Um conjunto de discursos contemporâneos, elaborados no âmbito académico, institucional e no campo dos media, considera que novas formas de sociabilidade e de trabalho terão emergido a partir do advento da denominada web 2.0. De acordo com estes, a melhoria e alargamento das condições de acesso à internet, o desenvolvimento de plataformas online que permitem a conceção e partilha de conteúdos gerados pelo utilizador e as variadas e cada vez mais simplificadas e menos dispendiosas aplicações e aparelhos de registo e edição audiovisual, criaram a possibilidade de participação de um número muito vasto de indivíduos – um número inigualado em qualquer outro momento anterior – na definição e construção dos objetos que compõem o seu património cultural e artístico.
Se no decurso dos anos 1990, e ainda durante alguns anos da década seguinte, a questão se colocou no acesso à rede, tornando célebre o debate acerca da ‘divisão digital’ e das medidas a ser tomadas para diminuir o fosso entre os infoincluídos e os infoexcluídos, no momento presente a reflexão parece situar-se na tentativa de equacionamento da distância entre aqueles que participam efetivamente na rede como criadores de conteúdos ou, pelo menos, como difusores e editores dos mesmos, e aqueles que mantêm com a informação veiculada na rede a mesma relação que tinham com os dados fornecidos pelos media tradicionais, a de meros recetores1.
Como esta participação é efetuada em rede, mediante interações, partilhas e trocas, o trabalho que daí emerge é observado como resultante da cooperação entre os vários agentes e da conjugação dos seus contributos. Esta noção encerra a ideia de uma renovação do cenário económico e social da produção e circulação cultural e artística que tem vindo a ser entendida como resultando na constituição de um novo tipo de organização. Esta, na perspetiva de alguns, tem o poder de reformar o modelo capitalista tradicional, substituindo-o pelo ‘capitalismo em rede’ ou ‘capitalismo colaborativo’, ou propondo-lhe alternativas2.
As perspetivas que têm vindo a ser descritas assumem que a dominação das indústrias culturais e dos media na definição e criação de conteúdos e dos seus fluxos, vigente durante o século XX, é agora questionada pela ação dos indivíduos em rede que estão capacitados não só para lhe opor possibilidades mais consentâneas com os seus reais interesses e necessidades, mas também para atuar sobre aquelas, conduzindo-as, assim, à redefinição da sua oferta e da relação estabelecida com os destinatários.
Importa, neste contexto, lembrar que a ideia do diálogo do recetor com os conteúdos culturais e dos media não é recente. Esta esteve presente de forma ampla desde os anos 1960, primeiro na teoria da literatura, onde pode ser destacado o vastamente citado trabalho de Umberto Eco, A Obra Aberta (1962) e, posteriormente, a partir de 1970, na investigação desenvolvida no âmbito dos ‘Cultural Studies’ (Hall 1973; Brundson, e Morley 1978; Morley 1999 [1986]; Ang 1993 [1985]; Fiske 1987; entre outros) e da corrente da sociologia funcionalista designada por ‘Usos e Gratificações’ (Katz, e Liebes 1990; entre outros).
Estes estudos, em rutura com os que entendiam o recetor como sujeito à influência e condicionamento exercidos pelas mensagens veiculadas pelos media de massa, desenvolvidos fundamentalmente na continuidade da linha de pensamento associada à Escola de Frankfurt e, em particular, ao trabalho de Theodor Adorno, atribuíram àquele a capacidade de desconstruir e negociar os significados contidos nos textos dos media. Esta tendência das ciências da comunicação, surgida num período de grande desenvolvimento tecnológico aplicado à área da comunicação de massas, antecipava a retórica participativa e colaborativa agora instaurada.
Hoje, porém, aquilo que no quadro dos referidos discursos é entendido como participação, acentua ainda mais o poder atribuído ao recetor. A capacidade de desconstrução, que antes lhe havia sido concedida, é complementada por ação de construção.
Não se trata já, pois, de conceber os recetores como intérpretes do conteúdo dos objetos culturais e dos media, mas antes como substitutos das clássicas instâncias de produção e difusão e libertos das suas normas, determinações ou critérios de seleção.
Defende-se assim a ideia de integração do indivíduo em rede no processo de definição e elaboração dos conteúdos, pelo que se considera estar em curso a transição de uma cultura de consumo, determinada pelo fluxo unidirecional de conteúdos entre a indústria e os seus recetores, para uma ‘cultura participativa’ em que «os fãs [dos produtos da indústria cultural] e outros consumidores são convidados a participar ativamente na criação e circulação de novos conteúdos» (Jenkins 2006, 331).
(continua)
- 1. Em 2006, Jakob Nielsen ilustrou o princípio da ‘desigualdade participativa’ através da regra 90:9:1. Esta afirmava que, de entre as pessoas ligadas em rede, 90% assumiam um comportamento passivo em relação aos conteúdos, 9% agiam como editores e apenas 1% eram criadores. Desde aí, várias pesquisas têm procurado contrariar esta perceção, tentando mostrar que o número de criadores em rede é cada vez mais elevado. Por exemplo, em 2012, um estudo desenvolvido pela BBC On line concluía que a participação digital no Reino Unido, definida como «a criação e contribuição digital para ser vista por outros», era realizada por 77% das pessoas com acesso à rede (Goodier 2012).
- 2. Numa perspetiva alter-capitalista, o coletivo Ars Industrialis, liderado pelo filósofo Bernard Stiegler, propõe a recente constituição de uma ‘economia da contribuição’ que, acredita, substitui o anterior modelo industrial (2010). Numa visão similar, Yochai Benkler, autor de A Riqueza das Redes: De que modo a produção social transforma os mercados e a liberdade (2006), sugere a constituição de uma ‘economia de contribuição em rede’. Por seu turno, alguns autodesignados ‘comunistas digitais’, como Dmytri Kleiner, autor de The Telekommunit Manifesto (2010), creem que as condições contemporâneas permitirão a concretização de modalidades culturais e de comunicação alternativas às geradas pela indústria e pelas dinâmicas do mercado, criando o que designam por um ‘comunismo peer-to-peer’. O seu projeto pretende restaurar o modelo de participação e partilha livre e universal que considera ter sido criado na génese dos sistemas peer-to-peer e a limitação da sua apropriação pelo sistema industrial capitalista.
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