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Colonialismo e guerra colonial – reflexão de um combatente

Foi a guerra colonial e a miséria em que vivia o povo português que levou os militares a posicionarem-se contra a guerra e a derrubar o regime que a alimentava e promovia.

Soldados do exército português durante a guerra colonial. Foto de arquivo
Créditos / Newsmuseum, Lisboa-Sintra

É conhecido o poder que a comunicação social tem sobre a consciência das pessoas e na interpretação dos factos. Nas mãos da classe dominante e dos grandes interesses económicos esse poder serve também para distorcer ou de caixa de ressonância a grupos de pressão, sem qualquer representatividade na sociedade portuguesa.

«do debate estiveram ausentes os verdadeiros protagonistas, os que sentiram na pele a tragédia da guerra colonial e a participação numa das páginas mais brilhantes da Revolução de Abril – o processo de descolonização»

Neste quadro, está um dos programas da RTP da série «É Ou Não É? O Grande Debate», que decorreu sob o tema «Como lidar com a nossa herança histórica» e abriu com a afirmação de que «Os últimos dias mostraram que o colonialismo e as memórias da ditadura estão ainda presentes e condicionam o debate político».

Partindo desta categórica afirmação, o debate decorreu em torno do falecimento de Marcelino da Mata, dos Brasões da Praça do Império, do Padrão dos Descobrimentos, do monumento aos Combatentes do Ultramar e até a Ponte 25 de Abril veio à baila.

Para analisar esta amálgama de símbolos e identidades foi constituído um painel de investigadores, especialistas e colunistas.

Como quase sempre, porém, do debate estiveram ausentes os verdadeiros protagonistas, os que sentiram na pele a tragédia da guerra colonial e a participação numa das páginas mais brilhantes da Revolução de Abril – o processo de descolonização.

Um debate preparado política e ideologicamente para chegar a uma conclusão: existem feridas abertas na sociedade portuguesa que ainda não foram saradas e que ciclicamente vêm ao de cima.

Num debate que se baseou em pressupostos errados, as conclusões não podiam estar certas. Tratou-se de pura guerra psicológica para desenterrar o passado de Portugal colonial, teimar «na ficção» de que existem feridas abertas, dando alimento para o imaginário de ressentimentos e ódios de uma míngua de saudosistas, defensores do salazarismo e da continuidade do Império.

No entanto, é justo salientar que houve intervenções, feitas on-line, com seriedade quanto à matéria que estava em debate, mas que acabaram por ficar diluídas face à mediocridade evidenciada por intervenientes em estúdio, a qual rondou o patético e o absurdo.

Uma guerra inútil

Mas é importante esclarecer, em nome do rigor, que a guerra colonial era uma guerra de um regime. Um regime que perfilhava a ideologia fascista e de pilhagem das colónias ao serviço dos grandes interesses capitalistas. Foram guerras nas várias colónias, com as quais o povo português nunca se identificou e sempre repudiou, porque os soldados que a combatiam, numa guerra inútil e contra o sentido da História, eram os seus filhos, maridos e pais.

As tais feridas abertas na sociedade, se as há, são pela dor e memória dos que tombaram na guerra colonial.

«a guerra colonial era uma guerra de um regime [...] que perfilhava a ideologia fascista e de pilhagem das colónias ao serviço dos grandes interesses capitalistas»

Uma guerra que durou 14 longos anos e mobilizou mais de um milhão de jovens, três teatros de operações e várias frentes de combate. Delas resultaram 10 mil mortos, 45 mil estropiados, 140 mil com «stress de guerra». Cifras negras a que há que chamar o «morticínio dos povos africanos das colónias». Não há números exactos, mas fala-se em mais de 1 milhão de africanos que morreram nas suas terras, em resultado da política criminosa da ditadura fascista.

Espírito libertador

Foi a guerra colonial e a miséria em que vivia o povo português que levou os militares a posicionarem-se contra a guerra e a derrubar o regime que a alimentava e promovia. Militares que, antes de o serem, eram trabalhadores, camponeses, estudantes.

Não existia tarefa mais importante, após o derrube da ditadura, do que pôr fim à guerra e defender a paz. Para que isso acontecesse impunha-se descolonizar, uma tarefa de grande complexidade e dimensão, já que o problema não podia ser resolvido com recurso à experiência de outros países, muito menos segundo qualquer esquema pré-estabelecido.

«manifestações esporádicas de um núcleo duro de saudosistas da submissão colonial e do salazarismo [...] não têm expressão na sociedade portuguesa que, maioritariamente, assume sentimentos democráticos, anti-coloniais e anti-racistas»

A fórmula encontrada foi transportar o espírito libertador do 25 de Abril para as colónias, onde esteve presente a solidariedade e a acção concertada com os representantes legítimos dos povos colonizados, a qual permitiu, por um lado, o fim da guerra e a autodeterminação e independência desses territórios; e, por outro, defender a integridade das Forças Armadas e salvaguardar a paz e cooperação com os novos países independentes. Muitos falam da descolonização descontextualizando-a, como forma de atingir os seus objectivos.

A dimensão do conflito guerra colonial/descolonização, e o que resta destes dois acontecimentos na consciência e memória do povo português, é de uma grande elevação e serenidade, de solidariedade e amizade com as ex-colónias, hoje países independentes. O resto, são manifestações esporádicas de um núcleo duro de saudosistas da submissão colonial e do salazarismo que não têm expressão na sociedade portuguesa que, maioritariamente, assume sentimentos democráticos, anti-coloniais e anti-racistas.

Valores constitucionais

É fundamental que todo o acervo relativo ao colonialismo, salazarismo e fascismo, pela complexidade de que se reveste, seja enquadrado pelos princípios e valores democráticos e constitucionais, elementos decisivos para a formação de uma cultura e mentalidade antifascista, anti-colonialista e anti-racista, capaz de resistir às conjunturas de momento e às tentativas de branqueamento do fascismo.

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