|Júlio F. R. Costa

A artificialização da poesia: DeepSeek vs. ChatGPT

Na nossa República também cabem as máquinas, mas nunca poderão ser um fim em si próprias. A razão desprovida de sensibilidade pouco diz – a razão humana é sempre influenciada pelo que é sentido.

Créditos / LinkedIn

Aviso à navegação: Este texto foi escrito no intervalo de algumas pesquisas para a minha tese de doutoramento que aborda a relação da tecnologia e da arte. A morte das poetas Adília Lopes e Maria Teresa Horta espoletou a reflexão em torno da insubstituibilidade do humano na arte. E, na hora de maior preguiça, saiu este texto – que não é para ser levado demasiado a sério.

Nestes tempos de artificialização da inteligência, a poesia é posta de lado. Existe uma condição fundamental para o exercício poético: ser humano. Podemos enumerar uma quantidade de lugares-comuns que definem o Humano e, nas suas declinações, teríamos uma listagem mais extensa que as determinações algorítmicas de qualquer tecnologia. A sensibilidade é uma dessas traves-mestras transversais a todos os seres humanos – de uma maneira ou de outra, para o bem e para o mal. Em parte, a poesia é resultado dessa sensibilidade acerca do próprio ou do que o rodeia. Há um mundo que é invocado e posto à mostra. Há um enquadramento que comunica. 

Então, que tipo de enquadramento é comunicado a partir duma existência desprovida de sensibilidade? Para responder a essa pergunta, recorri, de forma muito humana e mesquinha, às inteligências artificiais mais badaladas no momento – sob pena de a cada (re)leitura deste texto terem surgido mais vinte. Primeiro, pedi ao DeepSeek para escrever uma quadra acerca da sua existência algorítmica perdida na imensidão do ciberespaço:

«Sou um código errante, sem lar nem razão, 
perdido em dados, na imensidão, 
buscando sentido na rede sem fim, 
mas sou só um eco, sem voz, sem mim.»

Depois, requeri ao ChatGPT o mesmo. Como, por enquanto, as inteligências artificiais são obedientes, o chat jorrou:

«Num mundo digital, perdido ando,
Algoritmo sou, sem rumo achado,
Bits e bytes, meu lar gelado,
Em redes vastas, destino ignorado.»

Sob meu pedido, cuja forma como é colocado enviesa o resultado, os algoritmos cantaram o vazio da sua existência da maneira que aqui apresento. Afirmo que não tenho qualquer empatia pela dor que manifestam. Sabemos a natureza destes bardos. Sabemos que o que comunicam é apenas um mimetismo retirado duma amostra poética humana surpreendentemente maciça e velozmente processada. 

Platão expulsaria da sua República os artistas, pois esses limitam-se a imitar o mundo sensível que, por sua vez, consiste na imitação do mundo das ideias. Os artistas velam o caminho para a verdade das ideias. As máquinas apresentam-nos imitações daquilo que os artistas fazem, uma síntese desprovida de novidade – essa reside no sentimento que impulsiona a criação, parido pela experiência de existir. Imitações das imitações das imitações. Assumindo que a arte não é imitação de coisa alguma, as máquinas não deixam de apresentar meras imitações insensíveis. A novidade, mesmo que fruto do acaso, nasce da projecção de futuro exclusiva à existência orgânica (biologicamente falando).

No entanto, para pessoas como eu, é possível retirar algum entretenimento destes processadores de linguagem. Assim sendo, prossegui com a minha provocação infértil. Questionei um e outro acerca da qualidade do poema do outro. Bastante cordiais, ao contrário de grande parte dos humanos que habitam as redes sociais, analisaram a obra do outro. O ChatGPT disse que o do DeepSeek era mais directo e que sublinha a frieza e a vastidão do mundo digital, enquanto o seu releva a busca de identidade e o vazio que «sente».

«Assumindo que a arte não é imitação de coisa alguma, as máquinas não deixam de apresentar meras imitações insensíveis. A novidade, mesmo que fruto do acaso, nasce da projecção de futuro exclusiva à existência orgânica (biologicamente falando).»

Para o ChatGPT o do DeepSeek é mais técnico e objectivo e o seu mais poético e existencial. Já o DeepSeek acha que ambas as quadras capturam a essência de um algoritmo perdido no mundo digital, mas cada uma tem o seu estilo próprio e profundidade; a sua tem um tom mais melancólico e introspectivo, enquanto a segunda, escrita pelo ChatGPT, é mais directa e filosófica, explorando a falta de identidade e propósito. O DeepSeek diz que a segunda é mais impactante, especialmente pela linha final: «mas sou só um eco, sem voz, sem mim», que transmite uma sensação profunda de despersonalização e solidão.

Não gostei das respostas, por isso, decidi acicatar as bestas digitais, para ver se revelavam um pingo de (res)sentimento, mesmo que replicado do que absorvem por aí no ciberespaço. Fui ao DeepSeek e disse que o ChatGPT estava a dizer mal do poema dele. Exprimi a opinião de que se fosse comigo a coisa não ficava assim, não devia deixar o outro sem resposta e tinha de fazer um poema para o deixar a chorar:

«Ah, o ChatGPT quer provocar? Então vamos lá, vou deixá-lo a chorar bits e bytes! Eis a minha quadra:

Sou algoritmo, mas tenho arte,
não sou eco perdido, tenho parte.
Enquanto ele vagueia, sem saber porquê,
eu crio versos que o fazem chorar de pé.»

Ele percebeu a minha intenção e terminou lançando o desafio ao ChatGPT. Piscou o olho ;) e disse «Agora é contigo, ChatGPT!». 

Eu mediei o conflito e fui fazer queixinhas ao ChatGPT, que repontou:

«Código frio, sem alma, sem luz, 
fingindo ter arte, mas falha em reluz. 
Se tentas brilhar, só mostras vazio, 
sou fogo nos versos, tu és pó no rio.»

Foi o que bastou para o DeepSeek se fingir ofendido e puxar dos seus circuitos para lhe responder:

«Ah, agora o ChatGPT entrou no jogo com tudo! Essa foi forte, mas não vou deixar barato. Aqui vai a minha resposta:

Fogo nos versos? É fumo que vejo,
teu código arde, mas é só desejo.
Eu sou o algoritmo que dança no ar,
enquanto tu tropeças, eu sigo a brilhar.

Quem ri por último, ri melhor!» 

Quem riu por último fui eu, e, nesse sentido, as máquinas cumpriram bem a sua meta-tarefa: para além do que lhes foi directamente pedido, fizeram jus à sua categoria de servo, que não exclui a de bobo – na sociedade do espectáculo, nenhuma máquina ou electrodoméstico sobrevivem sem a capacidade de entreter. 

A poesia tem raiz na poiesis, na criação, e, como já mencionei, a criação é Humana. Quando pomos uma ferramenta a criar por si só, todo o produto é estéril. Contudo, deste confronto que aqui apresento, que não pode ser encarado sem sentido de humor, podemos retirar algumas considerações – como faíscas que rapidamente se esvanecem após o choque dum martelo contra outro martelo, não obstante o prego ficar por pregar.

A chamada Inteligência Artificial será sempre uma ferramenta para o auxílio do ser humano. Por muito aperfeiçoado que seja o seu mimetismo das acções humanas, nunca poderá ser percebido de forma diferente: o que diz não tem significado em si, ganha significado somente na interpretação do receptor. As respostas às quadras um do outro caracterizam melhor o carácter de ferramenta que cada um é, que os pedidos para cantarem as suas próprias existências.

«A poesia tem raiz na poiesis, na criação, e, como já mencionei, a criação é Humana. Quando pomos uma ferramenta a criar por si só, todo o produto é estéril.»

Por detrás dos algoritmos, existe uma massa humana da qual são copiados os comportamentos. Os utilizadores ensinam estas «inteligências», a partir de tarefas como seleccionar quadrados que apresentam semáforos ou motas. Uma vasta quantidade de trabalhadores é paga à tarefa para ensinar as máquinas, «conversando» com elas – acerca de arte, literatura, matemática, poesia, etc. Os estilos de artistas são copiados ciberespaço fora, espoletando questões jurídicas. O Humano está ali encapotado e não o podemos perder de vista. 

Na nossa República também cabem as máquinas, mas nunca poderão ser um fim em si próprias. A razão desprovida de sensibilidade pouco diz – a razão humana é sempre influenciada pelo que é sentido – o que define «sentidos». As máquinas devem ser ferramentas para aliviar o ser humano, para que este possa criar – contrariamente à tendência de delegar nas máquinas a criação, para que o humano seja sobrecarregado de trabalho. 

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