Esta descrença na continuidade do cinema, tão precocemente assinalada, tem sido recorrente ao longo da história desta forma de expressão, justificada, primordialmente, pelas suas várias etapas de reconversão tecnológica, observadas como originadoras de mudanças determinantes na sua organização, administração e estética e, como tal, suscetíveis de causar ruturas com os modelos antecedentes.
A transição do cinema mudo para o sonoro foi identificada como uma destas primeiras grandes reestruturações. Uma outra grande e duradoura crise do cinema parece ter sido a suscitada pela massificação da televisão, logo nos anos 1950, e pelo posterior desenvolvimento e expansão do vídeo analógico, nos anos 1980.
O surgimento das imagens eletrónicas e a sua introdução no campo do cinema, originou um forte questionamento acerca da sua continuidade. Pela primeira vez na história do cinema, a transformação foi motivada não por alterações provenientes do seu interior, mas por elementos exteriores, que pareceram declarar a sua obsolescência.
Foi partilhando desta perspetiva que, no Festival de Cannes de 1982, Wim Wenders lançou o documentário com o significativo título Quarto 666. Neste, Wenders pediu a cineastas de diferentes nacionalidades e de distintas modalidades de produção e sensibilidades estéticas para refletirem sobre o futuro do cinema: estaria este em risco de extinção? – era a pergunta que lhes dirigia.
As entrevistas aconteceram num cenário minimalista, construído num quarto de hotel: uma cadeira para o entrevistado, no primeiro plano, e um televisor ligado, em pano de fundo, que pretendia simbolizar a omnipresença dos media electrónicos que, naquele período, aparentavam ameaçar o cinema. O lugar do entrevistador foi ocupado por uma câmara de 16 mm e por um gravador de som; as questões orientadoras estavam escritas num papel.
«O surgimento das imagens eletrónicas e a sua introdução no campo do cinema, originou um forte questionamento acerca da sua continuidade.»
A maioria dos realizadores entrevistados no filme considerou que o cinema, assim como a sua estética, linguagem e modos de organização específicos, estavam em vias de se extinguir em virtude da emergência do vídeo analógico e das possibilidades de registo, edição e receção que este inaugurava. Esta era, aliás, a intuição de Wenders, expressa no prólogo do mesmo filme.
Perante as transformações resultantes da imbricação do cinema com a cultura digital, muitos retomam a mesma preocupação, declarando a iminência do desaparecimento do cinema. Os argumentos para este posicionamento são baseados na supressão dos elementos que, até ao momento da transição do analógico para o digital, acompanharam frequentemente o cinema, pelo menos no quadro da sua expressão predominante.
A exclusão da película de todas as etapas de elaboração e circulação cinematográfica é um dos fatores mais referidos. O suporte fotográfico fez parte do cinema desde a sua génese e, no decurso do seu primeiro século de existência, deu corpo, de modo quase exclusivo, às suas manifestações. Por essa razão, entre cinema e película estabeleceu-se uma ligação de estreita proximidade, de interdependência.
Esta noção está expressa no próprio facto de o objeto resultante da expressão cinematográfica, o filme, ter assumido essa designação a partir da denominação do seu suporte. A partir daquele material definiram-se várias das características plásticas e narrativas dos filmes: o grão, a luz e a cor, a profundidade e a definição, a dimensão e a forma do enquadramento, a duração do plano.
O mesmo determinou as especificidades das maquinarias cinematográficas – as câmaras, os equipamentos de montagem e os projetores – e várias das práticas associadas à gestão e administração do cinema, desde a fase do registo do filme até à da sua conservação.
Hoje, com a substituição da película fotoquímica pelo suporte digital, quebrou-se este vínculo entre uma forma de expressão particular e o material que permitia e determinava a sua concretização. Para alguns autores, por esta razão, a própria identidade do cinema está posta em causa. As concretizações cinematográficas decorrentes de outros suportes, argumentam, são possuidores uma natureza distinta – a este propósito, afirmou recentemente o cineasta húngaro Bela Tarr: «A tecnologia digital não é filme. (...) Chamem-lhe outra coisa, digital pictures ou assim.»
Tacita Dean, artista plástica que trabalha essencialmente com película, tem defendido a mesma conceção no seu trabalho recente. Após ter sido informada pelo laboratório onde costumava tratar os seus filmes, propriedade da Deluxe, que o mesmo iria deixar de trabalhar com película de 16 mm, escreveu um apaixonado artigo sobre o tema para o jornal The Guardian, intitulado «Salvem o celuloide, pelo bem da arte».
Neste, a autora tentava explicar que a vantagem da película sobre o digital não era apenas de ordem tecnológica, mas algo mais profundo, poético. O propósito do seu trabalho subsequente tem sido, nas suas palavras, mostrar a película como «um meio independente e insubstituível» e evidenciar «a perda incalculável que será para o nosso mundo cultural e social se [a] deixarmos (...) desaparecer».
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