Segundo confirmou esta semana o Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE, na sigla em inglês), as situações de violência doméstica identificadas são «apenas uma fracção da realidade».
Os dados revelam que quase uma em cada duas mulheres (47%) que sofreu violência nunca disse a ninguém, «seja à polícia, serviços de saúde, um amigo, vizinho ou colega». Por sua vez, a directora do instituto admitiu que a violência exercida sobre as mulheres «é tanto uma causa como uma consequência da desigualdade de género».
As vítimas de violência doméstica, seja ela física, psicológica, emocional ou sexual, provêm de diferentes classes sociais e apresentam várias idades. Apesar de não existir um padrão, quer dos agressores quer das vítimas, a dificuldade em assumir e denunciar a violência está muitas vezes ligada a preconceitos sociais, ameaças à integridade física e dependência financeira.
Em resumo, não basta denunciar. As vítimas precisam de ver reforçadas medidas de protecção e apoio, que sejam céleres e adaptadas às suas necessidades, independentemente da região onde habitem, de forma a preservarem alguma confiança. Neste âmbito, compete ao Estado assegurar a criação de uma rede pública que seja capaz de apoiar as vítimas e dessa forma garantir a igualdade perante a lei.
Mas é necessário também realizar trabalho efectivo a montante, que previna desde cedo retrocessos na consciência social e nas mentalidades. O aumento de queixas por violência no namoro, onde 89% das vítimas são raparigas, revela a pertinência desse trabalho.
Os números estão em crescendo desde que foi aprovada a alteração ao Código Penal, em 2013, onde, no artigo referente ao crime de violência doméstica (152.º) se acrescenta uma alínea específica sobre a violência no namoro. Até então, a violência no namoro em meio escolar não era monitorizada. Nesse ano a PSP tratou 1050 ocorrências. Em 2014 registou-se um aumento de 50%, tendo havido 1549 queixas por violência no namoro.
O Movimento Democrático de Mulheres (MDM) ressalva ainda a necessidade de se apostar na sensibilização e formação das forças de segurança, mas também das mulheres e raparigas em igualdade de género, «para o reforço da sua autoestima e das suas competências relacionais», a par da «formação em comunicação e relacionamento entre os casais, nas famílias e nas comunidades».
«Faça quem as fizer quem as paga é a minha mulher»
A violência doméstica é ancestral, tendo-se vulgarizado ao longo do tempo ditados populares que, além de servirem para reservar o crime à esfera privada («Entre marido e mulher não metas a colher»), legitimaram uma relação de poder do homem sobre a mulher.
Embora ainda haja resquícios dessa violação, ela foi um dos pilares da ditadura de Salazar, onde a mulher era um ser sem direitos. «Mãe, esposa e dona de casa», desta forma o fascismo atestava a atribuição das tarefas domésticas às mulheres, legalmente dependentes da autorização do «chefe de família», fosse para viajar ou para aceitar/manter um emprego. Mesmo na educação dos filhos o seu papel era subalternizado em relação ao homem.
Até 1969, a mulher não podia deslocar-se ao estrangeiro sem a autorização do marido. Até ao final da década de 60, as mulheres só podiam votar quando fossem chefes de família e possuíssem curso médio ou superior. Mas nem a instrução conferia inteiros poderes às mulheres. As enfermeiras, por exemplo, não podiam casar. As professoras podiam, mas desde que o futuro marido não auferisse um vencimento superior.
Com a Revolução de Abril e as transformações económicas e sociais que alavancou, os direitos económicos, sociais e culturais das mulheres passaram a estar defendidos na Constituição, assim como a igualdade nas esferas privada e pública.
Mas foi já em 1991, após a publicação da Lei 61/91, que resultou de um projecto do PCP, que os governos começaram a adoptar medidas em relação à protecção das mulheres vítimas de violência.
No preâmbulo do diploma lê-se uma afirmação que continua a revestir-se de actualidade: «As mulheres vítimas de opressão, muitas vezes continuam a calar e suportar em silêncio o produto violento de uma sociedade que ainda não deixou de rever-se em estruturas que colocavam as mulheres num dos últimos lugares da hierarquia».
O inimigo mora em casa
Embora se tenham dados passos significativos desde então, os dados do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), de 2016, revelam que as ocorrências da violência doméstica continuam a aumentar de forma significativa no nosso país, com as mulheres a protagonizar o maior número de vítimas (79,9%). Os agressores, na sua maioria homens (84,3%), são ou foram, em mais de 70% das situações, maridos e companheiros das vítimas.
Desde Janeiro deste ano e até à passada segunda-feira, 18 mulheres morreram, vítimas de violência, e outras três foram alvo da tentativa de homicídio. A maioria dos crimes foi cometida em casa pelos companheiros ou namorados das vítimas, que recorreram a armas brancas ou de fogo.
Em nove dos 18 casos, a medida de coacção aplicada foi a prisão preventiva e noutro a prisão domiciliária. Apesar de ser o número mais baixo de homicídios dos últimos 14 anos, em muitas situações já existiam processos-crime e inquéritos.
Pelo que, a campanha para assinalar este dia, #NemMais1MinutodeSilêncio, lançada pela Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, em conjunto com um leque de entidades relacionadas com os direitos das mulheres, sendo importante não é suficiente.
Apesar da legislação que existe hoje no nosso país, ao nível da prevenção da violência doméstica, na protecção e reparação das consequências das vítimas, e na penalização dos agressores é imperativo que haja uma aplicação célere dos mecanismos previstos a fim de evitar crimes e atenuar os traumas psicológicos e físicos que as sobreviventes enfrentam a curto e longo prazo.
Violência e desigualdade de mãos dadas
Outras formas de violência estão também a aumentar nos locais de trabalho, consideradas nas discriminações salariais e na desvalorização quer dar actividades profissionais quer das qualificações das mulheres.
Tal como recordou o então ministro Adjunto, Eduardo Cabrita, em Outubro, as disparidades salariais afectam sobretudo as mulheres mais qualificadas, chegando a receber menos 25% de vencimento do que homens com as mesmas qualificações.
«As disparidades aumentaram nos tempos de crise, reduziram-se nos últimos anos. O aumento sucessivo, significativo, do salário mínimo em 2016 e 2017 reduziu bastante as disparidades salariais, porque há muitas mulheres a ganhar o salário mínimo», sublinhava Eduardo Cabrita.
São, de facto, «muitas». Na base da pirâmide, são as mulheres quem maioritariamente aufere o salário mínimo nacional e baixas pensões de reforma.
A CGTP-IN frisa que «o elevado nível de desemprego e de novos riscos de perda de postos de trabalho para centenas de mulheres, bem como de existência prolongada de situações de salários em atraso, de precariedade elevada (em especial, das jovens trabalhadoras) e de pobreza laboral, dado que cada vez mais se empobrece a trabalhar», são factores que têm conduzido à naturalização da violência e assédio moral no trabalho.
Perante a declaração da comissária europeia responsável pela Justiça, Consumidores e Igualdade de Género, Vera Jourová, esta segunda-feira, na qual admitia que «a independência económica das mulheres é a sua melhor protecção contra a violência», a central sindical defende a tomada de medidas concretas.
Então, alerta, «a valorização do trabalho e dos trabalhadores significa atribuir conteúdo concreto a esta data, através de medidas, acções e políticas concretas que combatam as causas e origens» de todas as formas de violência contra as mulheres.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui