|José Goulão

... E o Senhor deu a Abraão as terras de Elon Moreh...

Em 50 anos, a colonização tornou-se avassaladora e atinge actualmente números escandalosos, enquanto continuam a chover milhares de milhões de dólares dos Estados Unidos, da Organização Sionista Mundial e também da União Europeia e seus Estados-membros.

Créditos / The National

Vou contar-vos a história de Elon Moreh. 

Quase todos os que lerem esta inusitada e aparentemente despropositada decisão em tempos ameaçadores e nos quais, para quem tem os pés assentes na terra e não abdicou dos antídotos contra a intoxicação cerebral o único voto decente de ano novo é que o planeta não seja um imenso cemitério antes da entrada de 2026, terão o direito a interrogar-se sobre o que se passa pela cabeça do narrador.

Estejam tranquilos, verão que no fim tudo fará sentido. Um sentido repugnante, assustador, o que nada tem de novo na actualidade, a comprovar que, frequentemente, os pequenos exemplos são os instrumentos mais explícitos de situações amplas e globalizantes que ilustram a decadência ética, civilizacional e humana a que chegaram as nossas cliques governantes, ansiosas por universalizar a decomposição mental acelerada que as atinge.

Elon Moreh é um colonato sionista no norte da Cisjordânia ocupada, a poucos quilómetros da histórica e importante cidade palestiniana de Nablus, que os delírios mitológicos de colonos sionistas europeus em busca da «terra prometida» nas linhas e entrelinhas de dogmas tão sagrados como ficcionais designam Siquém.

No universo bélico e objectivamente terrorista dos colonatos criados ilegalmente, e com apoio militar, através de toda a Cisjordânia palestiniana, em cujo território, de acordo com o Direito Internacional consolidado desde 1948, deverá ser demarcada a maior parte da área do Estado Palestiniano a criar, vivem cerca de 700 mil colonos sionistas, muitos deles – assunto tabu – sem quaisquer ligações ancestrais étnicas à Palestina. Essa horda dominada por grupos fanáticos vocacionalmente criminosos constitui uma imensa milícia de choque pronta para participar, sem olhar a meios, na expulsão ou mesmo extermínio das populações que desde os alvores dos tempos viveram nesses territórios. Sem excluir a possibilidade de envolvimento numa guerra civil se a facção extremista, o denominado sionismo revisionista, que detém o poder em Israel, for seriamente ameaçada.

«E o Senhor disse a Abraão…»

Elon Moreh é um desses colonatos. Nem o maior, nem o mais importante, nem o mais estratégico, mas uma espécie de pioneiro, um altar recomendado «pelo Senhor», um precedente  intocável para a ilegalidade sionista generalizada que grassou na Palestina ocupada após a guerra de 1967. Um movimento opressor e de limpeza étnica que – percebemo-lo diariamente – não olha a meios e tem como objectivo último a transformação de toda a Palestina histórica numa entidade chamada Estado de Israel, antecâmera do Grande Israel – a colonização sionista, ocidental e imperial dos territórios do Nilo ao Eufrates assentando cobardemente nas crenças e crendices associadas às normas do Pentateuco, os cinco principais livros do Antigo Testamento e da Torá hebraica.

«Elon Moreh é um colonato sionista no norte da Cisjordânia ocupada, a poucos quilómetros da histórica e importante cidade palestiniana de Nablus, que os delírios mitológicos de colonos sionistas europeus em busca da "terra prometida" nas linhas e entrelinhas de dogmas tão sagrados como ficcionais designam Siquém.»

No caso de Elon Moreh encontramos todos os condimentos falaciosos que alimentam a redacção da História planetária actual segundo as consignas únicas ocidentais, as da «ordem internacional baseada em regras», neste caso as que se cumprem recorrendo ao uso e abuso do instrumento «Israel», artifício inventado pelo colonialismo europeu/britânico e o imperialismo norte-americano para controlo geoestratégico do Médio Oriente e correspondentes riquezas naturais. 

Quando vos tentarem convencer de que a «economia verde» significa a dispensa dos combustíveis fósseis e até de minerais como o urânio – mas, à cautela, a energia nuclear já se tornou «verde» – não necessitam de disfarçar o riso, ou mesmo a gargalhada, porque circulam por aí anedotas com muito menos sentido de humor. O Médio Oriente e as suas fontes de combustíveis fósseis – como se observa agora com absoluta nitidez na Síria – geram tanta ambição e estratégias de dominação como antes, como sempre desde a revolução industrial, pelo que o único arremedo de luta em defesa do ambiente e contra as alterações climáticas é a travada pelos papalvos zelosos na separação de lixos domésticos e na utilização de materiais reciclados – nova e lucrativa indústria para alguns, sempre os mesmos – com impacto nulo na travagem do caminho para o abismo ambiental. Quanto às alternativas eólicas e fotovoltaicas, logo que se façam contas sérias e não manipuladas ao cabo de períodos susceptíveis de permitir conclusões objectivas, o fracasso da propaganda e das estratégias de mentira ficarão à vista de todos caso a censura da opinião única não consiga escondê-lo totalmente. Tudo isto para dizer que as guerras para domínio e controlo do Médio Oriente são tão indispensáveis à selvajaria capitalista e imperial como sempre foram. Sendo que o regime sionista desempenha um papel fulcral nessa tarefa e, devido a isso, pode recorrer sem freios às maiores atrocidades da história moderna, limpeza étnica e genocídio incluídos. 

«Haverá muitos mais Elon Morehs»

Não nos desviemos, porém, de Elon Moreh como exemplo pioneiro do recurso à doutrina colonizadora criminosa e fora de lei do sionismo como arma do expansionismo ocidental. Por alguma razão, Menahem Begin, terrorista de formação fascista mussoliniana que depois chegou a primeiro-ministro de Israel, declarou, no desempenho destas funções, que «desde que o conceito de lei se enraizou na raça humana não existiu acto mais legal do que a colonização judaica em todas as partes da pátria judaica; por isso, haverá muitos mais Elon Morehs». Sem razões para espanto, a profecia não falhou e continua a cumprir-se a velocidade cada vez maior e fazendo correr rios sempre mais caudalosos de sangue humano.

Corria o ano de 1979 quando meia dúzia de famílias dizendo-se de «judeus ortodoxos» oriundos de várias partes do mundo, principalmente dos Estados Unidos da América, decidiram instalar-se em terras palestinianas do norte da Cisjordânia sequestradas aos seus proprietários por «razões militares» na zona da aldeia de Bureij.

«Tudo isto para dizer que as guerras para domínio e controlo do Médio Oriente são tão indispensáveis à selvajaria capitalista e imperial como sempre foram. Sendo que o regime sionista desempenha um papel fulcral nessa tarefa (...).»

Os assaltantes sionistas correspondiam à estratégia delineada pelo grupo terrorista Gush Emunim, o «Bloco da Fé», criado em 1974 com base em duas premissas: Deus «pretende que os judeus vivam na terra de Israel»; e anexar progressivamente os territórios ocupados em 1967 – Gaza, Jerusalém Leste, Montes Golã (Síria), Península do Sinai (Egipto) e Cisjordânia – para garantir a «viabilidade» da defesa de Israel, que desde a fundação, em 1948, tinha apenas dez quilómetros de largura no sector mais estreito do território. Em 50 anos, a colonização tornou-se avassaladora e atinge actualmente números escandalosos, enquanto continuam a chover milhares de milhões de dólares dos Estados Unidos, da Organização Sionista Mundial e de ministérios do governo de Israel. E também da União Europeia e seus Estados-membros, através de acordos, negócios, intercâmbios, cooperação e comércio tanto mais intensos quanto exterminadora se torna a barbárie sionista.

Actualmente vivem 700 mil colonos nos territórios palestinianos ocupados, cerca de 10% da população israelita; existem 150 colonatos e 128 postos avançados, isto é, colonatos em vias de ser legalizados pelo governo; 40% do território da Cisjordânia é controlado pelos colonatos; 26% da Cisjordânia são «terras estatais», conceito que retorce antiquíssimos códigos otomanos e jordanos de modo a tornar possível o roubo de propriedades privadas palestinianas para colonatos, estradas que sirvam apenas estas estruturas e também parques, estruturas desportivas, piscinas e outros recintos ao serviço exclusivo dos colonos.

Os 700 mil colonos consomem seis vezes mais água, recurso precioso, do que os 3,1 milhões de palestinianos; além disso, os camponeses árabes têm limites de consumo avaliados por contadores montados nos seus poços e estão sujeitos a multas ruinosas se os ultrapassarem.

O aparelho de colonização dos territórios ocupados tornou-se fulcral no sistema de poder sionista. Os ministros das Finanças e da Segurança, os partidários da limpeza étnica Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, são colonos, tal como o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o major-general Herzi Halevi e numerosos comandantes militares. Uri Ariel, um dos fundadores do movimento Gush Emunim, só deixou em 2019 o cargo de ministro da Construção, da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, que exerceu durante longos anos.

«Os 700 mil colonos consomem seis vezes mais água, recurso precioso, do que os 3,1 milhões de palestinianos; além disso, os camponeses árabes têm limites de consumo avaliados por contadores montados nos seus poços e estão sujeitos a multas ruinosas se os ultrapassarem.»

Em meados do ano passado, o criminoso contumaz e sempiterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu aprovou legislação que reduz ao mínimo o processo burocrático para construção de novos colonatos e de mais residências no interior dos existentes; e encarregou o ministro das Finanças, o colono genocida Bezalel Smotrich, de a fazer aplicar.

Antes disso, em 2017, Netanyahu criara um gabinete governamental destinado unicamente a apressar a legalização dos postos avançados, que se multiplicavam como cogumelos, transformando-os em colonatos. Para chefiar esse departamento, o primeiro-ministro designou Pinchas Wallenstein, precisamente um dos fundadores do movimento terrorista e anexionista Gush Emunim.

«Aos teus descendentes darei estas terras…»

Elon Moreh é um destes 150 colonatos, não dos maiores mas dos mais antigos e ao qual foi atribuída uma simbologia ultranacionalista no domínio do transcendente, considerada indispensável para a «sobrevivência» de Israel. Situa-se nos montes da Samaria, recorrendo à topografia bíblica que continua a ser usada pelo sionismo no seu mundo paralelo, precisamente no local onde, de acordo com as ficções do Antigo Testamento, o patriarca Abraão se instalou pela primeira vez na «terra prometida» onde seria suposto «correr o leite e o mel». Ali assentou arraiais depois de ter atravessado o Rio Jordão na sua viagem desde Ur, na Caldeia, no sul da Mesopotâmia, de onde era originário. O Senhor tinha-lhe aparecido, como recompensa pelas suas virtudes contra um mundo idólatra e em degradação, e aconselhado a fazer a viagem, quando já não era criança, aos 75 dos seus alegados 175 anos de vida; e tornou a aparecer-lhe exactamente neste local, nas imediações de Siquém, aliás Nablus, na Cisjordânia, junto ao carvalho Moreh, ordenando-lhe que aí instalasse um altar em sua honra. Não há memória da existência de carvalhos na região, mas o catálogo de milagres da Bíblica é infindável – sendo este perfeitamente irrelevante.

O Pentateuco, no livro Génesis (12:7), garante que por essa altura o Senhor disse a Abraão: «aos teus descendentes darei esta terra». E por via das dúvidas, prevendo reivindicações eventuais num futuro longínquo, Isaac, neto do Patriarca, «comprou terras perto de Elon Moreh e Siquém» – Génesis 33:19.

Não podem existir, assim, quaisquer reservas sobre a legitimidade do colonato de Elon Moreh, diga o que disser o Direito Internacional: não apenas o Senhor o ofertou a Abraão como o neto deste fez questão de o comprar. Tudo nos conformes. Há mais de três mil anos eram os cananeus que ali estavam indevidamente desde a Idade do Bronze; agora os intrusos são os palestinianos, certamente desde tempos antes de Jesus Cristo.

O local inicial onde se instalaram as 17 famílias de colonos oriundas do exterior da Palestina, e eventualmente sem qualquer vínculo étnico à região, foi a aldeia de Bureij, mas razões pragmáticas e prosaicas então associadas à logística da ocupação militar determinaram a transferência para Elon Moreh, a quatro quilómetros de distância.

Como se disse, quando Abraão chegou ao lugar já ali viviam há muitos séculos os cananeus. A situação não levantou qualquer problema ao Patriarca. Os cananeus descendiam de Cam, o filho amaldiçoado de Noé e cujos descendentes estavam, há dez gerações, condenados a ser escravos dos descendentes do seu irmão Sem, o filho eleito de Noé e antepassado directo de Abraão.

A Bíblia explica-nos que o pecado de Cam foi o de ter permitido que o filho Canaã tivesse visto o avô Noé nu enquanto cosia uma bebedeira, uma constrangedora invasão de privacidade imperdoável para todo o sempre.

«Aqui nasceu Israel!»

Quanto em 1979 os pioneiros sustentados pelo Gush Emunim decidiram instalar-se em Elon Moreh, recebendo para isso um milhão de dólares e apoio logístico do governo sionista, a região era habitada, há muitos e muitos séculos, por comunidades palestinianas, que o sionismo trata como descendentes dos amaldiçoados cananeus; mas as forças armadas e as leis das «terras estatais» elaboradas pelo governo de Telavive, retorcendo velhos códigos otomanos e jordanos, «limparam» o terreno. Numa primeira fase, em 1979, «desanexaram», isto é, roubaram 69,3 hectares de terras aos habitantes da aldeia palestiniana de Deir el-Hatab e 63,9 hectares aos da aldeia de Azmut; e em 1995 reduziram à ínfima espécie a aldeia de Saliem para construir uma estrada que servisse Elon Moreh e o colonato vizinho de Itamar, que afinal fora edificado sobre a aldeia de Bureij, entretanto eliminada do mapa. Uma estrada exclusiva para colonos sionistas, ao perfeito estilo dos tempos do regime de apartheid na África do Sul. Aos palestinianos não é permitido sequer atravessar a pé essa via.

«Quanto em 1979 os pioneiros sustentados pelo Gush Emunim decidiram instalar-se em Elon Moreh, recebendo para isso um milhão de dólares e apoio logístico do governo sionista, a região era habitada, há muitos e muitos séculos, por comunidades palestinianas, que o sionismo trata como descendentes dos amaldiçoados cananeus (...).»

«Aqui nasceu Israel», apresenta-se ao mundo o colonato de Elon Moreh. E a propaganda turística promete: «Venha ao melhor lugar para ver nascer o sol sobre os montes da Samaria!». No jornal Jerusalem Post pode ler-se: «Desistir de Elon Moreh é como desistir do Monte do Templo», isto é, abdicar de construir o novo Templo no lugar onde existem actualmente as mesquitas de Al-Aqsa e do Rochedo, o sonho sionista religioso na Palestina, um dos vários rastilhos possíveis de uma guerra de amplitude mundial.

A Agência das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA) fez um estudo segundo o qual a autoridade territorial de Elon Moreh – ou seja, os territórios e estruturas vedados aos palestinianos – excede em oito vezes os limites municipais oficiais de 1550 hectares; e que 63% da área onde está implantado o colonato abrange terras que são propriedade privada de famílias palestinianas – a quem foram, portanto, sumariamente roubadas.

Em Elon Moreh vivem pouco mais de duas mil pessoas, cujos vínculos à Palestina histórica são mais do que duvidosos, com um nível elevadíssimo de qualidade de vida onde não faltam escolas, centros de saúde bem equipados, excelentes condições de habitação, áreas de lazer, desporto e piscinas.

Nas amputadas aldeias palestinianas de Azmut, Bureij, Saliem e Deir el-Hatab vivem cerca de 15 mil pessoas com enormes restrições de água impostas pela companhia pública sionista Mekorot, excelentemente relacionada Portugal, diga-se, que faz cortes de abastecimento arbitrários, fiscaliza os meios de abastecimento das populações e restringe a utilização invocando os pretextos mais absurdos.

«A Agência das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA) fez um estudo segundo o qual a autoridade territorial de Elon Moreh – ou seja, os territórios e estruturas vedados aos palestinianos – excede em oito vezes os limites municipais oficiais de 1550 hectares; e que 63% da área onde está implantado o colonato abrange terras que são propriedade privada de famílias palestinianas – a quem foram, portanto, sumariamente roubadas.»

Conjugando situações deste tipo com os permanentes assaltos dos terroristas de Elon Moreh contra as vinhas e as oliveiras dos habitantes das aldeias, seus únicos meios de subsistência, é fácil deduzir que existe uma permanente estratégia de desgaste, empobrecimento e fome para que as populações palestinianas desistam e sigam o caminho do exílio a que foram e são condenados milhões dos seus compatriotas, ao longo de quase 80 anos, perante uma «comunidade internacional» cega, inerte e que invoca as leis como, citando Eça, o padre Amaro «engrolava» as Avé-Marias.

Existe também, como sistema, uma permanente estratégia de terror sionista.

Visitei a aldeia de Saliem em 1988, algum tempo antes do roubo de uma vasta área do seu território para construção de uma estrada inacessível a palestinianos. Os habitantes estavam ainda traumatizados, em pânico colectivo depois de o comandante de uma guarnição militar de ocupação ter ordenado que quatro adolescentes da aldeia fossem enterrados vivos sob camadas de terra movimentadas por um bulldozer militar. O oficial ordenara previamente ao operador da máquina que passasse por cima dos jovens, mas este teve a coragem de recusar, apesar da ira do superior. Quando os jovens foram resgatados, estavam inconscientes e dois deles tiveram de ser hospitalizados.

Habitantes do colonato de Elon Moreh tinham sido convidados para presenciar os acontecimentos. Alguns aplaudiram e exclamaram: «Belo espectáculo».

«Aqui nasceu Israel», diz-se a propósito do colonato de Elon Moreh, cuja história aqui vos deixo. E tudo isto faz parte da normalidade do mundo de hoje.

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