A 56.ª Conferência de Segurança de Munique (CSM) de Fevereiro não trouxe nada do que não se soubesse já.
Biden, desde então, já tirou a máscara numa nova confrontação com a Rússia e a China. A UE já percorreu percursos semelhantes, mesmo dando ares de que caminha em pista própria. O nosso ministro dos Negócios apanha as bolas de todos e compromete-nos com essas narrativas e objectivos.
A opção dos organizadores desta Conferência de não incluírem como questão de «segurança» o combate à pandemia deixou sem resposta os apelos que o secretário-geral da ONU e o director-geral da OMS lá fizeram nesse sentido, à excepção do desafio de Macron, em parte aceite: «Se anunciarmos hoje milhares de milhões de doses para as doar apenas dentro de seis meses ou um ano, os nossos amigos africanos irão comprar doses aos chineses, aos russos», e assim «a força do Ocidente não será uma realidade».
Bill Gates, que tem participado nas últimas conferências, foi o convidado para abrir esta e relembrou que foi ele quem na anterior Conferência de 2017 afirmou que, «ainda no tempo das nossas vidas», o mundo iria defrontar uma nova pandemia, e continua o seu papel de guru climático. Para já acordou com meios de comunicação social de muitos países entrevistas a propósito do seu livro, editado há dias, Como evitar um desastre climático, que já pôs os cabelos em pé a muito boa gente e sobre o qual talvez nos debrucemos aqui um dia destes. O Público fez essa entrevista em 16 de Fevereiro, em que o fundador da Microsoft apanhou ideias do Acordo de Paris de 2015. Está, assim, a correr para a COP26, a Conferência do Clima em Glasgow em Novembro.
Nem Biden nem nenhum dos outros participantes se referiu aos pontos de desavença, como o Nord-Stream 2, o Acordo Financeiro entre a UE e a China e a tecnologia 5G, que Biden diz acarretarem maior dependência europeia em relação à China, um quadro comum de relações transatlânticas com a China que a UE não aceita.
Mas eles estiveram presentes nas análises de muitos comentadores, a quem cabe dizer o que Biden não diz, querendo-o dizer. Li no dia 24 deste mês, Nuno Severiano Teixeira (NST), no Público.
Entre o título «A América está de volta e a Europa estará?» e a frase final «Biden é uma oportunidade para a Europa. Valia a pena não a perder», NST alinhou uma série de observações, como as de que a conferência marcou «o regresso do vínculo transatlântico. E quem sabe do Ocidente?», «Biden enterrou o fantasma geopolítico do America First» (mas não foi Biden quem disse na tomada de posse que os EUA regressariam «à sua liderança mundial»?), ou ainda que «restaurou a credibilidade da NATO» quando a NATO, com Trump, fez o mesmo que já tinha feito com Obama, num intervencionismo de má memória.
Biden, na conferência, colocou como ponto de inflexão (!) o confronto entre duas visões sobre o futuro, referindo-se à Rússia e à China como principais pólos de poder que desafiam a «ordem democrática», contrariando as expectativas de alguns analistas que pensavam que a necessidade de assegurar «a democracia que não estava garantida» se referia à turbulência vivida no seu próprio país e que teve um impacto universal muito negativo e cheio de perplexidades quanto à democracia nas terras do Tio Sam.
Significativamente Biden colocou como questão essencial a necessidade de reforçar a NATO, citando mesmo que «os EUA mantêm o voto inabalável do seu total compromisso com o Artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, de que o ataque a um membro da Aliança Atlântica é um ataque a todos os seus membros». Mas afinal, quem está ameaçado por quem no território europeu?
Garantiu que não queria voltar a uma política de guerra fria entre blocos, que a cooperação com esses países era necessária. Mas simplificou em termos imperativos que a China era necessária por causa das alterações climáticas e que com a Rússia havia que tratar do combate à proliferação de armas nucleares.
Para quem disse, como Biden fez, que «respeitaria o multilateralismo» (que Angela Merkl saudou) não incluir esses dois países, entre outros, parece querer dizer que o seu multilateralismo se esgota no seio dos seus aliados ou da Aliança Atlântica… Mais uma vez os EUA, hoje mais frágeis que no passado, ao reafirmarem – como Biden já antes o fizera – que iriam garantir a sua liderança mundial, revelam que mandam às malvas todo o património de acordos e de tratados de facto multilaterais, que incluem quiçá a própria ONU. Não escapou à nossa atenção que Washington tenha desconsiderado as conclusões da delegação da OMS que esteve em Wuhan, na China, e ter defendido que os EUA querem que uma delegação «só sua» vá lá, apurar a sua verdade…
Angela Merkl assinalou, talvez com referência ao «multilateralismo» expresso por Biden, que, entre outras coisas, foi positivo o regresso dos EUA à OMS e ao Acordo de Paris, à Conferência dos Direitos Humanos da ONU, ao renovar do acordo START por mais cinco anos, a disponibilizar-se para negociações com o Irão sobre o acordo nuclear antes realizado.
Macron disse estar «convencido de que precisamos de uma Europa muito mais forte em termos de defesa». E que «Não podemos passar sempre pelos EUA. Não, precisamos pensar a partir da perspectiva europeia também».
Apesar de reconhecer que a Europa e os EUA mantêm muitos valores compartilhados, ele acredita que as partes têm interesses diferentes no campo internacional.
«Precisamos de liberdade de acção na Europa. Precisamos desenvolver a nossa própria estratégia», «Nós não temos as mesmas condições geográficas [dos EUA], nem as mesmas ideias sobre equilíbrio social, sobre o Estado de bem-estar. E essas são ideias que temos que defender.»
Para o presidente Macron, a Europa precisa elaborar políticas próprias para tratar de temas regionais, e não mais depender das políticas «transatlânticas» formuladas no âmbito da OTAN.
Para ele a política para o Mediterrâneo é um assunto europeu, e não transatlântico. O mesmo defende sobre a Rússia. Para ele é precisa uma política europeia para a Rússia e não somente uma política transatlântica. Ao falar sobre a política nuclear europeia, Macron defendeu que esta «não deve ser conduzida como nos tempos da Guerra Fria, quando o papel de coordenação nesta área era exclusivo dos EUA».
Já à margem da conferência do ano passado Macron tinha rejeitado as reservas alemãs a algumas das suas propostas. Há muito que pressiona para uma «revisão ambiciosa» da União Europeia em resposta ao Brexit, incluindo uma integração mais profunda em questões financeiras e de defesa. A Alemanha, entre outros países, resiste e opõe-se, defendendo um orçamento limitado a projectos seleccionados.
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, caracterizou na quarta-feira passada a relação dos Estados Unidos com a China como o maior teste geopolítico para Washington no século XXI e que precisa ser enfrentado numa posição de força.
Blinken apelou à revitalização das alianças dos EUA e um outro envolvimento das instituições internacionais para lidar com a China, que descreveu como a única nação com capacidade para «desafiar seriamente a ordem global».
Disse que vários países apresentam para os EUA desafios sérios, incluindo a Rússia, o Irão, a Coreia do Norte. E que há crises sérias que o seu país tem que enfrentar, referindo serem estes os casos do Iémen, da Etiópia e da Birmânia. Mas enfatizou que o desafio colocado pela China é diferente. «A China é o único país com poder económico, diplomático, militar e tecnológico para desafiar seriamente o sistema internacional estável e aberto, todas as regras, valores e relacionamentos que fazem o mundo funcionar da maneira que queremos», afirmou.
Blinken prometeu tornar o relacionamento dos Estados Unidos com a China «competitivo quando fosse o caso, cooperante quando possível e adversário quando devesse ser».
O Secretário de Estado enfatizou que os EUA têm que cooperar com aliados e parceiros, para que, em conjunto, mais dificilmente possam ser ignorados pela China.
Blinken disse que tal abordagem requer envolvimento na diplomacia e em organizações internacionais, «para que a China não preencha o lugar que os Estados Unidos perderam quando se retiraram delas».
Para ele «é necessário defender os nossos valores quando os direitos humanos são violados em Xinjiang ou a democracia é pisada em Hong Kong, porque se não o fizermos, a China agirá ainda com maior impunidade». E garantindo a liderança tecnológica dos EUA e apoiando as democracias em todo o mundo.
Esta postura do homem que foi escolhido para as mais altas funções do poder executivo dos EUA é bem reveladora da definição de blocos, de desejo de uma relação conflituosa entres eles, de um espírito de cruzada de valores e conceitos de democracia únicos, para os quais os EUA teriam sido ungidos para dirigir novas batalhas contra os hereges, assegurando uma liderança global.
Mal vão estes «democratas» que querem ignorar as mudanças históricas ocorridas nestes últimos vinte anos, nomeadamente a perda de influência mundial dos EUA e da UE, o crescimento impetuoso de potências emergentes, que construíram fóruns regionais e que tornaram, mais concreto e imprescindível, o multilateralismo nas relações internacionais. Ao aproximar-se o segundo mês deste mandato, Joe Biden apela «Ó tempo volta para trás», quando esse tempo já passou…
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