|História

O povo ficou com os canhões e o governo fugiu para Versalhes

Tropas do governo de Thiers tentaram retirar os 250 canhões da Guarda Nacional da capital, populares e guardas não deixaram. A bandeira vermelha flutua em Paris.

Ilustração de Alex Gozblau
CréditosAlex Gozblau

«Enquanto copio o meu relatório, ouvem-se bruscamente disparos de canhão. Vou imediatamente aos correios, que fecham as portas. Ia enviar um telegrama, mas não me deixam. Em cada rua da margem direita, garante-me a nossa empregada estrangeira, erguem-se barricadas, com rodas de carroça, pedras e troncos de árvore, as pessoas só podem passar com palavras-passe aprovadas pelos revoltosos, não se pode circular sozinho. Vou à estação dos comboios e dizem-me que o comboio só chegará às 7 horas da tarde. Embaraçado, volto para casa para agradecer ao meu senhorio e dizer-lhe adeus». É com estas linhas que o intérprete da delegação diplomática chinesa, Zhang Deyi, 23 anos, descreve o sucedido neste dia 18 de Março de 1871, quando as tropas do governo de Versalhes tentaram levar os mais de 250 canhões da Guarda Nacional parisiense.

Uma tarefa que o primeiro-ministro Adolphe Thiers tinha considerado fácil, ignorando que «este governo incapaz de prender os 25 membros do Comité Central da Guarda Nacional, deu ordem para surripiar 250 canhões guardados por Paris inteira», como nota o jornalista adepto da Comuna Prosper-Olivier Lissagaray.

Vejamos como tudo se passou: às três da manhã, milhares de soldados sem víveres e mal equipados dão início à operação do governo. Vão para as colinas Chaumont, para Belleville, para o faubourg (subúrbio) do Temple, para a Bastilha, para o Hôtel-de-Ville, para a praça de Saint Michel, para o Luxembourg, no 13º arrondissement, para os Invalides.

O general Susbielle, que se dirige a Montmartre, comanda duas brigadas de cerca de seis mil homens. Todo o bairro ainda dorme. A brigada Paturel ocupa sem fazer fogo o Moulin de La Galette. A brigada Lecomte dirige-se para a torre de Solférino e só encontra uma sentinela, de nome Turpin, que ergue a baioneta e é imediatamente abatido. Correm depois para o posto dos Rosiers que tomam e prendem os poucos guardas nacionais nas caves da torre. Nas colinas de Chaumont, em Belleville, por todo o lado onde os parisienses tinham colocado os canhões, as tropas do governo chegam e tomam conta das baterias facilmente. O governo triunfa. Louis Jean Baptiste d'Aurelle de Paladines, nomeado comandante da Guarda Nacional pelo governo, envia uma proclamação de vitória aos jornais, que foi publicada em vários vespertinos.

Os canhões estão tomados, só falta levá-los. Os cavalos tardam e só às 8h da manhã os primeiros canhões são atrelados para serem levados. Não é tarefa fácil. Muitas peças não têm as rodas da frente, outras estavam propositadamente bloqueadas.

Entretanto, os subúrbios da cidade acordam. Nas paredes são visíveis as proclamações do governo: «Habitantes de Paris, no vosso próprio interesse, o governo resolveu agir. Que os bons cidadãos se apartem dos maus e ajudem a força pública. Os culpados serão entregues à justiça. É preciso, custe o que custar, que a ordem renasça, completa, imediata, inalterável...», assinam Thiers e os seus ministros, os cartazes ainda húmidos de cola nos muros da capital.

Como acontece a maior parte das vezes, nas revoluções, as mulheres foram as primeiras a agir. Apesar de terem sofrido a fome e o cerco das tropas prussianas, não baixam a cabeça e rodeiam as metralhadoras e os soldados e oficiais que as acompanham:

É uma vergonha! Que fazes tu aí?

Os soldados calam-se. Às vezes um tenente responde meio cabisbaixo:

Vá lá, vizinhas, afastem-se.

Mas o tom de voz é de quem não quer empreender uma acção violenta contra as mulheres que os interpelam. Até que ao longe começa-se a ouvir os tambores. Uns guardas nacionais descobriram dois tambores no posto da Rua de Doudeauville e começam a tocar e a percorrer o 18º arrondissement para mobilizar o povo e os combatentes. Passa pouco das 8h e já 300 guardas nacionais sobem o boullevard Ornano. Sai um contingente de militares de posto do 88º, mobilizado pelo governo, que lhes grita à passagem: «viva a República», e juntam-se aos guardas nacionais e à população em direcção à colina defendida pelos soldados desse regimento, estes vendo os seus camaradas entre a população e os milicianos de Paris, fazem sinal que os deixarão passar. O general Lecomte apercebe-se dos gestos, manda-os substituir por polícias e prende-os na torre Solférino, ameaçando-os: «Já vão ver o que vos espera».

Mas os polícias, que substituem os militares, mal têm tempo de reagir: são submergidos pela população, guarda nacional e soldados ao lado dos revoltosos. O general Lecomte ordena que façam fogo três vezes, mas os homens recusam e continuam com a arma a tiracolo. A multidão junta-se e confraterniza com os militares, o general e os seus oficiais acabam presos.

Três tiros de canhão de pólvora seca anunciam a Paris a reconquista das colinas, são os tiros que põem em sobressalto o tradutor da delegação diplomática chinesa e o fazem partir.

Às 11h, o povo venceu a agressão em toda a linha, conservando quase todos os canhões. As tropas do governo só conseguiram levar dez. O povo sublevado e a Guarda Nacional tinha, pelo seu lado, apreendido uns milhares de espingardas levadas dos quartéis das tropas governamentais.

Ao meio-dia, d'Aurelles lança um último apelo antes de retirar as tropas do governo para Versalhes:

«O governo chama-vos a defender os vossos lares, as vossas famílias, os vossos bens. Alguns indivíduos transviados, obedecendo apenas a chefes secretos, dirigem contra Paris os canhões que foram subtraídos aos prussianos.», um argumento do roubo às tropas invasoras não comove os visados, que leva o governo de Thiers a tocar a tecla da conspiração: «Espalhou-se o boato absurdo que o governo preparou um golpe de Estado. O governo apenas quis acabar com um comité insurreccional cujos membros representam apenas as doutrinas comunistas, poriam Paris a saque e levariam o país à perdição».

Thiers e o seu governo, face à situação, tinham-se refugiado no Ministério dos Negócios Estrangeiros, decidem sair da cidade com o resto das suas tropas, evitando mais contactos dos soldados que lhe restam com a população. Fugindo para Versalhes.

No dia seguinte, a bandeira vermelha flutua no Hôtel-de-Ville.

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