De tempos a tempos, os governos aparecem na cena pública a regular o trabalho, isto é, a definir regras que interferem na forma como os trabalhadores dispõem da sua capacidade de trabalho perante as entidades empregadoras.
Na recente proposta de acordo laboral, unilateral, entre o governo, os patrões e a UGT, foram excluídos os trabalhadores – pelo menos, a entidade mais representativa dos mesmos. Na perspectiva da saúde laboral, trata-se de um grave atropelo ao bem-estar de quem trabalha e expressa, no mínimo, um doloso compromisso que insiste em ignorar os efeitos negativos sobre a saúde dos produtores por regimes de trabalho e formas de contrato que são determinadas exclusivamente pelos interesses dos empregadores.
Ganhar a vida perdendo-a
Por definição um trabalhador que contrata a venda da sua capacidade de trabalho com um dado empregador não inclui, nesta troca, a perda ou delapidação da saúde. Defende-se mesmo que os patrões são responsáveis por promover a saúde no local de trabalho.
A fixação da duração de trabalho constituiu uma reivindicação histórica dos representantes desde o desenvolvimento das revoluções industriais do século XIX, que foi apoiada por observações e estudos médicos que comprovavam a doença e a morte prematura dos operários e particularmente das crianças que iniciavam precocemente a actividade. A luta pelas oito horas de trabalho e pela protecção das mulheres e crianças levou às primeiras normas e leis na Inglaterra e na França e culminou, em 1919, com a Convenção da OIT que recomendava a duração máxima de 8 horas por dia e 48 por semana. Mais tarde, em 1935, ficou convencionado o princípio da semana das 40 horas.
«um trabalhador que contrata a venda da sua capacidade de trabalho com um dado empregador não inclui, nesta troca, a perda ou delapidação da saúde»
Esta redução do tempo de trabalho teve outros complementos como o tempo de férias e feriados, matéria que estabilizou durante o século XX.
A par da regulação tempo de trabalho começam a ser claramente identificados outros efeitos na saúde relacionados com as condições e ambiente de trabalho e nascem, a seguir à Primeira Guerra Mundial, as primeiras listas de doenças profissionais, isto é, doenças dos trabalhadores, contraídas nos locais de trabalho e devidas as factores de risco causais existentes nos mesmos. O princípio da reparação, que já existia para as lesões por acidente de trabalho, é alargado. A partir da Segunda Guerra Mundial o número de doenças profissionais reconhecidas alarga-se e são instituídos, com carácter obrigatório, os serviços de medicina do trabalho ou de saúde ocupacional.
A partir da década de oitenta do século passado são bem conhecidas as já extensas listas de doenças profissionais, incluindo a lista portuguesa, onde se reconhece o vasto martírio dos trabalhadores que, no nosso país, para ganhar a vida a vão perdendo.
Os factores de risco valorizados são de natureza química, física e biológica, ligados à estrutura industrial, paradigma da época. No entanto o leque das doenças profissionais é complementado por um cortejo enorme de doenças relacionadas com o trabalho que pouca ou nenhuma atenção merecem aos governos e patrões. São doenças em que o factor trabalho não é o único factor causal. As condições de trabalho podem agravar, ou desencadear, ou de alguma forma contribuir para o aparecimento da doença.
Assim, grande parte das doenças comuns pode ter como componente causal parcial as más condições de trabalho.
Um conjunto de doenças emergentes, como as lesões músculo-esqueléticas relacionadas com a actividade e, mais recentemente, as doenças psicossociais relacionadas com o trabalho, mostram um leque de efeitos resultantes de factores de risco psicossociais onde se inclui toda a desregulação do tempo de trabalho, a carga, o conteúdo e o ritmo do mesmo, o mau ambiente organizacional, sem autonomia e sem carreira, e as novas formas de contratação variáveis e imprevisíveis de insegurança laboral, com intensificação da alienação das actividades desenvolvidas.
Este caldo de incerteza, de desregulação e de exigência tem aumentado de forma continuada, com graves efeitos na saúde individual e de grupo, sendo hoje um dos maiores flagelos dos trabalhadores.
O «acordo laboral» e a saúde dos trabalhadores
Assim, o governo, neste tipo de «acordo» de regulação do trabalho, não leva em conta os riscos acrescidos em matéria de perda da saúde e do bem-estar social, com reflexos em todos os campos da qualidade de vida dos trabalhadores e da sociedade (a pobreza e os seus impactos, a redução da natalidade e o aumento dos gastos em saúde, entre outros).
Um dos principais riscos ou doenças resultantes da não garantia constitucional do direito ao trabalho em condições de saúde e segurança é a generalidade de mal-estares como o stresse que, sendo de longa duração ou crónico, pode levar a problemas físicos e mentais e, em casos extremos, a problemas psicológicos e à perda da saúde mental.
Entre os riscos físicos e fisiológicos, o stresse ocupacional prolongado está associado à incidência (acelerando e agravando) de doenças cardíacas, inibição do sistema imunitário, lesões músculo-esqueléticas, transtornos digestivos, alguns tipos de cancro e problemas do sistema reprodutor. São os trabalhadores do trabalho desregulado que manifestam maior tendência para alterações comportamentais, algumas de risco, como o consumo abusivo de álcool e outras substâncias.
«o stresse ocupacional prolongado está associado à incidência (acelerando e agravando) de doenças cardíacas, inibição do sistema imunitário, lesões músculo-esqueléticas, transtornos digestivos, alguns tipos de cancro e problemas do sistema reprodutor»
O stresse ocupacional está associado a alterações emocionais frequentes, com problemas de sono, angústia e depressão, e muitas vezes esgotamento ou burnout. Não é raro os trabalhadores em risco acabarem por sentir não se adaptar ao trabalho, com ausências por doença frequentes ou, inversamente, com a presença desmotivada e sem compromisso com o trabalho.
Em todo este quadro de más condições gerais de organização do trabalho e dos factores de risco psicossociais, a falta de garantia de trabalho, os horários imprevisíveis, os contratos desfavoráveis aos trabalhadores são da responsabilidade directa dos patrões e do governo, que assumem o encargo do enorme fardo da doença dos trabalhadores e da sociedade.
Como a CGTP defende, para travar esta degradação laboral é preciso romper com o modelo de baixos salários e trabalho precário, a revogação de normas gravosas da legislação laboral e a valorização do trabalho e dos trabalhadores e, acrescentamos nós, garantir a protecção e a promoção da saúde dos produtores no local de trabalho, factor primordial de sustentabilidade e desenvolvimento da nossa sociedade.
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