Quem desejar conhecer os exemplos dos resultados mais relevantes da cruzada democratizadora que a NATO desenvolve um pouco por todo o mundo poderá estudar a democracia afegã – e não ficará mal servido. Eleições falsificadas para manter os políticos convenientes nos cargos públicos, uma guerra interminável e cada vez mais privatizada, para gáudio das multinacionais de segurança, mercenários e armamentos, e, acima de tudo, o paraíso monopolista da indústria mundial de heroína, fazendo empalidecer a Colômbia como Meca da coca e derivados, transformando os barões mexicanos da droga em pouco mais que merceeiros.
Ou poderia analisar os case studies da Polónia e da Ucrânia – e outros com inegáveis afinidades; a Polónia sob ocupação militar da própria NATO, tal é a parafernália guerreira ali instalada; a Ucrânia transformada em campo de formação de grupos de assalto nazis e de bandos de mercenários islâmicos treinados por oficiais norte-americanos «na reserva», com o pretexto de que a ameaça putinista não abranda enquanto o mundo não se transformar numa gigantesca Crimeia; e ambos os países demonstrando como a democracia moderna, a favorita da Aliança Atlântica, convive com o fascismo tal e qual Deus e os anjos.
Tratando-se todos eles de casos meritórios, permitam-me, contudo, que escolha a Líbia de hoje como obra-prima da NATO. É que nunca qualquer ideólogo, por mais retorcido e criativo que fosse ou seja, conseguiu imaginar algo tão democrático.
Na Líbia, ao que consta, aviões militares norte-americanos, isto é, da NATO, travam a guerra final contra o Daesh, ou pelo menos para retirar a estes mercenários ambulantes o controlo do Golfo e da costa de Sirte, por acaso – por mero acaso – o maior centro da indústria petrolífera líbia. Na Líbia, pelo menos agora, o Pentágono pode dar largas à sua tão propagandeada batalha «contra o Daesh» sem estar obrigado a conter-se, como acontece por exemplo na Síria. Aqui, tal ofensiva não pode ser plena para não se transformar em «fogo amigo» e vitimar os terroristas «moderados» que lutam ao lado do Daesh e da al-Qaida, ou para não prejudicar o objectivo prioritário de aniquilar o governo da Síria, ou ainda para não aborrecer Israel, que «não quer a derrota do Isis na Síria», segundo o seu chefe da espionagem militar. Este Daesh líbio que agora o Pentágono combate é o mesmo de que a NATO se serviu para silenciar Khaddafi – como os dirigentes de Paris tanto queriam – e no qual a CIA e correlativos recrutaram os chefes para infiltrar o terrorismo islâmico na Síria, por exemplo Abelhakim Belhadj, identificado pela Interpol como «chefe do Estado Islâmico no Magrebe».
Na Líbia, o país maior produtor de terroristas islâmicos per capita, confrontam-se hoje vários governos, numerosas milícias e hordas de mercenários, dezenas de senhores da guerra e respectivos exércitos tribais. Isto é, poucas democracias serão tão ricas, multifacetadas e plurais como a que a NATO criou na Líbia.
Há o governo do Congresso Geral Nacional (CGN) em Trípoli, assente numa coligação islamita «de salvação nacional» que não aceitou os resultados gerais das eleições de 2014, por um lado porque as perdeu; por outro lado, invocando uma razão óbvia: alguém no seu juízo perfeito pode ter como referência eleições feitas numa situação caótica e de terror como a líbia?
«Enfim, cinco anos e mais de duas centenas de milhares de mortos depois, a Líbia tem um "governo unificador" com mandato da ONU em Trípoli (...).»
A coligação islamita assenta na Irmandade Muçulmana, com apoio mais ou menos tácito do Ansar al-Sharia (heterónimo líbio da al-Qaida) e sustentada internacionalmente por reconhecidas democracias como o Qatar, o Sudão, a Turquia de Erdogan e, na sombra, a Arábia Saudita. Esta coligação tem como inimigos jurados o Egipto dos generais e os Emirados Árabes Unidos, que de vez em quando a bombardeiam por motivos também inspirados na transparente democracia que ambos os Estados praticam – de tal modo que os Emirados se transformaram num farol para alguns dirigentes europeus, como o actual primeiro-ministro italiano Matteo Renzi.
O CGN de Trípoli, no entanto, parece já não estar apenas por conta própria e dos países que o apoiam. Testemunhou recentemente o seu apoio ao Governo do Acordo Nacional, uma descoberta da ONU que simula um entendimento entre muitas facções para a formação de um «governo unido» em Trípoli. Neste momento, portanto, a diplomacia da ONU e o «islamismo» moderado flirtando com a al-Qaida e apoiado pelo democrata Erdogan fingem que existe uma rota de unificação na Líbia que todos percorrem.
Porém, na Cirenaica, em Tobruk, existe o governo do «Conselho dos Deputados». Junta forças vitoriosas das eleições de 2014, usufrui, em princípio, do reconhecimento internacional e beneficia dos apoios do Egipto, dos Emirados Árabes Unidos e dos serviços secretos de grandes potências da NATO como a França, o Reino Unido e os Estados Unidos. A morte de três espiões franceses na Líbia, em 17 de Julho, escancarou o tipo de envolvimento da espionagem internacional no apoio a esta facção. Como se percebe, nem todas as aventuras dos expeditos agentes secretos acabam em glória como as do James Bond.
A par do «Conselho de Deputados» em Tobruk existe uma espécie de exército regular líbio, também reconhecido internacionalmente, comandado pelo general Khalifa Haftar, um antigo dissidente da estrutura dirigente de Khaddafi. Nesse cenário emerge agora a figura de Saif Islami, o filho sobrevivente de Khaddafi, recentemente libertado da prisão e que vai mobilizando mais apoios políticos do que seria de supor.
Enfim, cinco anos e mais de duas centenas de milhares de mortos depois, a Líbia tem um «governo unificador» com mandato da ONU em Trípoli, ao qual se associou a coligação islamita «moderada», discretamente apoiada pela al-Qaida, Qatar, Arábia Saudita e por um membro da NATO como a Turquia; caças norte-americanos, logo da NATO, usam o espaço aéreo do país como coisa sua para combaterem um grupo terrorista que vão poupando noutros lados, por exemplo na Síria; entretanto, o governo reconhecido internacionalmente, que não é o da ONU, continua instalado em Tobruk com o apoio exposto do Egipto e dos Emirados Árabes Unidos e encoberto dos serviços secretos das principais potências da NATO – Estados Unidos, França e Reino Unido. A alegada legitimidade eleitoral e o apoio da ONU estão em campos opostos enquanto os membros da NATO distribuem o seu apoio por várias facções, incluindo a do filho do dirigente que derrubaram e silenciaram.
A democracia da NATO brilha na Líbia em todo o seu esplendor.
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