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Saúde privada: «Queres fiado? Toma!...»

Devemos considerar a recusa de tratamento da vítima de um acidente, acontecido no interior de um hospital privado, um acto desumano ou perverso dos agentes envolvidos?

CréditosInácio Rosa / Agência Lusa

O presente artigo não pretende fazer uma observação «macro» da Saúde em Portugal, mas antes uma análise «micro» de reacções individuais ou de grupo, reais ou fáceis de adivinhar, a propósito de um episódio em que os diversos agentes se movem no «ecossistema privado» que determina as suas regras e valores.

«o poder político das últimas décadas estendeu também esse ambiente [o «ecossistema privado»] a hospitais e unidades de saúde públicos onde, a cultura e objectivos «empresariais», foram sendo inoculados, afastando a lógica ligada aos direitos constitucionais de uma assistência universal e de qualidade prestada pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS)»

Sublinhe-se que, quando falamos em «ecossistema privado», não nos referimos exclusivamente aos grandes grupos financeiros que dominam o mercado da prestação de cuidados de saúde.

Eles são, naturalmente, onde esses valores melhor se exprimem. Mas o poder político das últimas décadas estendeu também esse ambiente a hospitais e unidades de saúde públicos onde, a cultura e objectivos «empresariais», foram sendo inoculados, afastando a lógica ligada aos direitos constitucionais de uma assistência universal e de qualidade prestada pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Os factos (segundo a imprensa e a TV)

Uma mulher de 46 anos, que acompanhava um familiar, sofreu uma queda nas escadas rolantes de um hospital de um grande grupo privado do Norte (Trofa Saúde).

Segundo a descrição, a mulher «caiu de cabeça» tendo sofrido traumatismo craniano, lacerações profundas no nariz e na testa, e fractura de um punho.

«Provavelmente, mesmo um frio gestor do Grupo Trofa que encontrasse, na rua da sua aldeia, uma mulher a sangrar, faria tudo para lhe prestar assistência. Mas, no cargo que ocupa, a bondade desse gesto colide com os sacralizados valores de mercantilização da Saúde que a empresa lhe transmite»

Levada ao Serviço de Urgências desse mesmo hospital, a sinistrada foi aí observada por dois médicos que consideraram necessária a sutura das feridas, um exame radiológico do antebraço e uma TAC para excluir a existência de lesão intracraniana.

A conta foi avaliada em 600 euros, e, uma vez que a sinistrada não tinha seguro, foi comunicado a um familiar que ou pagava essa verba ou não havia tratamento para ninguém.

Como o familiar não quis ou não pôde pagar, a mulher ficou com as feridas abertas e o braço fracturado sem tratamento, a aguardar a ambulância que a «despejou» no Hospital de São João, do Porto (SNS), onde foi devidamente assistida.

O triste episódio, trouxe à memória cenas chocantes do filme Sicko de Michael Moore1, que retrata o desastre humanitário do «sistema» privado norte-americano:

Doentes envelhecidos e confusos, cobertos apenas com batas brancas – expulsos de um hospital privado por falta de financiamento – pairam, como fantasmas, numa rua frente a uma instituição de caridade, esperando que alguém os socorra.

É a lei do mercado, dirão alguns, convertidos à ideologia neoliberal do «cada um trata de si».

«O Grupo Trofa podia ter um seguro para cobrir acidentes nas suas instalações…»; «A queda foi dentro do hospital, mas é igual a ter acontecido na rua ou num shopping...» – foram alguns dos comentários, num chat das redes sociais só para médicos, mostrando a sua adaptação a uma medicina americanizada”, transformada em nova realidade.

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Os médicos e o guarda-chuva

A velha propaganda sobre as vantagens da gestão privada e da empresarialização deixou de pegar. Está à mostra a necessidade da existência de um grande serviço público universal de saúde, estruturado e gratuito.

Médicos e enfermeiros do Hospital de São João, no Porto, agradecem o tributo, prestado por membros das forças de segurança, aos profissionais de saúde dedicados à mitigação da doença causada pelo novo coronavírus, a 17 de Abril de 2020
CréditosFernando Veludo / LUSA

«É preciso e urgente meter os médicos na ordem. Esta classe de privilegiados faz finca-pé na exigência de mais e mais regalias (…). Precisamos de um Governo que ponha travão a tanto ultimato classista, que se levanta por dá cá aquela palha, sem qualquer promessa de dar em troca deveres e obrigações (…).» (Público, 13 de Agosto de 2017).

A citação faz parte de um texto publicado há cerca de três anos na rubrica «Cartas ao Director». Ela exprime a posição de um leitor e, como tal, poderia não representar mais do que isso. O que lhe dá outro significado é ter sido seleccionado, entre centenas de comentários e temas, pela direcção do Público, numa época em que se assistia a uma agudização da luta dos médicos por melhores condições de trabalho e pela defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Ainda há pouco, o número de agressões verbais e físicas a médicos, primeiros bodes expiatórios das políticas responsáveis pela degradação do SNS, estava num crescendo exponencial. Agora, mesmo para o Público, o tempo está mais para palmas e homenagens aos «heróis» que combatem a ameaça com risco da própria vida.

«Condicionados pela pandemia, programas de grande audiência, que cobriam manhãs e tardes da televisão repetindo desgraças, erros e negligências do SNS, causados por médicos prepotentes e desleixados, deram lugar a entrevistas e mesas redondas com os novos heróis que antes eram, tantas vezes, indiscriminadamente acusados»

Convém sublinhar que não são só os médicos que se arriscam na primeira linha, trabalhando até ao esgotamento se necessário. Há enfermeiros, técnicos, secretários, pessoal administrativo, assistentes operacionais, equipes de transporte e muitos outros. Alguns, sempre ignorados nas suas necessidades e direitos, com empregos precários, salários baixos e piores condições de defesa e de confinamento domiciliário.

Mais de dois mil trabalhadores da Saúde estão neste momento infectados, traduzindo o seu empenho, mas também falhas na sua defesa, por falta de material, de organização, de treino e de outras condições de segurança. Cerca de 11% do total de pessoas contaminadas. Quatrocentos são médicos.

Independentemente dos aspectos circunstanciais, o ataque do leitor do Público aos médicos erra completamente no alvo. Não são eles, na sua generalidade, os privilegiados do sistema, tendo visto a sua situação profissional cada vez mais desgastada e desvalorizada, por uma medicina empresarializada dirigida à «produção» e ao «lucro», que os trata como proletários sem direitos, avaliados à tarefa e mal pagos.

Os médicos não são donos ou accionistas dos grandes grupos financeiros que dominam o sector e lhe definem as regras. Nem são eles que estabelecem a política governamental, como faz a banca. A grande maioria vive do salário e/ou é paga à tarefa, dependendo de tabelas e imposições que os ultrapassam, com contratos mais ou menos precários e «uberizados», mesmo se, devido à diferenciação técnica e ao excesso de horas de trabalho, conseguem manter um razoável nível económico e social.

A pandemia do coronavírus e o perigo real que passou a representar para a Humanidade, criaram uma situação sanitária, social e económica inédita, que alterou profundamente o quotidiano e as preocupações dos cidadãos, suspendendo e modificando, momentaneamente, o discurso ideológico que os procura condicionar, de que o texto inicialmente citado, é uma amostra.

«No SNS, o embate da pandemia do COVID-19 fez com que a hierarquia de uma gestão «empresarial» centrada em objectivos burocrático-administrativos, entrasse frequentemente em confronto com médicos e profissionais que dão prioridade a uma estratégia centrada na qualidade da resposta clínica e assistencial»

Agora, as estrelas da TV deixaram de ser actrizes, jornalistas, jogadores de futebol ou videntes de tarot, substituídos por médicos de saúde pública (tão desprezada), epidemiologistas, pneumologistas, intensivistas, imunologistas, cientistas e investigadores até aqui desconhecidos do grande público, que passaram a ter uma presença contínua na televisão e nas redes sociais.

Condicionados pela pandemia, programas de grande audiência, que cobriam manhãs e tardes da televisão repetindo desgraças, erros e negligências do SNS, causados por médicos prepotentes e desleixados, deram lugar a entrevistas e mesas redondas com os novos heróis que antes eram, tantas vezes, indiscriminadamente acusados.

As explicações científicas dos novos protagonistas, vieram também substituir o tempo diariamente dedicado às terapias Reiki, aos tratamentos homeopáticos, aos milagres da aromaterapia ou de outras inventoterapias cheias de meridianos e correntes energéticas, que há muito enchem os programas da TV.

E essa foi outra das perdas colaterais causadas pela COVID-19: o apagamento nos media das «medicinas alternativas» baseadas nas «outras cientificidades» referidas por um alto dirigente da Direcção Geral da Saúde como justificação de as «oficializar» (lei 45/2003), sem que nunca se tenha percebido o que essas «cientificidades» são e em que mundo existem.

Agravando esse apagamento, o governo chinês não publicitou qualquer recurso à «Medicina Tradicional Chinesa» para combater a COVID-19, embora até estivesse a jogar em casa. Pelo contrário, a China optou por mostrar invulgares capacidades de investigação e aplicação da Medicina «convencional», «científica» ou «ocidental» (resumindo, a Medicina, sem acrescentos nem aspas) para identificar, sequenciar, testar, organizar e conter com êxito a pandemia.

Agora, que a doença provou ser séria e poder atingir toda a gente, a esperança de uma solução eficaz é depositada nos avanços do conhecimento científico, à semelhança do conseguido noutras infecções víricas, como a Sida ou a Hepatite C.

Claro que as crenças de fé, não desapareceram da mente de muitos dos que, formados na aceitação do pensamento mágico, não reconhecem o alcance e rigor dos processos que proporcionaram os enormes avanços da medicina moderna e da ciência em geral.

«Outra baixa colateral da COVID-19 é o mito do papel estrutural dos grandes grupos privados da Saúde. Quando agora pensamos no combate à pandemia do coronavírus, pensamos no SNS. A grande [saúde] privada (CUF, Luz, Lusíadas Trofa, Sanfil) ficou atrás das trincheiras, com instalações vazias, baixando 80% do negócio. (…) É hoje difícil, à maior parte dos portugueses, imaginar o combate à pandemia sem haver o SNS, mesmo se debilitado devido a perversos cortes e enviesamentos»

Infelizmente, como prevê David Marçal no artigo «Novo coronavírus, uma vacina contra os movimentos antivacinas?» (Público, 8 de Março de 2020), passado o perigo e conseguidos medicamentos e vacinas eficazes, a crendice nas «alternativas» e nas «outras cientificidades» irá voltar com a ajuda dos media e do ambiente anticientífico que alimentam.

No SNS, o embate da pandemia do COVID-19 fez com que a hierarquia de uma gestão «empresarial» centrada em objectivos burocrático-administrativos, entrasse frequentemente em confronto com médicos e profissionais que dão prioridade a uma estratégia centrada na qualidade da resposta clínica e assistencial.

A forma quase caricatural como muitas administrações mantiveram a obrigação dos trabalhadores de porem o dedo nos aparelhos de registo biométrico, desprezando a possibilidade deles constituírem um ponto de contaminação, é disso exemplo.

Essa preocupação desnecessária continuou mesmo quando, por todo o lado, se louvava a disponibilidade mostrada por esses profissionais para cumprirem longos turnos de trabalho, muito para além dever e em condições difíceis e perigosas.

Outra baixa colateral da COVID-19 é o mito do papel estrutural dos grandes grupos privados da Saúde.

Quando agora pensamos no combate à pandemia do coronavírus, pensamos no SNS. A grande saúde privada (CUF, Luz, Lusíadas Trofa, Sanfil) ficou atrás das trincheiras, com instalações vazias, baixando 80% do negócio.

Também os médicos com consultório próprio e os que trabalham a recibo verde em unidades privadas, a quem pagam uma significativa percentagem do que ganham, assistem a uma drástica diminuição nos rendimentos e é o salário do SNS que lhes atenua as perdas (o que deve ser motivo de reflexão sobre vantagens e direitos, como baixas por doença, férias remuneradas e segurança na reforma).

O sistema privado hibernou logo no início do combate, reduzido a algumas encomendas públicas de testes e tratamentos de retaguarda. É hoje difícil, à maior parte dos portugueses, imaginar o combate à pandemia sem haver o SNS, mesmo se debilitado devido a perversos cortes e enviesamentos.

De resto, são do SNS quase todas as caras que aparecem nos programas da TV, médicos e investigadores nele formados ou nos grandes centros de investigação pública, explicando os complexos mecanismos dos vírus, das vacinas, ou as formas de sequenciação do genoma. Se alguns também trabalham na saúde privada (e podem-no fazer honestamente) não foi aí que ganharam o prestígio e a credibilidade que os distinguem.

O sistema de «ausência de sistema» dos EUA, um modelo privado assente em seguros individuais e no «cada um trata de si», mostra-nos o que pode acontecer numa situação de crise de pandémica, deixando sem assistência e sem emprego, muitos milhões de cidadãos.

Embora a distribuição nos diversos estados seja muito irregular, em Nova Iorque, centro maior da pandemia, a mortalidade é de 136 por 100 mil habitantes, cerca de duas vezes superior à da Bélgica (56) e três vezes à de Espanha (47) e de Itália (43).

Para além da falta de material – num país que é a maior economia do mundo – os médicos da linha da frente viram, no momento em são mais necessários, a sua remuneração diminuir.

«O corte nas retribuições integra uma tendência nacional de hospitais e grupos de saúde, com diminuição das remunerações mesmo dos médicos que estão na linha da frente». (Lev Facher, «Amid coronavirus, private equity-backed company slashes benefits for emergency room doctors» em STAT, 1 de Abril de 2020).

«A velha propaganda sobre as vantagens da gestão privada e da empresarialização, deixou de pegar. Está à mostra a necessidade da existência de um grande serviço público universal, estruturado e gratuito. Tornou-se clara a sua importância e imprescindibilidade para garantir os cuidados de saúde à população numa situação de aperto. Há que garantir a sua qualidade, sustentabilidade e extensão no futuro»

Em Portugal, a grande saúde privada continua a necessitar de estar ligada ao ventilador dos cofres públicos para continuar a respirar. Sem o dinheiro do Estado (que diz não existir para o SNS), o negócio definha e entra em coma. Principalmente numa grande crise de saúde pública.

A velha propaganda sobre as vantagens da gestão privada e da empresarialização, deixou de pegar. Está à mostra a necessidade da existência de um grande serviço público universal, estruturado e gratuito. Tornou-se clara a sua importância e imprescindibilidade para garantir os cuidados de saúde à população numa situação de aperto. Há que garantir a sua qualidade, sustentabilidade e extensão no futuro.

Sem o SNS, o tratamento dos doentes afectados pela COVID-19 seria, para muitos deles, e para todos nós, uma ruína e um desastre, muito para além do que já hoje é. Não haveria, nesta situação, seguradoras ou accionistas simpáticos que valessem aos portugueses.

A lengalenga de «menos Estado, melhor Estado», não serve, nem para os que tanto a apregoam. Também para eles, é o Estado (ainda mais do que antes) a única hipótese de salvação do negócio.

Para além de pedidos de indemnização ou exigências de prolongamento de contratos nas PPP, já se começaram a delinear estratégias como as de deixar os hospitais públicos para os «Covid», encaminhando para os privados as listas de espera dos «não-Covid», ou tratar todos os «Covid» que apareçam desde que seja o Estado a pagar.

Tal como quanto ao apagamento das «medicinas alternativas», passado o perigo, também o reforço e crescimento do SNS estará longe de ser garantido se todos os que agora o valorizam não lutarem firmemente para que isso aconteça.

Apesar do que se tornou evidente com a pandemia (e do definido na nova Lei de Bases da Saúde), governos PS e/ou PSD com ou sem outros apoios à direita, podem não investir no SNS e aumentarem o apoio à grande saúde privada, compensando-a das perdas da crise.

Avançando nesse caminho, uma gestora do grupo Luz Saúde (ex-Espírito Santo Saúde) anunciou, na TV, que qualquer pessoa com COVID-19 que procurasse o seu hospital seria aí tratado, tendo a sua conta paga pelo Estado (o que foi posteriormente desmentido pela Ministra da Saúde). À pergunta se, caso tivesse um seguro, isso não levaria a uma total desresponsabilização da seguradora, a gestora teve uma resposta pronta: «Temos de perceber que se trata de uma emergência nacional!..».

Assim se copia, com os grandes grupos privados da Saúde, a conhecida definição de Robert Frost relativa aos bancos:

«São estabelecimentos que nos emprestam um guarda-chuva num dia de sol e nos pedem de volta quando começa a chover.»

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Felizmente, a mulher que se feriu no hospital do Grupo Trofa estava em Portugal e tinha o SNS. Se não, teria de cozer as feridas em casa, com linha de costura, como mostram as imagens de abertura do Sicko, retratando o que se passa com os mais pobres na economia mais rica do mundo.

Ao contrário dos USA, onde a recusa de tratamento por falta de dinheiro é tão banal que não merece uma notícia, o episódio do hospital do Grupo Trofa deu origem a reacções de justificação e de crítica.

E são essas reacções que vale a pena analisar, já que definem uma visão preocupante das relações societárias que se querem estabelecer.

Insensibilidade individual ou uma questão de sistema?

Devemos considerar a recusa de tratamento da vítima de um acidente, acontecido no interior de um hospital privado, um acto desumano ou perverso dos agentes envolvidos?

Desumano, seguramente. Mas qual o grau de responsabilidade moral – individual ou colectiva – em causa?

Haverá uma incontornável degradação da alma, causada pelo desenvolvimento económico, tornando os profissionais de saúde menos sensíveis ao sofrimento humano, levando-os a afastarem-se da essência da sua profissão?

«Na medicina moderna, o médico passou a ser mais uma «peça» (qualificada) de uma engrenagem complexa e cara, onde, de forma directa ou indirecta – como nas formas de «uberização» do trabalho – funciona como um assalariado (mesmo que a recibo verde), que não controla as condições em que trata, quem trata e quanto cobra»

Os estudiosos do chamado «processo histórico», poderão dizer que, sobre o tema (conceitos, formas de produção e reflexos culturais), «está tudo dito» pelos que usaram o materialismo dialéctico na análise do desenvolvimento da sociedade humana em geral e a da produção (e moral) na sociedade capitalista, em particular.

Existe, de facto, um conhecimento adquirido da relação da infraestrutura produtiva e da maneira como esta condiciona a superestrutura cultural e as reacções individuais e colectivas num determinado momento histórico.

Talvez possamos, por isso, encontrar traços desses velhos ensinamentos na diminuição da empatia pelo «outro», fruto de um individualismo exacerbado pela forma de produção «empresarial» dos cuidados de Saúde.

É esse desvio comportamental, ligado aos valores morais desse sistema, que aflora no caso da mulher abandonada sem tratamento pelos diversos protagonistas do episódio do hospital do Grupo Trofa.

Voltemos, pois, a esse facto-pretexto: como e quem, nos diversos níveis da cadeia organizativa de um grande hospital privado, assumiu a recusa de tratamento à cidadã ferida nas suas instalações, por não ter pago, à cabeça, os 600 euros exigidos?

A primeira barreira poderia ter surgido na admissão à Urgência, vendo fechar-se, logo aí, o acesso ao tratamento, por falta de seguro ou de pagamento prévio, como garantia.

Mas poder-se-á condenar o funcionário do balcão, por desumanidade ou desprezo pela mulher ferida?

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Quanto vale o negócio da Saúde?

O Parlamento debate esta quarta-feira uma nova Lei de Bases da Saúde com propostas que alargam a transferência para o sector privado. Em 2017, só a José de Mello Saúde obteve lucros de 22,8 milhões de euros.

Créditos / Pixabay

O peso dos privados, que já detêm cerca de 50% das unidades de Saúde em Portugal, não tem parado de crescer. Em 2017, só a José de Mello Saúde registou lucros consolidados de 22,8 milhões de euros. 

Dois anos antes, a facturação da empresa participada maioritariamente pela família José de Mello, juntamente com os grupos Luz Saúde, Lusíadas e Trofa Saúde situou-se em cerca de 1270 milhões de euros. 

Os bons resultados do sector privado advêm do financiamento do Estado, em especial da ADSE. Entre 2010 e 2016, o financiamento da rede convencionada aumentou 112%, de 190 para 405 milhões de euros. Mas advêm também do incentivo ao consumo de seguros privados de saúde, cuja actividade está concentrada em grandes empresas como a Fidelidade e a Ocidental Seguros/Médis.

Em 2018, a Médis anunciou estar a aproveitar as debilidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), geradas pelo sub-financiamento crónico e pelo sub-investimento, com um aumento de 7,7% no volume de prémios emitidos até Maio, e a angariação de mais 50 mil clientes desde o início do ano, totalizando acima de 700 mil.


Da transferência de serviços para o sector privado resulta necessariamente a subtracção de recursos do SNS. Nos últimos cinco anos desapareceram do sector público 1018 camas, sendo 741 de centros hospitalares.

Se alargarmos a análise ao período entre 2001 e 2017, constatamos que 3297 camas foram transferidas do serviço público para o sector privado. Os grupos José de Mello Saúde, Lusíadas, Luz Saúde e Trofa Saúde que em 2005 geriam 415 camas, passaram a gerir 1574 seis anos depois.  

Em 2016, o total de camas geridas pelos privados era de 9553, sendo 2217 dos quatro grandes grupos descritos acima. Com a inauguração do Hospital CUF-Tejo, prevista para este ano, o número total sobe para 2417. Para além destas, há 1683 camas que são geridas em regime de parceria público-privado. 

De acordo com a Conta Geral do Estado de 2017, as PPP na Saúde custaram nesse ano 446,5 milhões de euros, mais 4,4 milhões face a 2016. Actualmente, os quatro hospitais geridos em regime de PPP são os de Cascais, Braga, Vila Franca de Xira e de Loures. No último debate quinzenal, o primeiro-ministro António Costa afirmou que não seria lançado um novo concurso para a PPP do Hospital de Braga. 

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Na realidade, como empregado de um hospital privado, ele não se pode dar ao luxo de ser solidário com o seu semelhante sem pôr em risco o próprio emprego. As regras da empresa onde trabalha e as «leis do mercado» assim o obrigam.

É verdade que a frieza moral do «negócio é negócio» pode contaminar a consciência do modesto funcionário, interiorizando-o como se fosse um grande accionista.

Podemos encontrar quem use o pequeno poder do humilde lugar que ocupa, com a mesma arrogância de um mau patrão, agindo como um escravo que mimetiza as atitudes do seu senhor.

Esse paradoxo, tão típico dos dilemas da pequena burguesia, trespassa estratos e profissões, onde também se integram médicos, enfermeiros e administradores hospitalares, que vestem a camisola da «empresarialização» como se fossem os verdadeiros donos da empresa.

Certamente que, na consciência dos clínicos do hospital do Grupo Trofa, se debateu a vocação e obrigação, (com Juramento de Hipócrates e tudo…) de tratar a mulher ferida, e a impossibilidade de o fazer, por falta de poder e autonomia, devido às mesmas regras a que o funcionário do balcão está vinculado.

Também eles, provavelmente, não deixariam de assistir a ferida, se estivessem num pequeno consultório exercendo uma prática liberal cada vez mais esmagada pelas leis do «mercado» e pela evolução da medicina, que exige multidisciplinaridade e grandes investimentos.

Foi essa mudança da posse dos «meios de produção», ligada ao desenvolvimento (histórico e incontornável) da profissão, que determinou a marginalização do médico como profissional liberal – isolado, patrão de si próprio, dono dos instrumentos e das instalações, definindo as regras e a tabela remuneratória –, que ainda existe com uma expressão residual.

Na medicina moderna, o médico passou a ser mais uma «peça» (qualificada) de uma engrenagem complexa e cara, onde, de forma directa ou indirecta – como nas formas de «uberização» do trabalho – funciona como um assalariado (mesmo que a recibo verde), que não controla as condições em que trata, quem trata e quanto cobra.

É a progressiva «proletarização», num ecossistema «de empresa», que o sujeita à mesma lógica que o capital sempre usou com os verdadeiros proletários: cada vez maior exploração com maximização do lucro e diminuição dos direitos.

E foi nesse enquadramento que, segundo as notícias, a infeliz sinistrada foi atendida por médicos que, sem autonomia para lhe suturarem as feridas ou obterem os exames necessários, acabaram, mesmo que contra vontade, por deixar sem tratamento a mulher ferida.

Imaginando que foi perguntado à administração se a poderiam assistir pro bono, calcula-se que esta terá reagido como está habituada (e treinada) a reagir: também no business da Saúde não há almoços grátis para ninguém.

Seria aconselhável colocar nos gabinetes das administrações dos grandes grupos privados, o Zé Povinho de Bordalo Pinheiro com o lusitano manguito e o «Se queres fiado, toma!».

Uma «nova» hierarquia virada para a gestão

«Se queres conhecer o vilão, dá-lhe um bastão!», diz também o povo, retratando a mesquinha afirmação de poder dos que, mais próximos da base do que do topo, invejam e copiam os hábitos dos que verdadeiramente mandam.

«os médicos [...] viram o seu poder (por vezes abusivo e autoritário) diminuir com a menorização dos objectivos clínicos, enquanto se multiplicavam administradores cheios de superioridade moral, formatados com uma ilusória noção de «produção» e de «lucro», tendo no bolso o cartão do partido no poder»

Nem todos os administradores hospitalares seguem esse esdrúxulo caminho. Individualmente, são numerosas e notáveis as excepções. Conheci muitas, na minha carreira profissional. Que este juízo crítico a alguns não seja interpretado como uma visão sectária ou corporativa, porque o fenómeno é tão transversal que também não poupa, naturalmente, os médicos. Mas estes viram o seu poder (por vezes abusivo e autoritário) diminuir com a menorização dos objectivos clínicos, enquanto se multiplicavam administradores cheios de superioridade moral, formatados com uma ilusória noção de «produção» e de «lucro», tendo no bolso o cartão do partido no poder.

Nessa «ascensão social», promovida pelos ideólogos do «mercado» e do «empreendorismo», os administradores hospitalares – principal alvo da crítica de médicos e outros profissonais que, erradamente, os confundem com o verdadeiro poder – são apenas «eles e a sua circunstância», como diria Ortega y Gasset.

SNS – O ataque continua

A verdadeira História da evolução dos cuidados de saúde em Portugal no último meio século está ainda por fazer, e tem aspectos particulares que colocam o nosso país como um caso particular na Europa.

Créditos / Porto24

Em Abril de 74, os cuidados de saúde estavam invulgarmente atrasados, assentando num rede incipiente de «Caixas», pequenas Misericórdias e nos hospitais do Estado, a que se juntava o exercício individual e fragmentado de pequenos consultórios médicos, não existindo grandes instituições privadas.

A vontade colectiva de reconstruir o país após décadas de ditadura possibilitou a implementação, em poucos meses, de iniciativas como o Serviço Médico à Periferia (1976-1983), que levou a primeira mudança na saúde ao interior do país, com a empenhada participação de jovens médicos, no que constituiu o verdadeiro arranque do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Nenhuma iniciativa deste género (pouco estudada ou falada entre nós) aconteceu noutros países europeus, nomeadamente na última metade do século passado.

Anos de espantoso crescimento do SNS arrancaram Portugal da cauda da Europa (85 mortes/1000 nascimentos em 1960), guindando-o para posições cimeiras nos principais indicadores da Saúde (3 mortes/1000 nascimentos em 2015).

Num recente artigo intitulado «5 Top Countries for Hight-Quality Health Care Around the world», da prestigiada jornalista ligada à Saúde, Elana Glowats (International Business Times 15-3-2017), Portugal é referido como um dos lugares do mundo onde é mais seguro nascer e o que mais melhorou em assistência nessa área.

A partir dos anos noventa, o poder dos grandes interesses passou à ofensiva com o crónico subfinanciamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a despudorada partidarização das administrações e chefias clínicas, a transferência massiva de doentes do SNS para os cuidados privados (através dos diversos programas de gestão de listas de espera - PECLEC, SIGIC), a desestruturação das Carreiras Médicas e desnatação dos seus quadros mais diferenciados.

Os lugares, obtidos por concurso no quadro das Carreiras Médicas, foram substituídos pelos mais diversificados tipos de contratos individuais, diminuindo o vínculo e aumentando a precariedade, passando urgências e consultas a serem asseguradas por empresas pagas à hora ou «à peça».

Tudo isso representou um enorme desperdício de eficácia e de dinheiro, hipotecando a estabilidade das equipas e a prestação assistencial, pondo em causa a formação e investigação clinicas, semeando o caos organizativo.

A introdução de taxas «moderadoras» e da lógica desviante centrada na corrida ao «lucro» nos serviços públicos, sacrificando as prioridades clínicas e assistenciais, foi acompanhada pelo encerramento ou fusão de serviços e unidades hospitalares, com devolução de outras às Misericórdias, enquanto surgiam as parcerias público-privadas (PPP) e grandes unidades hospitalares ligadas aos grupos financeiros que investiram na Saúde, cujos lucros cresceram a uma média anual de dois dígitos (segundo dados da própria empresa, o lucro da José de Mello Saúde teve um crescimento de 34,5 % em 2015).

O ataque ao SNS assentou também no denegrir da confiança e prestígio dos seus serviços, com noticiários da TV invadidos com queixas fundadas e infundadas, que a Tutela foi alimentando por recusa ou omissão de qualquer esclarecimento pedagógico, favorecendo simultaneamente a «judicialização» do erro que, conforme o clássico manual da Academia Norte Americana das Ciências «To Err is human – Building a Safe Health System», de 2004, não o evita, antes o aumenta.

«A continuada ofensiva contra o SNS promovida pelos governos PS,PSD e CDS, programada para abrir espaço à implantação e desenvolvimento dos grandes grupos privados, conseguiu mudar substancialmente o panorama da saúde em Portugal.»

As declarações de um ministro da Saúde (Correia de Campos) que chegou a afirmar publicamente que se o pai estivesse doente nunca o levaria a um Serviço de Atendimento Permanente (SAP), lançando o descrédito sobre um atendimento público que se encontrava em plena actividade e sob a sua tutela, são um bom exemplo desse processo de «governo contra o SNS».

Se ainda restasse alguma dúvida sobre essa concertada estratégia privatizadora, afirmações recentes de Jorge Simões (Público 11-3-17), presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) de 2010 a 2016, ajudam ao seu esclarecimento.

«A ERS foi fundada em 2003 num contexto de tendencial privatização do Sistema Nacional de Saúde. No sector público, com a empresarialização dos hospitais e a participação do sector privado na prestação de serviços públicos, em especial através das parcerias público-privadas. No sector privado, com a abertura dos grandes hospitais ligados aos maiores grupos económicos e à banca – BPN, CGD, BES e grupo Mello – também eles ligados às PPP na Saude»…

E o ex-presidente da ERS acrescenta:

«A coligação de governo saída das eleições de 2002 preconizava um sistema de saúde misto assente na complementaridade entre público, social e privado. Este “novo” Sistema Nacional de Saúde baseava-se em redes de cuidados sem que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) se constituísse em referência preferencial.»

Os governos de Sócrates e de Passos Coelho continuaram a avançar no anticonstitucional apagamento do SNS, deixado de ser «referência preferencial» da política governamental, utilizando a expressão do ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, instituição que também serviu para esmagar os restos da pequena medicina liberal, com taxas e exigências «técnicas» que abafaram os pequenos consultórios.

De resto, sobre a «neutralidade» da regulação, há que dar algum crédito à tardia confissão do ex-ministro Correia de Campos (grande impulsionador da PPP e co-autor, com Jorge Simões, de um livro sobre a Saúde) que, regressado à oposição e mudando a agulha do discurso, afirmou que uma das desvantagens da privatização da saúde é «exigir uma regulação forte», mas que acaba por ser «torneável e susceptível de ser enganada, alimentando conluios e fraudes ainda maiores aos do sistema público» (Público 21-1-13).

A continuada ofensiva contra o SNS promovida pelos governos PS,PSD e CDS, programada para abrir espaço à implantação e desenvolvimento dos grandes grupos privados, conseguiu mudar substancialmente o panorama da saúde em Portugal.

Apesar da sua menor capacidade assistencial e técnica, a (grande) «privada» passou a ser atractiva para muitos doentes que têm alguma capacidade económica ou seguro de saúde (impostos a boa parte da população como condição de empréstimos pedidos à banca), tanto mais que as taxas moderadoras possibilitaram preços concorrenciais na primeira abordagem dos cuidados privados, que exploram uma mão-de-obra médica cada vez mais mal paga.

O SNS, subfinanciado, partidarizado e burocratizado, começou a ser reservado para os mais pobres e para doenças complexas e «caras», menos lucrativas, numa «americanização» de todo o sistema, imitando o pior dos mundos (os USA, mesmo com o enviesado Obamacare, têm um dos mais caros e ineficazes sistema de saúde dos países desenvolvidos).

Ao contrário da propaganda que diz o SNS gastador, insustentável, cheio de desperdícios, dados recentes (OCDE «Health Statistics 2016»), mostram que Portugal teve metade dos gastos per capita que a França e a Alemanha e cerca de um quarto dos USA, tendo resultados semelhantes ou claramente melhores.

PaísDespesa saúde % PIBCustos saúde "per capita"(USD-PPP)Mortalidade infantilEsperança de vida (anos)
Alemanha11,1%4.811,03,3/100080,9
França11,0%4.288,03,5/100082,3
Portugal8,9%2.642,42,9/100080,8
Reino Unido9,8%3.213,23,9/100081,1
EUA16,9%8.745,06/100078,8

Apesar destes resultados (ameaçados pelo contínuo corte no orçamento do SNS), com a progressiva privatização da saúde, apresentada como «natural» e «moderna», as mais chocantes imagens de desumanização da medicina liberal dos Estados Unidos, denunciadas no filme Sicko de Michael Moore, com doentes com cancro expulsos dos hospitais e abandonados à porta de instituições caritativas por lhes ter acabado a cobertura do seguro, passaram a ter a sua réplica em Portugal, com os hospitais privados a despejarem doentes oncológicos a meio do tratamento por falta de pagamento, deixando-os à porta do SNS (que felizmente existe para os socorrer).

Para o declínio dolosamente provocado no SNS, os governos do PS, PSD e CDS encontraram, nos profissionais da saúde, os seus bodes expiatórios.

As queixas registadas por agressões nos locais de trabalho aumentaram de 35, em 2007, para 582, em 2015, segundo a Direcção Geral de Saúde. Estes números, contudo, representam apenas a ponta do icebergue, porque a maior parte dos incidentes, mesmo de alguma gravidade, são resolvidos informalmente não sendo registados.

Também o abuso da dedicação ao trabalho dos profissionais e o preocupante estado de esgotamento em que se encontram, têm sido bem estudados:

Num estudo promovido pela Universidade Católica, em 2015, 27% dos médicos e enfermeiros que trabalhavam em cuidados paliativos estavam num acentuado estado de esgotamento (burn-out).

Num outro trabalho mais recente, publicado por Malôco e colaboradores na revista Acta Médica Portuguesa de Janeiro de 2016, abrangendo 466 médicos e 1262 enfermeiros com uma média de 36,2 anos de idade, avaliados entre 2011 e 2013, 21,6% dos profissionais encontrava-se num estado moderado de esgotamento e 47,8% num estado de burn-out elevado, segundo a graduação do Masrlash Burnout Inventory.

Uma grande investigação encomendada pela Ordem do Médicos ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 2016, abrangendo uma amostra invulgarmente alargada (mesmo considerando o panorama internacional) de 9.176 médicos, mostrou que 66,1% sofriam um alto nível de exaustão emocional, situando-se 22,5% num nível médio e 10,4% num patamar mais baixo).

Resultados impressionantes que deviam merecer a maior preocupação da Tutela, não sendo ainda interiorizados por muitos médicos e profissionais da Saúde, que consideram o estado de cansaço e desmotivação uma situação «normal», subestimando as suas potencialmente gravosas consequências.

Aproveitando a dificuldade de respostas rápidas e organizadas dos trabalhadores da saúde à bem concertada ofensiva governamental contra o SNS (por muitos confundida com «erros», «má informação» ou «incompetência»), o poder central e os seus tentáculos locais, sempre afirmando «amizade» e «admiração» pelo SNS, exploraram, até ao tutano, as pequenas rivalidades e mesquinhas ambições de carreira, promovendo a divisão e fragmentação de departamentos, serviços e equipas, levando a cabo fusões e encerramentos sem sentido, de que a «fusão» dos dois hospitais centrais de Coimbra (com o hostil esvaziamento do Hospital do Covões) é um dos mais catastróficos exemplos.

E, enquanto analistas e altos dirigentes políticos asseguravam a solidez da banca (nas vésperas dela ruir), o pior parecia provir da «crise» na sustentabilidade da Saúde, com reportagens televisivas sobre um SNS ineficaz e cheio de desperdícios, em que «tudo vai mal», aguçando a crítica a reais ou imaginárias deficiências e ao desempenho dos seus profissionais.

Não será estranho, por isso, que mais de 75% de uma amostra de 1.495 médicos questionados, num estudo da investigadora Marianela Ferreira, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, tenham admitido trocar o SNS pelo sector privado, estando 76,7% descontentes com a sua remuneração, 63,3% com a frequência com que ultrapassavam o horário de trabalho sem terem boas perspectivas de carreira, encarando, cerca de 40%, a possibilidade de antecipar a reforma por exaustão, com aproximadamente um terço a equacionar a hipótese de emigrar (Público 13-1-17).

O novo governo de Costa, com um programa eleitoral cheio de cedências à direita, só em parte travadas pelos acordos à esquerda, abriu uma pequena janela de esperança numa nova política que revertesse as tropelias feitas ao SNS pelos governos anteriores.

Contudo, apesar do anúncio de pontuais medidas positivas (nem sempre postas em prática), a continuidade parece ser o lema do ministro da Saúde Adalberto Fernandes, continuando a desestruturar e dividir o SNS, agora também através da sua «municipalização», não hesitando em avançar com outras iniciativas demagógicas e sem substância.

Em Janeiro deste ano, no meio do habitual surto de gripe do Inverno, o Ministério da Saúde anunciou à comunicação social que as «equipas das urgências e hospitais vão receber de acordo com o desempenho» (Público, 7-1-17).

Assim «o valor que o hospital e que os profissionais vão receber por cada doente que atendem vai depender do resultado do trabalho que fizerem».

A medida, aparentemente inócua, dispara em várias direcções, todas elas erradas:

Em primeiro lugar, transmite a ideia que a melhoria dos Serviços de Urgência depende de um maior empenho dos profissionais, desleixados e preguiçosos, e que essa malandrice desaparece com mais uns euros de prémio, fazendo-os trabalhar a um ritmo mais acelerado (os estudos sobre o burn-out devem ser uma aldrabice…).

Em segundo, que quanto mais doentes forem «despachados» nas urgências, melhor. Talvez seja pior para doentes que necessitem de serem bem assistidos, para os jovens profissionais que precisem de ser bem ensinados, e para os doentes que, no futuro, irão ser tratados por médicos treinados em «despachar». Mas, pelo menos, os médicos e o hospital terão mais um saco de euros como estímulo.

Em terceiro, que quanto mais doentes sem patologia justificativa procurarem o Serviço de Urgências, melhor, já que os médicos «despacham» um maior número em menos tempo.

«O novo governo de Costa, com um programa eleitoral cheio de cedências à direita, só em parte travadas pelos acordos à esquerda, abriu uma pequena janela de esperança numa nova política que revertesse as tropelias feitas ao SNS pelos governos anteriores.»

Por último, conclui-se que, sabendo o ministro que a solução do problema das Urgências é mais complexa que esta patetice – implicando uma boa coordenação com os cuidados primários e uma profunda alteração do desastre organizativo com contratos de empresas e de médicos «soltos» –, fica-se a saber que a Tutela, para além de descarregar as culpas em cima dos profissionais, apenas quer encenar uma solução de fachada sem, na realidade, pretender resolver nada.

Numa outra imposição governamental cheia de um falso moralismo, em Fevereiro do corrente ano, passou a ser proibida a realização de jornadas ou congressos científicos nas instalações do SNS, quando apoiadas ou patrocinadas por laboratórios ou firmas de dispositivos médicos ou material cirúrgico.

Para além do implícito manto de desconfiança lançado sobre os profissionais do SNS, como o Estado nunca subsidiou nenhuma dessas actividades essenciais à formação, actualização e investigação clínicas, que apenas subsiste com o apoio das farmacêuticas e firmas de produtos médicos, o resultado é que os pequenos encontros e jornadas científicas (os grandes já são feitos em hotéis e centros de congressos) ficam mais dificultados e terão também de alugar salas em hotéis.

As consequências desta demagógica imposição são difíceis de abarcar em toda a extensão.

Como apoio à hotelaria, compreende-se. Quanto à Saúde, para além das limitações à formação científica já referida, também serão anuladas ou prejudicadas acções em outras áreas, porque é com fundos conseguidos nesses encontros que se compram livros e revistas científicas para as bibliotecas dos serviços, se cobrem despesas com trabalhos de investigação e se financiam prémios, bolsas e convites a colegas estrangeiros para debates e conferências.

Talvez estas medidas sem nexo funcionem como cortina de fumo enquanto o ministro negoceia a continuação da PPP de Cascais, desaproveitando a oportunidade de fazer reverter as parcerias público-privadas para o sector público, assumindo novos compromissos com os grandes grupos financeiros que vincularão o país por muitos anos, disfarçando essa clara (e má) opção política e ideológica, sob a capa de uma falsa «neutra» baseada numa análise puramente técnica de custo/benefício.

E este é um claro sinal de que, no essencial, pouco mudou no Ministério da Saúde, apesar de uns retoques e alguma conversa em contrário.

O ataque ao SNS continua. A luta dos cidadãos pela sua defesa também.

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Opinião
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Com os novos galões nos ombros, aceitaram, acriticamente, a agressão de políticas «austeritárias», como as dos governos do «arco do poder» e da troika, gerindo-as com zelo, sem reagirem aos ataques ao SNS, quando, pelo lugar que ocupam, tinham particulares responsabilidades de o fazer.

Claro que, quando se analisa a postura individual de cada profissional, há de tudo, como na farmácia.

As entorses comportamentais com maior expressão colectiva, são, por isso, problemas «ambientais» (como também se diz na ciência médica), sofrendo mutações por influência do caldo de cultura ideológica em que estão submersas.

Provavelmente, mesmo um frio gestor do Grupo Trofa que encontrasse, na rua da sua aldeia, uma mulher a sangrar, faria tudo para lhe prestar assistência. Mas, no cargo que ocupa, a bondade desse gesto colide com os sacralizados valores de mercantilização da Saúde que a empresa lhe transmite.

É essa a lógica natural do «sistema», que se repete em situações mais gravosas (pouco publicitadas), como a interrupção do tratamento de doentes cancerosos, quando o custo atinge o tecto assegurado.

Na realidade, só não existem os fantasmas do Sicko em Portugal, porque a Constituição e o SNS tomam conta de todos, mesmo que não tenham seguro nem dinheiro.

E é esse papel que a direita quer reservar para o serviço público. Tratar dos pobres. Os outros que se amanhem com dinheiro próprio ou (principalmente) com os fundos retirados ao SNS para sustentar os grupos financeiros que investem na Saúde atirando fora a gente que não lhes convém.

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