A especialidade do mês é remansar pelas praias e campos sob um céu azul, por vezes com tímidas nuvens, um sol que não se faz rogado. Na política é a Silly Season, dizem uns espertos que inventaram a expressão como se os protagonistas políticos e os mais variegados comentadores só plantassem parvoeiras para fazer prova de vida durante a silly season e não o fizessem em qualquer dia do ano. Esqueceram-se ou não conhecem a canção de Georges Brassens que fustigava as tonteiras universais, com a agudeza crítica e a fina ironia que eram seu timbre. Isto de ser parvo e dizer parvoidades não tem a ver nem com idades nem com estações do ano. Antes, depois e em tempo de férias é vê-los e ouvi-los a cavalgar os dias sem que nenhum vício lógico os trave. Fazem-no com grande despudor. Os sucessos mais falados nos últimos tempos, a tragédia dos incêndios de Pedrógão, o roubo de material de guerra em Tancos, foram pasto para um aproveitamento político em que valeu e vale tudo. A procissão já saiu do adro, mas continua a desfilar com novos andores, haverá sempre mais um para lhe dar continuidade. O mais inquietante é o cinismo em que se embrulham os argumentários, uma marca do nosso tempo aqui e em todo o mundo. Faz-se aproveitamento político de tudo e de nada que se oculta com os biombos dos superiores interesses nacionais, dos direitos humanos e o mais que estiver à mão, com o suplemento de afirmarem que o fazem expurgados de qualquer aproveitamento político. É o estado de sítio do universo pós-moderno que se atola em acções que Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica, classifica de cínicas por sustentadas em acções descaradas e desonestas, o que as distingue do cinismo antigo de Diógenes e seus seguidores, nos quais a crítica das convenções era inseparável de uma prática coerente de recusa de compromissos: «o cinismo na antiguidade era uma conduta de liberdade e de autonomia individual; na pós-modernidade é um conformismo cúmplice das piores baixezas. O sentir pós-moderno parece ter ficado paralisado pela discrepância entre um conhecimento lúcido e penetrante e uma imoralidade deliberada, sem freio e sem pudor». Um mundo onde, mesmo que as baixezas ou imoralidades, independentemente de serem de baixo perfil ou de grande intensidade, fazem a lucidez ficar sempre presa do cinismo.
Inquietante é o eco que obtém na opinião pública, com a cumplicidade de uma comunicação social estipendiada, mesmo a que se reclama de serviço público. O êxito de toda essa gente é bem radiografado numa canção em que o protagonista é aquele, mas poderia ser qualquer outro dessa extensa galeria à janela de qualquer parte do mundo. Um espelho para essa gente se ver.
Há mais mundo para além desse da chamada silly season. Aqui ficam, além das duas canções que são pretexto para chamar a atenção para os muitos palcos plantados por todo o país pelas festas tradicionais do querido mês de Agosto. No meio de muita tralha para animar a malta há boa música para ouvir. Olhem com olhos de ver e ouvidos afinados para encontrarem o que vale mesmo a pena.
O livro do Sloterdijk talvez seja pouco apropriado para ler com o calor que se faz sentir mas é sempre a ler. Por livros, em mês de abrandamento editorial, uma editora, a Abysmo, coloca nos escaparates das livrarias o romance de Fernanda Botelho, Esta Noite Sonhei com Brueghel. É o primeiro livro de uma anunciada reedição da obra completa de Fernanda Botelho, uma das grandes escritoras portuguesas, que tem andado esquecida, no que está muitíssimo bem acompanhada, a exemplo de uma Maria Judite Carvalho ou de um José Rodrigues Miguéis, que, com muitos outros, andam a viver num limbo a que devem ser resgatados. É um romance autobiográfico. Luiza, a protagonista, é Fernanda, em que Brueghel, como escreve Paula Morão no excelente prefácio, «representa, em suma, nesse encontro com Luiza consigo mesma através da escrita autobiográfica, um caminho tortuoso para ir ao encontro da História que, em episódios verdadeiros ou ficcionados, o pintor fixou, mas propicia também – e sobretudo – a reconciliação das memórias paterna e materna que instituem a protagonista (…) nos níveis entrecruzados, na brilhante ironia a que se contrapõe a desapiedada imagem da mulher em busca de si. Fernanda Botelho dá-nos em Esta Noite Sonhei com Brueghel um subtil retrato português. Luiza é Fernanda – a sua e nossa desassombrada efígie». Aproveite estas semanas de Agosto para o ler; não vai desbaratar o seu tempo estival, vai enriquecê-lo.
Agosto é o mês escolhido pelo Teatro Estúdio Fontenova, para organizar a XIX Festa do Teatro, Festival Internacional de Teatro de Setúbal, que tem apoio da Câmara Municipal de Setúbal.
Com orçamento curto, sem apoios estatais, o Ministério e a Secretaria de Estado da Cultura parecem de costas viradas para a descentralização das artes, o TEF consegue elaborar um bom programa em que o teatro é centro e placa giratória de outras cenas: espectáculos cénicos de sala e de rua, música, cinema, debates e exposições.
A Festa do Teatro tem duas secções. A secção oficial, como é normal nos festivais, com espectáculos seleccionados pela organização, onde pode assistir, entre outros espectáculos, às Três Irmãs, baseado na obra de Tchekov, um monólogo em três tempos interpretado por Cátia Terrinca, que foi premiada pela sua interpretação pela revista Time Out, escrito por Luisa Monteiro, Valério Romão e Rui Pina Coelho, dia 22 de agosto, pelas 22h00, no auditório da Escola Secundária Sebastião da Gama; à Farsa y Licencia de la Reina Castiza, de Valle Inclan, pelo Mundanal Ruído Teatro, um jogo vertiginoso em que duas actrizes, Lucrecia Guilarte e Fany de Pablos, dão voz e vida a si próprias e a várias marionetas, no fio da navalha de um texto onde se cruza poesia, ironia e grotesco numa critica à decadência que parece sempre acompanhar o poder. A encenação é de Inês Adán Mozo, em cena no Ginásio da Escola Secundária Sebastião da Gama, dia 29 às 22h.
No Fórum Luísa Todi a Festa do Teatro abre dia 18, às 22h, com o Teatro Estúdio Fontenova, que leva à cena A Voz os Pássaros, de Farid Ud-Din Attar. A encenação é de José Maria Dias, a interpretação de Cátia Terrinca e de Eduardo Dias; encerra dia 27, às 22h, com o clássico Hamlet, de Shakespeare, pelo Teatro Clásico de Sevilla, com uma surpreendente encenação e representação, multipremiada em vários países. Entre o primeiro e o último espectáculo e os já referidos, pode ver criações da Compagnia Naturalis Labor (Itália), Circo no Ato (Brasil) e as portuguesas de TrêsMaisUm Teatro, Companhia de Teatro Contemporâneo e L.A.M.A.
Tem a Festa do Teatro uma secção, o Mais Festa, em que várias companhias de teatro concorrem a um prémio, a participação no ano seguinte na secção oficial. Em 2016, o prémio foi atribuído ao Mundanal Ruído Teatro. Todos os anos são cada vez mais as companhias que submetem o seu trabalho a uma primeira triagem pela organização e a um júri que, como todos os júris de qualquer disciplina artística, procura fazer justiça correndo sempre o risco das injustiças. Entre portugueses, espanhóis e brasileiros, são nove os concorrentes. Inesperadas surpresas são expectáveis.
Tire os pés das férias, se estiver em férias, consulte o programa com uma certeza: encontrará sempre mais que um motivo para ir a Setúbal, assistir a um ou mais dos excelentes espectáculos de teatro que a XIX Festa do Teatro, Festival Internacional de Teatro de Setúbal apresenta.
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