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Presos políticos, há 43 anos!

Sim, há 43 anos, a libertação incondicional dos presos políticos não foi tão pacífica como isso! Para melhor entendimento desta afirmação, teremos de remontar à origem do Movimento dos Capitães, surgido cerca de um ano antes, motivado por uma reivindicação de carácter corporativo, como resposta a um despacho da hierarquia do Exército e na qual convergiram oficiais dos quadros permanentes desse ramo com distintos interesses, ideologias e matizes.

Créditos / Almanaque Republicano

Um dos grupos mais assertivos na salvaguarda daquilo que considerava os seus direitos era constituído, talvez não por acaso, por oficiais que serviam, ou tinham servido com o General António de Spínola, chefe militar carismático que, em dada ocasião, optou por entrar em divergência com o Governo sobre assuntos relacionados com a administração colonial. Embora este episódio tivesse, na época, entrado no domínio público, não foi entendido do mesmo modo pela generalidade dos oficiais do Exército, nem, tampouco, pelo cidadão comum.

Spínola era por muitos considerado o modelo de chefe militar austero, justo, exigente e intransigente, tipicamente predestinado a liderar um movimento capaz de derrubar o governo ditatorial fascista, encetando um novo ciclo governativo sem perturbar o fundamental, ou seja, sem alterar a estrutura hierarquizada das Forças Armadas, nem da malha social do país.

Agora, todos sabemos que o Movimento se constituiu e foi solidificando com a adesão determinada de outros grupos de oficiais, que bem mais pretendiam do que isso e que acabaram por desenhar um projecto político e social para Portugal, estabelecendo como uma das prioridades, o acabar com guerra colonial.

De entre outras delas e, inerente ao derrube do estado fascista, encontravam-se a libertação total e incondicional dos presos por delito de opinião – uma vergonha para o País, internacionalmente – e a extinção da polícia política.

O referido projecto, dado à luz sob a forma do documento e que passou a ser conhecido como «Programa do Movimento das Forças Armadas», foi redigido por um pequeno grupo de oficiais mais politizados do que a generalidade, ao qual haviam sido chamados uns poucos da Marinha, ramo que havia declarado a sua neutralidade activa caso ocorresse um golpe militar, mas que era, geralmente, considerado como o mais progressista dentro das Forças Armadas Portuguesas.

Em vésperas da acção militar e, logo que escolhidos os chefes que constituiriam uma Junta Governativa, foi o programa apresentado a Spínola, naturalmente um dos generais do Exército que a constituiriam. Evidentemente que ocorreram sérias divergências de opinião, mesmo iminência de conflito, ultrapassado pelo bom senso e pela vontade de mudar dos oficiais responsáveis pelo Programa, que fizeram, ou simularam admitir algumas cedências no conteúdo político da letra do documento. Entre outras, foram motivo de objecção da parte do General a libertação incondicional dos presos políticos e a extinção imediata da PIDE/DGS. Após várias diligências, aceitou-se que as palavras incondicional e imediata, para cada um dos casos, seriam retiradas do texto do Programa.

Todos sabiam que Spínola sempre havia sido não apenas um militar do regime, como um homem comprometido com alguns dos seus pilares, através de laços familiares e de amizade. Tinha sido, durante largos anos, oficial da Guarda Nacional Republicana, força transformada, quase desde o início, na polícia militar do fascismo; nessa qualidade, fora instrutor de equitação da Mocidade Portuguesa e, caso mais sério, acompanhara como observador, mas com convicção, durante alguns meses, a actividade da frente leste do exército nazi durante a II Guerra Mundial; regressado ao Exército, sempre se mostrou um acérrimo defensor do Portugal uno e pluricontinental, advogando a manutenção das colónias como parte integrante da Pátria, empenhando-se na guerra colonial até ao topo da sua carreira, como Governador e Comandante-Chefe das FA na Guiné.

Ora, não seria de um momento para o outro que, por uma questão de divergência de métodos de condução da política colonial de Marcelo Caetano, se tornaria um democrata. Foi, outrossim, o seu grande ego ávido de protagonismo e a sua desmedida ambição que o levaram a aceitar a liderança de um movimento militar que derrubaria o regime com que entrara em rota de colisão.

E, aí temos o homem que, embora hierarquicamente mais moderno do que o brilhante mas discreto Costa Gomes, se guinda à presidência da Junta de Salvação Nacional (JSN) e, por inerência, da República Portuguesa. Uma vez assumido o cargo, chamou para junto de si alguns conselheiros políticos que haviam rompido com a Assembleia Nacional fascista, entre os quais figuravam Sá Carneiro, Mota Amaral, Pinto Balsemão.

Foi neste contexto, com não pouca confusão à mistura, que alguém se lembrou de que urgia libertar os presos políticos encarcerados nos fortes de Caxias e de Peniche. Propõe-se atermo-nos à libertação de Peniche, pois foi essa a nossa experiência e já que em Caxias ela se processou de distinta forma.

Foram escolhidos pelo então Coronel Vasco Gonçalves, oficial mais graduado da Comissão Coordenadora do Movimento, dois oficiais superiores, um do Exército e outro da Marinha, para a função de «libertadores», actuando como delegados da Junta nessa missão. Para tal, foram conduzidos por Vasco Gonçalves à presença de Spínola, que exigiu dar-lhes instruções directas sobre o procedimento de libertação.

A sala onde se tinham instalado os membros da Junta, já no Palácio da Cova da Moura (ex-EMGFA), encontrava-se cheia de gente aparentemente muito ocupada, mas sem qualquer disciplina. As palavras, sob a forma de instruções, que Spínola dirigiu aos oficiais sobre o processo foram inequívocas da opção que havia tomado, presumivelmente sob conselho de Sá Carneiro e de ouros juristas presentes: apenas seriam libertados sem condições, os detidos que não tivessem condenações por crimes do foro civil, tais como homicídios, assaltos a bancos, falsificação de documentos.

Após um primeiro momento de perplexidade, o oficial da Armada dirigiu-se-lhe, argumentando que se os homens haviam cometido crimes desse teor, não o haveriam de ter feito em proveito próprio, mas sim de uma causa comum, que defendiam, pelo que deveriam ser considerados crimes políticos.

Então, Spínola, perdendo todo o controlo sobre si próprio, deu um soco na mesa que o separava dos oficiais, Vasco Gonçalves incluído, abriu os olhos, o que provocou o voo do ridículo monóculo ao longo do tampo e vociferou que cumpririam à risca o que havia determinado, pelo que havia indigitado três advogados para acompanharem os «libertadores», aconselhando estes em caso de dúvidas sobre os processos e a natureza dos crimes imputados. E, que saíssem urgentemente, que a missão já se encontrava em atraso.

Deixada a sala e, ainda antes que os causídicos se lhes juntassem, solicitou-se a opinião de Vasco Gonçalves sobre o ocorrido e as ocorrências que, provavelmente, daí adviriam, como o facto mais provável dos presos se solidarizarem e nenhum querer sair se tal não sucedesse com todos. Pronunciou-se, então, o sábio Coronel sobre o facto de os escolhidos serem oficiais superiores, delegados da JSN, logo detentores de toda a legitimidade do MFA para decidir, não devendo, de modo algum, permitir qualquer manipulação por parte dos advogados.

«Todos sabiam que Spínola sempre havia sido não apenas um militar do regime, como um homem comprometido com alguns dos seus pilares, através de laços familiares e de amizade.»

Contudo, após a partida para Peniche, que se processou já a tarde ia avançada (cerca das 17 horas), não deixou de constituir preocupação constante para os oficiais a forma como iria decorrer a operação de libertação, assim como o panorama físico e humano que se vislumbraria no local naqueles momentos, não podendo esquecer-se que, à época, as comunicações eram lentas e difíceis começando pelas estradas do trajecto, precárias e sinuosas, acabando nas telefónicas, que necessitavam de um pedido de «troncas» e respectivo tempo de espera para se efectuarem. Por outro lado, não se possuía qualquer informação sobre a situação militar do Forte, sabendo-se, apenas, que a GNR se rendera na véspera a uma Companhia de Infantaria e, nada mais.

Finalmente, chegou-se ao largo fronteiro à Fortaleza de Peniche apenas pelas 22 horas, porquanto foi necessário efectuar uma paragem logística a pedido dos senhores advogados, que se queixaram do longo jejum imposto pela sua chamada às novas funções. Tal facto atrasou a caravana em cerca de uma hora. Lá, então, a multidão era muita, a ansiedade maior, os gritos, entre aclamações e críticas ao retardo, evidentes, as palavras de ordem profusas.

Estranhou-se que, quem tivesse vindo abrir o portão tivessem sido elementos da GNR mas, perante a sua subserviência, constatou-se que estavam «cativados». Após visita prévia às instalações onde se encontravam os detidos, conduzida pelo Director da Prisão e por um dos oficiais da Companhia de Infantaria ocupante, no impedimento físico do Capitão, procedeu-se aos preparativos para o protocolo da libertação.

Note-se que, no decorrer desta visita, se ouviu uma palavra de ordem clamada pelos presos das facções esquerdistas: «ou todos, ou nenhum», sintomática de que se encontravam conhecedores das reservas colocadas quanto à libertação. Foram, então, dadas as instruções pelos oficiais delegados da JSN sobre o modo como se iria proceder ao acto de libertação, com a passagem dos detidos, individualmente, por uma espécie de tribunal «ad-hoc», constituído pelo oficial da Marinha, que presidia, pelo Alferes mais antigo da Companhia e pelos três causídicos, instalados ao longo de uma mesa na secretaria da prisão; a elaboração, pelo Escrivão, de uma Acta de Libertação que ia sendo ditada pelo Director e com o teor que o oficial da Armada acordasse, a devolução in loco dos pertences aos detidos que iam sendo libertados.

Tomou-se conhecimento, entretanto, através do Director, de que eram quatro os presos acusados por crimes de homicídio, não havendo qualquer um de assaltos a bancos ou outras instituições. Decidiu-se remetê-los para o final. O crime de falsificação de documentos, referido por Spínola, não foi sequer equacionado, dado tal ser considerado uma prática corrente e necessária à vida de qualquer militante clandestino.

Antes, porém, da chamada do primeiro detido, apareceu em cena uma personagem que havia passado despercebida até então e que, aparentemente, não fazia parte do elenco da peça que estava a decorrer. Intitulou-se advogado constituído de três dos quatro «homicidas», desejando apresentar a proposta de os seus constituintes serem libertados na ocasião, tornando-se ele próprio seu fiel custódio até que fosse tomada uma decisão definitiva sobre o seu destino.

Analisada a situação pelos oficiais «libertadores» e excluídos os outros advogados, vindos de Lisboa, cuja atitude de desagrado era evidente, decidiram aqueles pela positiva, com a condição de o proponente assumir, igualmente, a responsabilidade pelo quarto acusado, que não era seu cliente.

Foi chamado o primeiro preso a libertar e, durante a análise do seu processo, após uma vista de olhos passada pelo oficial que presidia, resolveram os três advogados dissecá-lo até ao pormenor. Tratando-se de um caso pacífico, foi-lhes chamada a atenção pelo oficial da Armada que, por aquele andar, chegaria o mês de Maio e ainda permaneceriam todos naquele local.

Não gostaram e fizeram ver que, nesse caso, não se encontravam ali a fazer nada, replicando-lhes o oficial que de facto sim, talvez o não estivessem, dando-lhes a entender que a sua presença lhes tinha sido imposta por Spínola e que quem havia, deveras, decidido libertar os presos políticos era o MFA.

A partir deste episódio, em que os advogados foram «postos em sentido», tudo decorreu sem obstáculos, a despeito do amuo dos senhores. A saída em liberdade dos detidos processou-se até cerca da meia-noite, seguindo os quatro últimos sob custódia do advogado proponente da forma de tornear a questão, após este ter assinado um termo de responsabilidade, conjuntamente com os dois oficiais delegados da JSN.

Partiu-se de Peniche passava já das 2 horas da madrugada, não sem antes todos terem participado numa ceia de excelente peixe acabado de chegar do mar, assado na brasa, obséquio do destacamento da GNR (quiçá para fazer esquecer recentes tempos mais obscuros da sua actuação) facto que contribuiu para o esmorecimento do mau humor dos causídicos.

Chegou-se a Lisboa por volta das 5 horas da manhã, tempo de repousar antes de voltar e enfrentar Spínola. Logo após a hora de almoço, os dois oficiais reencontraram-se e, após uma breve troca de impressões sobre qual a melhor maneira de colocar a questão a Spínola, não encontrando Vasco Gonçalves no edifício, resolveram dirigir-se à sala da JSN. Nela apenas se encontrava o já Almirante Rosa Coutinho que, posto ao corrente da situação, não hesitou em assinar a caducidade do termo de responsabilidade do advogado e a consequente liberdade incondicional dos quatro homens, ao mesmo tempo que desabafava: «isto está a andar muito mais depressa do que todos esperávamos!».

E, para bem de todos, continuou a andar!...  

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