Este sábado, no Porto, cai uma vez mais o pano. Desta vez é a Livraria Nunes, na Avenida da Boavista, que fecha portas. Depois da FNAC (sim, mesmo as grandes cadeias, com todos os seus defeitos, ainda podem ser um refúgio), depois da Livraria Latina da Rua de Santa Catarina, é a terceira livraria a fechar em poucos meses.
As razões são diferentes – rendas excessivas, hábitos de consumo em mudança, plataformas que se infiltram em todo o lado como bolor algorítmico, obras intermináveis nas ruas – mas a consequência é sempre a mesma: uma cidade um pouco mais vazia e um pouco mais muda. Um pouco mais amputada desses lugares essenciais onde se aprende a pensar de maneira diferente. Antes de mais, pela leitura dos livros que esses lugares nos proporcionam. Porque ler não é uma actividade solitária, é um acto colectivo. Radicalmente colectivo. É confrontar-nos com outras formas de sentir a existência, de perceber os outros, de sonhar mundos melhores e de lutar por esses mesmos mundos. É, por vezes, desaprender. E ainda bem. É aceitar estar errado ou não saber. A leitura contribui, de facto, para uma sociedade mais crítica, e por isso mais democrática.
Mas ler não é um dado adquirido. Afirmar que é uma prática acessível a todas e a todos é ignorar as desigualdades sociais; é um privilégio de classe pensar assim. Por isso, cuidemos de não escorregar para o lado indisfarçável dos que dominam e lembremo-nos de que ler nunca é algo que se faz por instinto. É uma conquista social, sempre. Ter livros em casa, não é natural. É uma feliz anomalia. Eu, por exemplo, cresci numa casa sem biblioteca. Apenas uma Bíblia esquecida, um manual de jardinagem ali pousado, talvez um livro de receitas. Nada mais. A literatura não fazia parte do meu quotidiano. Foi preciso apropriá-la. Graças a professores, à escola, os livros chegaram até mim. Depois, chegou a hora de fazer o caminho inverso: em contramão, ir eu ao encontro dos livros. E para isso, era preciso apropriar-me esses espaços, por vezes intimidantes, que são as livrarias. E foi graças a elas, precisamente, que os meus primeiros passos adolescentes com os livros se transformaram numa relação adulta e saudável. Cada livro comprado era uma pequena insurreição contra o determinismo social que, pesado, se preparava para me enterrar. E o berço dessas insurreições possíveis eram, e sempre serão, as livrarias. Sim, escrevi mesmo: «cada livro comprado.» O que aqui escrevo está longe, muito longe, da pessoa política que sou. É, aliás, quase o contrário daquilo em que acredito. E, no entanto, escrevo-o sem hesitar: possuir o livro é necessário. Não há volta a dar. Para nos apropriarmos verdadeiramente de um texto, para o fazer nosso, é preciso tê-lo connosco, fisicamente. A propriedade do livro é essencial. Por isso, comprem-nos. Ou roubem-nos, se for preciso, pouco me importa. Mas tenham livros. Possuam-nos. A livraria é um lugar onde se pratica, silenciosamente, a justiça social.
«O fenómeno dos encerramentos incessantes de livrarias portuenses parece-me sintomático de uma erosão infelizmente mais profunda: a do acesso ao pensamento crítico, ao debate democrático e à cultura vivida como bem comum.»
Hoje, a minha profissão é essa: recebo livros, leio-os, escrevo sobre eles, questiono autores e autoras. Tudo começou então na escola e tudo se desenvolveu depois numa livraria. Não foi numa aplicação, nem numa interface digital. Foi num espaço físico. Com estantes cheias, móveis, corredores estreitos, capas que se tocam, um livreiro que observa o que folheamos e por vezes diz assim: «Se gosta desse, experimente este.» Esses gestos não existem, com esta força, no mundo virtual. Mas existem nas livrarias. E o que também existe, de forma plena e profunda, numa livraria, é a experiência do acto de escolher. Porque aquele livro e não o do lado? Porque Alcools de Apollinaire e não A Insustentável Leveza do Ser de Kundera? Porque Les rêveries du promeneur solitaire de Rousseau e não Os Cus de Judas de Lobo Antunes? Esse momento em que se escolhe, em que se afirma uma preferência, em que se hesita, em que a escolha se faz sem explicação: isso tudo é já o germe da democracia. A dúvida, o questionamento, o confronto de ideias. Tudo começa aí.
Na semana passada, em Paris, na excelente Livraria Portuguesa e Brasileira de Michel Chandeigne, houve um encontro com Jorge Barreto Xavier, conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris, e Tiago Rodrigues, director do Festival de Avignon, entre outros. Uma conversa sobre a livraria como espaço democrático. E, acrescento eu, como espaço de resistência. Recordemo-nos de que a cultura é sempre a primeira vítima dos regimes autoritários. Porque desperta. Porque dá ferramentas para incomodar.
O fenómeno dos encerramentos incessantes de livrarias portuenses parece-me sintomático de uma erosão infelizmente mais profunda: a do acesso ao pensamento crítico, ao debate democrático e à cultura vivida como bem comum. E como se não bastasse o silêncio que se instala com o fecho destas portas, ainda há o ruído inútil que toma o seu lugar. Onde antes havia livrarias, há agora lojas de fast fashion e maquilhagem descartável. A cultura cede lugar ao consumo imediato. É triste, é ridículo, e é profundamente revelador de onde estamos a pôr, cada vez mais, as nossas prioridades enquanto sociedade.
Por isso, sim, este encerramento da Livraria Nunes no Porto entristece-me. Uma tristeza à distância mas uma tristeza política. Porque não é apenas uma livraria que morre. É uma possibilidade de mundo que se fecha. E enquanto ainda estiver de portas abertas, vão lá. Vão à Livraria Nunes, na Avenida da Boavista. Toquem nos livros. Conversem com quem lá está. E, por favor: não comprem só um marcador de páginas. Dizem que tudo tem de desaparecer. Pois que desapareça, sim, mas dentro dos vossos sacos.
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