ma che cos'è?
Não, não vou incomodar os nossos leitores com uma qualquer definição pré-fabricada. Há dias numa aula minha sobre as eleições em Itália, um aluno perguntou-me que era afinal isso do populismo. E outro fazia ecoar «ma che cos'è?1».
Mais do que ir buscar conhecidos exemplos históricos mais ou menos recentes, propus uma reflexão sobre as suas causas neste caso concreto, que não são fundamentalmente distintas de casos destes nos dois últimos anos, noutros países europeus, mas não só.
Não pode deixar-se de clarificar que, desde que a recessão abalou os alicerces da boa-ventura da União Europeia (UE) – ao atingir, sobretudo, os trabalhadores e as chamadas classes médias –, se registou uma desconfiança crescente em relação à bondade desta integração europeia e em relação a esta Europa, com os eleitores dos partidos que têm ocupado o poder a serem conduzidos à aproximação de outras formações políticas.
E estas não deixaram de ser fustigadas pelos propagandistas da UE com epítetos como euro-cépticos, nacionalistas ou populistas, à mistura com xenófobos, anti-imigração, etc. A reacção xenófoba resultou do descontentamento, em vários países europeus, com o acréscimo anormal de imigração de países da África sub-sahariana e do Médio Oriente.
Sendo que a responsabilidade deste acréscimo anormal está directamente ligado ao acréscimo da pilhagem de matérias-primas de alguns desses países e às guerras conduzidas contra outros pelos EUA, UE, Arábia Saudita e Israel. Os burocratas da UE bem podem distribuir aqueles epítetos mas foi a própria UE que, para usar a expressão popular, fez «o mal e a caramunha».
Estas são questões que estiveram presentes nas eleições em França, Alemanha e Itália. Em França a esperteza de Macron fê-lo sair pela direita do PSF para apelar a estes descontentamentos. Macron assumiu o populismo de crítica ao que estava errado para depois governar de forma ainda pior, havendo já quem lhe preveja um futuro não muito longo. Na Alemanha a extrema-direita não teve músculo para de populista passar ao governo. Em Itália, o Movimento 5 Estrelas (Movimento 5 Stelle, M5S), que não estará no futuro governo sozinho, terá a oportunidade de mostrar em que se transforma o seu populismo.
Pietro Grasso, do Livres e Iguais (Liberi e Uguali, LeU), já anunciou que admite discutir com o Partido Democrático (PD) e o M5S mas não com os partidos à direita destes.
A revista Economist referia que «Os populistas estão a ganhar votos oferecendo um welfare mais generoso».
Mas neste sábado, Luigi Di Maio, líder do M5S, face às movimentações de outros partidos para a formação de governo, declarou: «Um governo sem nós seria um insulto à democracia. Neste momento, o M5S é decisivo, não pode formar-se um governo sem nós, a menos que – e isso seria um insulto gritante à democracia – decidissem fazer um governo com todos contra nós. Mas nesse caso seria o seu fim». Mas também Matteo Salvini fez declarações semelhantes em relação ao seu partido, a Liga Norte (Liga). Di Maio avançou com uma ideia: «Começaremos por tratar das questões mais sentidas pelos italianos e estamos prontos para discutir com todas as forças políticas no interesse exclusivo dos cidadãos. A primeira oportunidade será a apresentação do Orçamento de Estado (Documento di Economia e Finanza, DEF) até 10 de Abril: o M5S será decisivo para aprovação». Quer o M5S quer a Liga querem, nesta discussão, contemplar as respectivas promessas eleitorais. Salvini adiantou que vai fazer propostas aos restantes partidos. Silvio Berlusconi, da Força Itália (FI), defende um governo muito amplo, ideia que não agrada à Liga. Nicola Fratoianni, do LeU, afirmou-se decidido a viabilizar um governo do M5S.
Entre nós, Francisco Assis, socialista-liberal, lá vai informando as hostes irmãs do PD, que estavam dispostos a falar com a Liga e a FI, que «alguns dos deputados mais interessantes que encontrei no Parlamento Europeu são jovens representantes deste novel partido político italiano [o M5S]. Abominam a corrupção e o clientelismo, defendem causas justas e agem com verdadeiro sentido de serviço público. Isso levou-me a perceber que há uma grande diferença entre o designado populismo e o extremismo ideológico, e que nada ganhamos em ostracizar radicalmente novos movimentos políticos que são sinais dos tempos conturbados que atravessamos» (Público, 08/03/2018). Nesta mesma edição, a liberal Teresa de Sousa vai nesse sentido mas apontando riscos: «Alguém vai ter de governar a Itália. O maior problema é o efeito que a queda dos partidos do sistema possa ter na Europa». E diz que «uma Itália instável e euro-céptica pode ainda colocar um travão nos planos franco-alemães», citando Charles Grant, director do Center for European Reform (CER), de Londres2.
A rejeição por parte de camadas significativas das populações das políticas dos partidos liberais e «centrões», em que se foram amalgamando entidades políticas distintas, não pode ser apelidado, pela rama, como populismo.
As previsões e os resultados eleitorais
Várias previsões anteriores às eleições italianas confirmaram-se, como o reforço global da direita e da extrema-direita e a quebra da coligação «centro-esquerda» (de facto liberal) em que o PD, partido de governo, tem peso hegemónico. Outras não, como a previsão de a FI de Berlusconi, em aliança com a Liga, o Irmãos de Itália (Fratelli d’Italia, FdI) e o Noi com Italia, poder ser o partido mais votado. Quem ocupou essa posição foi o M5S acabou por ser o mais votado. E no bloco da direita quem tomou a dianteira foi a Liga, de Salvini – a quem Berlusconi apoiou já na intenção de formar governo.
Só estas três formações políticas, mais o LeU, elegeram deputados e senadores. Para a Câmara de Deputados o M5S ficou com 32,6% (25,6% nas eleições de 2013, +7,0p.p.), a Liga e a FI com 31,4% (antes 21,2%, +10,2p.p.) e o PD com 18,7% (antes 29,6%, -10,9p.p.). O LeU, que concorreu pela primeira vez, obteve 14 deputados e 4 senadores3.
O PD do ex-primeiro ministro Matteo Renzi tinha vencido, com dificuldade, as eleições de 2013. Tem origem na transformação sucessiva do antigo Partido Comunista Italiano (PCI) que, sendo o maior da Europa ocidental, sofreu a deriva euro-comunista. Com os últimos governos, de Renzi e Gentiloni, perdeu qualquer respeito pelos interesses dos trabalhadores, que foram fustigados com alterações à legislação laboral e ataques à Saúde, Educação e Segurança Social públicas – para além da intenção, derrotada, de alterar a lei eleitoral e permitir a formação artificial de maiorias, tudo de acordo com os padrões neo-liberais dos dirigentes da União Europeia.
O mapa eleitoral italiano modificou-se significativamente nestas eleições
O mapa acima, obtido no portal «elezioni 2018» do La Repubblica, revela a distribuição territorial dos resultados para a Câmara de Deputados, nos círculos (colegios) uninominais4Faz-se um breve parêntese para explicar minimamente o actual sistema eleitoral italiano. As eleições italianas de 4 de Março de 2018, destinadas a renovar a Câmara de Deputados (630 lugares) e o Senado (315 lugares), foram as primeiras a reger-se pela nova Lei Eleitoral aprovada em Novembro de 2017. Esta define um «sistema eleitoral misto», em que «uma parte dos lugares é atribuída por sistema proporcional e outra por sistema maioritário». A nova lei eleitoral, também chamada lei Rosatellum (do nome do deputado do PD, Ettore Rosato, que a propôs) define que 61% dos lugares, tanto na Câmara dos Deputados (386) como no Senado (193) são distribuídos proporcionalmente entre as coligações que ultrapassem o patamar de nacional de 3%; e que 37% dos lugares (respectivamente, 232 e 116, para a Câmara e o Senado) são atribuídos por um sistema maioritário, a uma volta, em colégios uninominais. O quadro apresentado acima provém destes últimos resultados..
São apresentados quatro cores correspondendo a grupos definidos no quadro político italiano: coligação de direita, CDX, a azul; coligação de esquerda (sinistra), CSX, a vermelho; M5S, a amarelo; e LeU, a verde.
Uma comparação com o mapa abaixo, relativo às eleições de 2013, revela um alargamento da mancha azul, da direita e extrema-direita, e da mancha amarela do M5S, reduzindo-se muito a mancha vermelha do PDS sob o progresso dos seus rivais.
Quanto ao LeU, liderado por Pietro Grasso, antigo juiz anti-Máfia e actual presidente do Senado (reeleito), que se apresentava como alternativa de centro-esquerda ao PD e contava com dois dissidentes históricos deste partido (Pier Luigi Bersani e Massimo D’Alema) não obteve mais de 3% dos votos. D’Alema, que foi responsável das relações internacionais e depois secretário-geral do PCI no decurso do processo de degenerescência deste, teve uma derrota estrondosa e ficou no último lugar na sua circunscrição. Na direcção do LeU afirma-se que para o desastre do partido terá contribuído muito a participação nas listas de Bersani e D’Alema (veja-se a entrevista de Pippo Civati ao Il Manifesto e as declarações de vários deputados do LeU, com Nicola Fratoianni à cabeça, ao La Repubblica.
O novo cenário político
O cenário político italiano é, desde a queda de Berlusconi em 2011, formado por governos formados por «tecnocratas» não eleitos, e através de coligações entre forças de «centro-esquerda» (que se tornou liberal, de facto) e de «centro-direita».
A crise económica pulverizou a prazo o sistema partidário italiano e o centro neoliberal acabou por não produzir a estabilidade, mas desespero social. Disso beneficiou O Movimento 5 Estrelas, fruto da crise e de uma agregação populista, ao levantar a bandeira do anti-partidarismo e atrair os insatisfeitos a juntarem-se-lhe, recorrendo a um discurso «anti-sistema».
O partido de direita e conservador Força Itália, de Berlusconi, fez aliança com a Liga Norte, partido de extrema-direita, xenófobo e separatista. Tendo a Liga tido mais votos que a FI, será ela a dirigir este bloco, podendo cada uma das forças agir independentemente com vista às negociações para formar governo.
A recém-lançada lista Poder ao Povo (PaP), composta pelo Partido da Refundação Comunista, pelo novo Partido Comunista Italiano (PCI) e pela Rede dos Comunistas, entre outras forças de esquerda, pretendeu consolidar-se como um «sujeito unitário da esquerda anti-neoliberal», tendo sido chamada «a única novidade real na cena eleitoral italiana». Para esta coligação de comunistas, «o voto para o Poder para as pessoas é um voto contra uma política ao serviço dos mais ricos e mais poderosos. É um voto para uma esquerda nova e radical que se oporá ao governo de "acordos amplos". A esquerda sem ifs e buts. Vamos trazer ao parlamento activistas que, na oposição, aprenderam nas ruas e nas lutas sociais e ambientais. É um voto para a implementação da Constituição e a abolição de todas as pseudo-reformas que tornaram este país mais pobre e mais injusto».
Além de a xenofobia ter tomado o centro do debate eleitoral, il Manifesto, jornal comunista italiano, aponta outra grande promessa vendida pela direita: a estabilidade: «a poucos passos da chegada, com o pânico da instabilidade e da impossibilidade de governar que se aproxima cada dia mais, a única e verdadeira arma secreta da direita é essa: “ou nós, ou o caos”». Ainda assim, os 1,1 % do PaP são decepcionantes. Passarão muitos anos até os comunistas italianos poderem ser o motor de uma alternativa.
O Partido Democrata, sob a liderança de Matteo Renzi, passou de um partido de centro-esquerda para o liberalismo. Ao longo da última legislatura, impôs uma «Lei do Emprego» flexível, reformas e medidas de educação neoliberal que obrigam os italianos em idade escolar a trabalhar em estágios não remunerados. A sua tentativa fracassada de reescrever a constituição italiana tornou-se um assunto sensível, diga-se de passagem, já que a identidade republicana está intimamente ligado à queda do fascismo. Depois da demissão de Renzi das suas funções dirigentes, o PD enfrenta, além do Força Itália, seu inimigo histórico, uma oposição mais forte daqueles que constituem efectivamente a esquerda. Duas derrotas sucessivas, uma no referendo sobre as alterações à lei eleitoral e outra nestas legislativas, afectaram muito a popularidade do PD, acabando com as suas pretensões de ocupar o centro político (seja lá o que isso for).
No portal Vermelho, do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Alessandra Monterastelli, citando uma entrevista recente dada por Matteo Renzi à apresentadora Barbara D’Urso no programa Domenica Live, refere que «Renzi defendeu a ideia fortemente neoliberal do papel primordial das empresas na educação dos jovens que, no cenário económico colocado pelo seu governo, representam boa parte da população desempregada e desiludida com a política». E, continua o Vermelho, «em pesquisa feita pelo New York Times e divulgada pelo Estado de São Paulo, mais de 32% dos italianos com menos de 25 anos continuam desempregados. Esses mesmos jovens – conta a reportagem – deparam-se com elites que mantêm casas de praia e artigos de luxo, enquanto eles se mantêm na estagnação. Renzi provocou a desilusão e revolta nos italianos quando afirmou que os jovens estão desempregados enquanto grandes empresas italianas investem cada vez mais em tecnologia para poupar mão-de-obra e prevenir “gastos” com trabalhadores. As mesmas empresas que disse serem imprescindíveis para a educação tecnológica e a inserção de jovens no mercado de trabalho». O PD foi incapaz de apresentar medidas para compensar estes jovens com perspectivas de novos postos de trabalho.
Segundo David Broder – um outro colaborador do Vermelho, especialista em história dos partidos comunistas francês e italiano, citado no mesmo artigo – «é óbvio que o M5E se beneficiou do colapso deste “centro-esquerda” e da crise económica para se estabelecer como “voz dos excluídos”, em rebelião contra a “casta” representada pela corrente principal e pelo centro-direita». «Tanto que o sucesso do “movimento”», continua o Vermelho, «se deve pouco às propostas de políticas específicas, mas mais à promessa de revisão política e de uma suposta “novidade”. Tenta captar e expressar, por fim, o descontentamento de uma Itália abatida pelo desemprego».
Nestas eleições, mais do que beneficiar da xenofobia anti-imigração, beneficiou do eurocepticismo e de um profundo mal-estar contra a UE. Esta aversão a Bruxelas é contra o espartilho da moeda única, da afronta às soberanias. E percepciona, por parte dos países que mais se queixam, o distanciamento dos países mais ricos e que estão a ser derrotados na globalização.
Apesar de tudo isto, ainda podemos encontrar quem, pateticamente, entre nós continue a defender que «a globalização não é o produto da ganância da grande finança internacional, como os comunistas, pateticamente cegos, continuam a repisar. Ela é o produto espontâneo do mais veloz avanço científico e tecnológico registado pela História. Só foi possível graças a este progresso fulminante, e ambos os fenómenos se alimentam mutuamente, numa vertiginosa espiral globalizante» (Fátima Bonifácio, 09/03/2018, Público).
E foi neste quadro que a imagem do cavaliere Berlusconi encontrou fôlego para se lançar numa nova candidatura, depois de denúncias por evasão fiscal. Aflorou os pequenos problemas do dia-a-dia que incomodam os italianos e que provariam, de forma supérflua, uma má gestão (como ruas esburacadas, por exemplo), Berlusconi comparou num programa televisivo que voltou para a política após o escândalo Mani Pulite (“Mãos limpas”), o maior esquema de corrupção política investigado na Itália. «Após o Mani Pulite, se não fosse por mim, os comunistas teriam tomado o poder» declarou, com orgulho, intitulando-se o herói anti-comunista que salvou a Itália de um «grande perigo». A sua retórica, claro, é fortemente conservadora; a crítica que fez aos candidatos do M5E baseia-se na meritocracia, acusando-os de «nunca terem trabalhado na sua vida», enquanto se gaba de ser «um trabalhador antes de um político».
- 1. A típica expressão italiana para designar uma coisa ou situação surpreendente, que necessita explicação. Em português, «mas o que é isto/isso?».
- 2. Há menção de o CER e o seu fundador, Charles Grant, estarem ligados às secretas estado-unidenses e britânicas: «The CER seem to have both UK and US intelligence connections as part of the UK's role as an agent for the US in the EU. CER's main man, Charles Grant, former Defence Editor of The Economist, writes on UK/US intelligence and works closely with the FO, collaborating with individuals such as Roger Liddle and Mark Leonard (at the Foreign Policy Centre)». Ver aqui.
- 3. Os resultados conhecidos, à data do presente artigo, podem ser consultados no portal «especial eleições 2018» do diário La Repubblica, nas suas declinações nacionais e locais.
- 4. Os resultados conhecidos, à data do presente artigo, podem ser consultados no portal «especial eleições 2018» do diário La Repubblica, nas suas declinações nacionais e locais.
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