A entrevista de Centeno à RTP durou 55 minutos. Na quase uma hora, o Governador do Banco de Portugal nunca procurou defender os interesses de Portugal, mas teve sempre a preocupação de defende a política levada a cabo pelo BCE, reconhecendo muitas vezes, de forma directa ou indirecta quais os objectivos. Numa entrevista que passou pela inflação, mas também abordou o crescimento económico português, ficou claro o qual o papel do Banco de Portugal na arquitectura do projecto que submete e retira soberania aos países, a União Europeia.
«A Inflação é um problema colectivo.»
A parte mais relevante da entrevista foram essencialmente os primeiros 15 minutos. Nesse período de tempo, Mário Centeno, o «Ronaldo da Finanças» como fora apelidado, não se rogou em defender o empobrecimento das famílias. Começou por dizer que «a inflação é um problema colectivo», mas reconheceu que «a inflação corrói a poupança» das famílias.
O Governador do Banco de Portugal cumpriu assim um papel de mero porta-voz, já que se esqueceu que uma das funções da instituição que dirige passa por aconselhar o Governo nos domínios económico e financeiro. Esse, no entanto, não pareceu ser a sua principal preocupação. Nas várias respostas dadas, Centeno defendeu a política seguida ao dizer que «o processo da subida das taxas de juro foi a resposta generalizada, pela primeira vez. Nunca antes os bancos centrais a nível global tinham actuado de forma tão sincronizada numa resposta».
A resposta evidenciou assim que a sua preocupação não foi a particularidade da economia e finanças portuguesas, mas sim o condicionamento destas ao seguir de forma cega a tendência geral e os ditames dos restantes bancos centrais, escondendo o modelo de funcionamento à base de competição que regem os Estados no sistema económico que defende.
«Sabemos que a repressão do consumo (é uma palavra forte), a repressão do consumo e da procura, em geral, deprime a economia. Muitas vezes implica recessão.»
Na longa defesa, Centeno procurou a calma e o paternalismo, mesmo dizendo elementos que chocam quem já não tem como pagar a prestação da casa ao banco ou quem quando chega à caixa do supermercado tem que pedir para deixar productos de lado porque não consegue pagar.
Desligando o tom pedagogo, fica-se a depreender que reina a lógica do «os fins justificam os meios», desde que isso salvaguarde os interesses da classe dominante e há uma clara noção disso. Mais uma vez que o diz é o próprio Mário Centeno: «Sabemos que a repressão do consumo (é uma palavra forte), a repressão do consumo e da procura, em geral, deprime a economia. Muitas vezes implica recessão. Nós estamos neste momento, e é muito importante termos a percepção disso, num momento em que há uma estagnação generalizada da economia na área do euro, na União Europeia».
Se inicialmente Centeno afirmou que a inflação é «um problema colectivo», uma analepse aos tempos pandémicos em que se usava o «estamos todos no mesmo barco» para se esconder os lucros das empresas enquanto os trabalhadores eram confrontados com o empobrecimento, o Governador acabou por reconhecer que existe uma «repressão do consumo».
Assim sendo, talvez sem esse intuito, colocou a nú todo o problema com o seguidismo face ao BCE. É que o reconhecimento de que há repressão do consumo não é compatível com a questão colectiva, já que na transferência de rendimentos do trabalho para o capital, quem perdeu foram os trabalhadores e quem ganhou foram as grandes empresas. Nem o problema é então colectivo, nem quem acumula lucros extraordinários sente a repressão dos preços.
«O futuro terá quedas das taxas de juro, mas lentamente (...) a queda não será tão rápida como foi a subida. Isso é garantido!»
No encerramento do capítulo da inflação, não trouxe novidades tão boas como Mário Centeno achava, ou diziam que poderia ser. Centeno não colocou sequer a hipótese de fim de um ciclo dramático para a vida dos trabalhadores, reformados e pensionistas. Isto torna-se claro até quando há uma questão directa sobre até onde poderão subir as taxas de juro.
O suspense do Governador do Banco de Portugal poderá indicar que o objectivo do BCE poderá passar por atingir taxas de juro semelhantes às impostas pela Reserva Federal norte-americana. A questão central, fora elementos de especulação, centra-se na continuidade da política adoptada, independentemente dos níveis que possam vir a ser alcançados, já que foi dito que «quaisquer desvios a esta trajetória, nós não nos devemos acomodar, devemos combatê-los».
O caminho já está então traçado, e mesmo procurando reiterar a espaços que as decisões são tomadas a cada reunião mediante a avaliação de vários indicadores, o futuro de continuação de empobrecimento parece já estar vaticinado: «Neste momento as euribors, que são as taxas que constituem indexantes nos nossos créditos, vão continuar a subir até Setembro, Novembro deste ano». Ou seja, as famílias ainda serão mais atacadas, algo que fará aumentar o desespero de milhões de pessoas.
Mesmo com isto em mente, as boas notícias para Mário Centeno são um murro no estômago para quem não sabe mais o que fará à vida. «O futuro terá quedas das taxas de juro, mas lentamente (...) a queda não será tão rápida como foi a subida. Isso é garantido! Ou seja, nós vamos manter-nos em níveis de taxas, durante um ano, um ano e meio, que essencialmente são mais altas do que aquilo que tínhamos antes do momento das taxas de juro. Esta é a parte positiva, apesar de tudo».
Com esta entrevista ficou a confirmação que o Banco de Portugal é uma sucursal do BCE em que Centeno é o gerente. Se o BCE é um instrumento da União Europeia para arbitrariamente, sem prestar contas aos Estados, definir uma política para a classe dominante, Centeno sabe-o e alinha alegremente nisso.
Mas ao sabê-lo poderia dizer aos trabalhadores como a Susana Canato, trabalhadora do El Corte Inglês que na manifestação da CGTP desta semana disse AbrilAbril o seguinte: «A prestação da minha casa aumentou bastante e, portanto, quando vou ao supermercado tenho que reduzir nas coisas que posso levar. Tenho que olhar muito bem para os preços e tenho que fazer uma selecção daquilo que posso levar e não levar. É inadmissível vivermos num país onde o salário não chega sequer para comer».
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