|Energia

Costa, a Galp e a Endesa

Percebe-se que o Governo não queira responder com clareza. Qualquer resposta clara só ajudará a deixar também mais clara a total perversidade de todo o mercado liberalizado da electricidade, mecanismo ibérico incluído.

Créditos / Shifter

Todos temos uma ideia – mais ou menos vaga – do episódio entre António Costa e a Galp. Em Maio de 2021 o primeiro-ministro disse publicamente que era necessário dar uma lição à Galp por causa do encerramento de Matosinhos. Por acaso, até era. Mas o que fez o primeiro-ministro?

O Governo português tem 7,48% das acções da Galp. Usou essa posição para questionar as opções da gestão na Assembleia Geral da Galp ou em qualquer outro local? Não, claro que não.

O Governo fez alguma coisa para reverter a decisão de encerramento da Refinaria? Não fez nada, antes pelo contrário, deu cobertura a esse encerramento. E podia ter feito muito, desde a nacionalização da própria Galp até à tomada de posse administrativa da Refinaria.

Um membro do seu governo, o ministro do Ambiente, antes e depois das declarações de António Costa, louvou e justificou a decisão de encerrar a Refinaria. O primeiro-ministro demitiu-o? Fez-lhe algo do género do que fez agora a Pedro Nuno dos Santos? Não, não fez nada.

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Galp Matosinhos: afinal, era mesmo para a especulação imobiliária

Quando anunciou há dois anos que ia encerrar a refinaria de Matosinhos, a Galp apressou-se a afastar o cenário de estar a destruir aparelho produtivo para se dedicar à especulação imobiliária.

Refinaria da Petrogal em Leça da Palmeira, Matosinhos. Foto de arquivo
Créditos / JM

Para ajudar, o Governo, e não só, inundaram o país de possíveis cenários de reconversão industrial para serem colocados em Matosinhos, do Hidrogénio ao Lítio, normalmente com a megalomania das «elites» lusitanas, ao mesmo tempo que o governo fingia acreditar que esse encerramento contribuía para a descarbonização, como se as refinarias estrangeiras não poluíssem o mesmo planeta que as portuguesas.

Ainda não se passaram dois anos, e já é oficial: a Galp divulgou quem vai assumir o projecto de «regeneração» dos 240 hectares da desactivada Refinaria de Matosinhos. Será uma empresa estrangeira, a holandesa MVRDC, que responderá pelo «masterplan» para o «Inovation District», que em 12 meses desenhará o projecto com o apoio de seis outras empresas subcontratadas, onde nos destacam a «Thornton Tomasetti» e a «LostLandscapes», que tratarão da construção de um green park e de um centro de startups. Um embrulho cheio de modernices e anglicismos, no fundo para tentar disfarçar que estamos perante «the same old shit»: destruir aparelho produtivo e usar os terrenos para a especulação imobiliária.

Também fomos informados dos prazos: nos próximos quatro cinco anos, a Galp tratará de destruir e remover as instalações industriais, e depois proceder à descontaminação dos solos. Entretanto, a restrição no PDM de Matosinhos só estará em vigor até 2029, limitando apenas até lá a construção imobiliária a 10%. Claro que as negociações já decorrem para alargar essa quota, usando argumentos hipócritas como «a necessidade de fixar localmente os trabalhadores desta nova área de Matosinhos», e a Presidente da Câmara já abriu a porta a essa revisão que acontecerá quando for necessário ao projecto e, com firmeza, garantindo que nunca antes disso. E ainda nos enchem os ouvidos com as habituais saloíces sonantes, «o maior e mais marcante projecto de desenvolvimento do país e um dos maiores da Europa», «30 mil postos de trabalho», «milhares de milhões de euros de investimento».

Para liderar a equipa deste processo, os capitalistas da Galp escolheram uma Secretário de Estado do Governo PS em 2017/2018, que também foi mandatária de Rui Moreira. Uma ilustrativa combinação, que mostra bem as ligações (e submissões) de certo tipo de poder político aos interesses dos grandes grupos capitalistas.

E enquanto os capitalistas da Galp encerravam uma refinaria para poderem ganhar milhões na especulação imobiliária, os portugueses pagam na gasolina e no gasóleo toda a especulação que se abateu sobre o preço dos combustíveis, nomeadamente nas margens de refinação, que aumentaram mais de 500% num ano, o que ajuda a explicar os lucros extraordinários da Galp no primeiro trimestre – 155 milhões! - apesar de ter destruído um terço da capacidade nacional de refinação, e ter colocado o país a importar gasóleo, alcatrão, e dezenas de outros produtos refinados.

Tipo de Artigo: 
Opinião
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Quando a Galp começou a especular escandalosamente com o preço dos combustíveis, o Governo fez algo? Bem, algo fez, mas foi para recusar as propostas do PCP de travar a especulação com a fixação de preços ou de criar um imposto que expropriasse este tipo de lucros. Ou seja, defendeu os interesses dos accionistas da Galp.

Agora a Galp está a desenvolver um plano de especulação imobiliária nas centenas de hectares «libertados» com o encerramento da Refinaria de Matosinhos e equipamentos relacionados. E o Governo português participa alegremente, e vai acabar a apoiar o processo.

No entanto, para quem vive na espuma dos eventos mediáticos, ainda se lembrará do dia em que Costa deu uma lição à Galp... não lhe perguntem é que lição foi.

Agora passa-se algo similar com a Endesa.

Primeiro, o representante desta multinacional dá uma entrevista que impactou na silly season com a sonante declaração de que haverá aumentos de 40% na factura eléctrica, já em Julho e Agosto, devido ao recém-criado mecanismo ibérico. Pressionado à esquerda (o PCP voltou a exigir que o Governo explicasse o mecanismo e recusou qualquer hipótese de os consumidores suportarem novo aumento) e à direita (o PSD disse, mais uma vez, que o Governo é trapalhão na execução da política de direita, o melhor é serem eles a fazê-lo), o Governo reagiu negando que o mecanismo ibérico implique esse aumento nas tarifas de electricidade e, mais à frente, o primeiro-ministro tornou público um despacho onde exige que todas as facturas da Endesa apresentadas ao Estado português (há múltiplas instituições públicas que serão suas clientes) só poderão ser pagas depois de se ter verificado a sua conformidade.

«Como? Opinião? O representante em Portugal de uma multinacional informa que a "sua" empresa vai ter que aumentar os preços 40% e isso é uma questão de opinião?»

E em cima desse despacho caiu o Carmo e a Trindade. No mesmo Jornal de Negócios onde se «informou» na primeira página que vinha aí um aumento de 40% nas tarifas eléctricas, uma editorialista fala – sobre o despacho de Costa – num «tiro na Constituição» e no ataque à liberdade de opinião dos empresários. Como? Opinião? O representante em Portugal de uma multinacional informa que a «sua» empresa vai ter que aumentar os preços 40% e isso é uma questão de opinião? É que das três uma: ou vai ter que aumentar 40%, e o Costa é um aldrabão; ou não vai, e então o representante da multinacional é um aldrabão; ou não se sabe, e o tipo é parvo, e um aldrabão. E, nos dois últimos casos, o Jornal de Negócios deu o título da sua primeira página às declarações de um aldrabão. Mas a editorialista do Jornal de Negócios continua, indignada: «a imposição de um visto prévio ao pagamento de facturas, acima do que fixam os contratos, configura um perigoso jogo de poder que roça a ilegalidade». Hãããã? Mas o Estado (e seja quem for) não deveria – sempre – recusar pagar acima do que se fixa em contrato? E o tipo da Endesa não disse publicamente – e no Jornal agora indignado – que as facturas da Endesa iam aumentar mais de 40%?

A polémica foi muita mas não foi, como sempre, em torno do essencial. Ouviu-se o velho «Isto é o quem se mete com o PS leva», e outras tiradas do género, naquela forma de discutir quem deve executar a política de direita a que alguns chamam «política». Mas, sobre o essencial, nada ou muito pouco: (1) perante uma declaração deste calibre e o seu rotundo desmentido, quem está a mentir? Porquê? (2) Como funciona o tal mecanismo ibérico e, principalmente, como vai ser financiado?

«Neste espectacular mercado liberalizado, a artificial complexidade dos mecanismos de fixação do preço da electricidade é essencial para que o povo não se revolte com o esbulho a que está a ser sujeito.»

Só o PCP insistiu na segunda questão. E sobre isso a clareza foi pouca, ou quase nenhuma. Neste espectacular mercado liberalizado, a artificial complexidade dos mecanismos de fixação do preço da electricidade é essencial para que o povo não se revolte com o esbulho a que está a ser sujeito.  Leiam a resposta do Governo à pergunta 301/XV/1 de 28 de Junho do PCP sobre «Imputação aos consumidores dos custos relativos ao mecanismo de fixação do preço do gás na produção eléctrica». Além de ter a vantagem de recordar que há quem se preocupe com os problemas antes de eles serem capa de jornal, tem ainda a extraordinária vantagem de revelar a críptica opacidade da resposta do Governo.

Aparentemente, uma parte do custo com o mecanismo virá da «devolução antecipada aos consumidores de receitas extraordinárias recolhidas nos primeiros meses do ano», ou seja, já foi paga pelos consumidores. Uma outra parte virá do Fundo Ambiental, de onde já foram transferidos «150 milhões dos leilões de carbono»... que agora – ainda há espaço para a ironia – são usados para financiar a queima de gás natural para produzir electricidade. Mas isto não chega para cobrir os 2,1 mil milhões de apoios às produtoras de electricidade com gás natural.

«Quem recebe são os que estão a especular com o preço do gás no mercado liberalizado. A chamada fina-flor do entulho neoliberal. Que António Costa e o seu governo continuam a proteger.»

Mas percebe-se que o Governo não queira responder com clareza. Qualquer resposta clara só ajudará a deixar também mais clara a total perversidade de todo o mercado liberalizado da electricidade, mecanismo ibérico incluído. O Governo prefere fazer truques de ilusionista: abana o mecanismo ibérico, e «pufffff»... a electricidade fica 15% mais barata que sem o mecanismo. Mas como o mecanismo não trava a subida de preços, subsidia a diferença entre um preço máximo e o preço «construído» no mercado, de cada vez que trava uma subida está a pagar.

Ora bem: quem está a pagar esses 15%? As empresas? Se estivessem a pagar tudo, estariam a protestar muito mais. Os consumidores? Alguma parte mais lhes tocará, de certeza. Fundos públicos? É a outra possibilidade. Vejam como é mais fácil fingir que a política é a invenção de «mecanismos» que resolvem problemas através da magia. Quando, neste caso, é essencialmente a opção de quem paga e quem recebe.

E quem está a receber esses 15%? Eis a pergunta que vale 2100 milhões de euros... Quem recebe são os que estão a especular com o preço do gás no mercado liberalizado. A chamada fina-flor do entulho neoliberal. Que António Costa e o seu governo continuam a proteger.

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