cultura abandonou o campo do enriquecimento intelectual substituindo-o por um entretenimento pronto a usar e a esquecer, pela degradação das instituições públicas favorecendo as privadas, factores que provocaram um cerco e um ataque eficaz à percepção crítica do mundo envolvente, originando um mundo em que os indivíduos são cada vez mais acríticos,  autistas e despolitizados, um mundo alienado em que o objectivo é que a alienação seja a norma universal subjectivamente aceite.

«Na prática, aceitar como normal a ideologia fascista é extremamente curioso numa situação em que a direita, o centro-direita, o centro-esquerda e mesmo muita esquerda estão desideologizados, centram a sua acção no jogo eleitoral, na conquista do voto e nos apoios que os grupos económicos lhes concedem variavelmente.»

O objectivo a médio prazo é destruir as esquerdas que historicamente nunca desarmaram nas suas lutas contra a exploração capitalista, nas suas formas arcaicas ou mais actuais, a longo prazo, apagar as lutas de classe. Tem tido alguns êxitos com outras esquerdas que se dividem entre as que abdicaram do seu passado social-democrata em que, sem ingenuidades, simulavam acreditar que no jogo eleitoral era possível encerrar uma luta de classes pacífica, pelo que acabaram por meter e fechar a sete chaves o socialismo nas gavetas e mesmo cometer as maiores perversões consubstanciadas nas terceiras-vias, e as que, impulsionadas por um colorido optimismo, acreditam que, milagrosamente, as novas lutas ditas fracturantes gerariam entropias que dispensavam a luta de classes pelo que havia um caminho possível para um capitalismo esclarecido e que as crises capitalistas se poderiam resolver gestionariamente.

Esquerdas que se esqueceram de uma trave-mestra do pensamento de Marx, de que o capitalismo se funda numa lógica de «contradições absolutas» que estão na natureza da acumulação do capital. Que essas contradições produzem periodicamente crises que reclamam vidas e criam miséria.

É ao que estamos a assistir de maneira acelerada nos últimos anos desde a crise dos subprime em 2008, a salvação com dinheiros públicos  dos bancos privados, a pandemia, as sucessivas guerras, desde a imposta à Jugoslávia até à mais mediática na Ucrânia que tem servido de biombo às que continuam em curso na Líbia, Síria, Iémen e em países africanos muitos onde o Estado Islâmico continua bem presente, às políticas securitárias nos EUA e de sanções que espalham um pouco por todo o mundo que tente não se submeter às suas regras, que subvertem sistematicamente o direito internacional e que são as regras de sobrevivência de um império em decadência, possuidor de um poderoso arsenal militar disseminado pelo universo.

«O objectivo a médio prazo é destruir as esquerdas que historicamente nunca desarmaram nas suas lutas contra a exploração capitalista, nas suas formas arcaicas ou mais actuais, a longo prazo, apagar as lutas de classe.»

As crises periódicas são, nos nossos dias, uma crise permanente de sucessivos sobressaltos que se repercutem por todo o universo, em que a luta de classes se torna mais dura, áspera e complexa, em que há que enfrentar com determinação esta vaga fascista que se pretende institucionalizar, o que muitos partidos políticos, do centro à direita, aceitam como uma nova normalidade.

As esquerdas, algumas esquerdas, cobardemente e por oportunismo, julgam poder sobreviver beneficiadas pelo seu servilismo ao grande capital, que praticam com afinco quando estão no poder. Outras andam em acústicos e coloridos zigue-zagues de marketing político, beneficiando da cobertura mediática que lhes é concedida, o que lhes assegura e mede a influência, diluindo a luta de classes nas lutas ditas fracturantes, que são importantes na alteração das atitudes sociais, mas iludem a possibilidade de radicais mudanças sociais.

A esquerda, as esquerdas, têm que se redescobrir. Umas acertando o norte na bússola que nunca perderam. Outras encontrando as saídas nos labirintos em que se perderam. Todas têm que ter a consciência nítida que no horizonte as nuvens acumulam-se, estão a desabar, prenunciam um futuro imediato pior que será bem pior se as forças de esquerda persistirem em desarmar-se ideologicamente, quando a defesa da democracia, dos direitos sociais, económicos e políticos exigem maior firmeza e as lutas por esses direitos e pela democracia tem que alargar os seus campos de acção e até encontrar novos instrumentos contra o cerco, que lhes é imposto pelas forças dominantes, aos mais diversos níveis. 

  • 1. Leia-se com proveito O Neoliberalismo não é um Slogan, João Rodrigues, Tinta da China, Maio 2022

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