A fadista Celeste Rodrigues morreu hoje, aos 95 anos, confirmou à Lusa o neto Diogo Varela Silva.
«É com um enorme peso no coração, que vos dou a notícia da partida da minha Celestinha, da nossa Celeste. Hoje deixou uma vida plena do que quis e sonhou, amou muito e foi amada, mas, acima de tudo, foi a pedra basilar da nossa família, da minha mãe, da minha tia, dos meus irmãos, sobrinhos e filhos, somos todos orgulhosamente fruto do ser humano extraordinário que ela foi», escreveu Diogo Varela Silva na rede social Facebook, remetendo para mais tarde informações adicionais.
Durante 73 anos cultivou o fado castiço e, apesar de conceituada no universo musical português e de ter sido uma das primeiras fadistas a internacionalizar-se, preferia as casas de fado dos bairros típicos de Lisboa aos grandes palcos. Senhora de uma interpretação autêntica e singular, tornou-se uma referência para as mais jovens gerações de intérpretes, que têm vindo a renovar o fado sem perder a sua nuclear tipicidade.
O velório é esta quinta-feira no Pátio da Galé, ao Terreiro do Paço, em Lisboa, a partir das 19h. O funeral seguirá na sexta-feira, às 14h30, para o cemitério dos Prazeres.
Uma vida plena
Maria Celeste Rebordão Rodrigues nasceu no Fundão a 14 de Março de 1923. Veio para Lisboa aos cinco anos, com os seus pais, que se estabeleceram no bairro de Alcântara. Frequentou a escola primária.
Aos cinco anos acompanhou os seus pais, quando estes se estabeleceram no Bairro de Alcântara, em Lisboa, onde frequentou a escola primária. Em jovem empregou-se numa fábrica de bolos e, mais tarde, com a irmã Amália, trabalhou num ponto de venda de artigos regionais na Rocha Conde de Óbidos1.
Casou em 1955 com o actor Alberto Varela Silva (1929-1995), com quem teve duas filhas, Maria Rita e Maria José. Tem netos, entre eles Diogo Varela Silva (n. 1971), realizador e produtor de cinema cujo trabalho também colhe inspiração no fado, nos fadistas e nos bairros típicos lisboetas.
Irmã da fadista Amália Rodrigues (1920-1999), conhecida como «a rainha do fado», Celeste Rodrigues não construiu a sua carreira à sombra de Amália, antes procurando uma expressão própria e autónoma. No entanto, as duas mantiveram entre si uma relação próxima e Celeste nunca deixou de apoiar e acompanhar, «mesmo no estrangeiro», a sua irmã.
«Muito mais do que a irmã de Amália»2
Iniciou a carreira em 1945. Tinha 22 anos quando foi ouvida cantar «entre amigos, na Adega Mesquita» pelo empresário José Miguel, proprietário de várias casas típicas, entre as quais o Café Casablanca, no Parque Mayer (no local onde ficou depois o teatro ABC, «demolido pela Câmara Municipal de Lisboa em 2015 para dar lugar a mais um parque de estacionamento da EMEL»). Este insiste na sua profissionalização como fadista e é no Café Casablanca que fará a sua estreia.
No mesmo ano acompanha a irmã Amália ao Brasil, integrada numa companhia teatral que apresenta a opereta Rosa Cantadeira e a revista Bossa Nova. O sucesso da companhia prolonga a digressão por um ano e Celeste Rodrigues é convidada a integrar peças de teatro que sempre recusará, preferindo, ao contrário de Amália, dedicar-se exclusivamente ao fado.
Na década de 1950 voltaria ao Brasil para actuar na rádio, na televisão e no restaurante Fado, que Tony de Matos abrira em Copacabana, «com considerável êxito». Nessa altura já era uma figura destacada no meio do Fado, actuando, além do Brasil, em Espanha, no Congo Belga, na África Inglesa, em Angola e em Moçambique.
Celeste Rodrigues foi uma das primeiras fadistas a internacionalizar-se, cantando, ao longo da sua carreira, em variadíssimos países e em grandes palcos mundiais. Destaque-se, entre tantos, o Concertgebouw, em Amesterdão; o Cité de la Music, em Paris; o Carnegie Hall e o Town Hall em Nova York – este em Abril de 2018, menos de um mês após ter cumprido o seu 95.º aniversário.
Em Portugal, desde 1946 que se apresenta em diversos retiros e casas de fado da capital, como o Café Latino, o Marialvas, a Urca (na Feira Popular), o Café Luso ou a Adega Mesquita (onde se mantém por quatro anos). Posteriormente apresenta-se também no Tipóia, na Adega Machado e na Márcia Condessa.
Em 1956 foi uma das primeiras artistas «a actuar no período experimental da RTP, no teatro da Feira Popular»3, e «a primeira a enfrentar as câmaras, quando os estúdios do Lumiar passaram da fase de experiências para as emissões regulares»4.
Em 1957, com o marido, torna-se proprietária do restaurante típico A Viela, ao qual passa a dedicar-se. Local de tertúlias, espaço privilegiado para a convivência de poetas, intelectuais e cantores, quatro anos depois renuncia ao mesmo, «confessando não sentir “queda para o negócio”»5. O seu ofício era cantar.
Integra então o elenco da Parreirinha de Alfama, da fadista Argentina Santos e aí permanece por mais de dez anos. No início da década de 1970 João Ferreira-Rosa convida-a para o elenco da Taverna do Embuçado, onde vai actuar ao longo de 25 anos. Posteriormente actuará, ainda, nas casas Bacalhau de Molho e Casa de Linhares.
O avançar da idade não lhe reduz a actividade – e traz-lhe o reconhecimento de novas gerações.
Uma carreira renovada e a consagração definitiva
Tem 82 anos em 2005, quando o encenador Ricardo Pais, então diretor do Teatro Nacional de São João, no Porto, a convida a participar espectáculo Cabelo Branco é Saudade, ao lado de Argentina Santos, Alcindo de Carvalho (1932-2010) e Ricardo Ribeiro, e com o qual fez uma digressão europeia.
Em 2007 é publicado o álbum Fado Celeste, no qual gravou fados tradicionais e inéditos com letras de autores contemporâneos, como Hélder Moutinho, José Luís Gordo e Tiago Torres da Silva.
É do mesmo ano a homenagem pela Associação Portuguesa dos Amigos do Fado (APAF), no Museu do Fado, num reconhecimento da «voz bonita, capacidade interpretativa e regularidade de uma carreira», segundo declarações de Julieta Estrela de Castro, presidente da APAF, à agência Lusa.
Nova homenagem lhe viria a ser prestada em 2015, no Teatro Armando Cortez da Casa do Artista, de que deixamos aqui uma interpretação do tema «Meu corpo».
O ano de 2010 é muito especial: estreia-se Fado Celeste, documentário sobre a sua vida, com o título do disco homónimo e realização do seu neto Diogo Varela Silva. Cinco anos depois, a secção Heart Beat do Festival DocLisboa viria a abrir com uma uma remontagem do documentário, intitulada, apenas, Celeste, celebrando os seus 70 anos de carreira.
Em 2010 recebeu a Medalha de Prata da Cidade de Lisboa e, em 2012, foi-lhe atribuída a Ordem do Infante D. Henrique, grau de comendador, pela Presidência da República Portuguesa.
In 2011, o Fado foi aceite pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade.
Em Dezembro de 2017 a cantora Madonna, de visita a Lisboa, conheceu Celeste Rodrigues e convidou-a para a sua passagem de ano, em Nova Iorque.
Quem sabe terá sido a porta para ser convidada para a segunda edição do Fado Festival NY. Em 7 de Abril de 2018, cerca de três semanas depois de ter cumprido 95 anos, Celeste Rodrigues pisa o palco do Town Hall, em Nova Iorque, ao lado de Carlos do Carmo, no que foi considerado um novo debut nova-iorquino.
Em Maio , Celeste Rodrigues cantou no palco do Teatro Tivoli, em Lisboa, e, na altura, disse à Lusa que «cantar é sempre uma alegria, mas ainda mais nesta idade, porque não é fácil ter ainda um bocadinho de voz» para que se «atrevesse» a cantar.
Deixa-nos agora. Não será esquecida.
Algum repertório
Celeste Rodrigues gravou mais de 60 discos durante a sua carreira. Entre os temas do seu vasto repertório, assinalam-se «A lenda das algas» (Laierte Neves, Jaime Mendes), «Saudade vai-te embora» (Júlio de Sousa), «O meu xaile» (Varela Silva), e «Olha a mala» (Manuel Casimiro) - os mais referidos –, mas também o «Fado das Queixas» (Frederico de Brito, Carlos Rocha), «Praia de Outono» (David Mourão-Ferreira, Nóbrega e Sousa) «Meu Corpo» (José Carlos Ary dos Santos, Fernando Tordo) e «Ouvi Dizer Que Me Esqueceste (Guitarra Triste)» (Jorge Fernando).
Deixamo-vos, uma vez mais, com Celeste Rodrigues. Ao vivo, no restaurante A Nini, em Lisboa.
Senhoras e senhores, Celeste Rodrigues.
- 1. Álbum da Canção, 1 de Maio de 1967, citado pelo Museu do Fado, em página dedicada à artista.
- 2. «Morreu Celeste Rodrigues, a fadista que foi muito mais do que a irmã de Amália», título do Público de 1 de Agosto de 2018.
- 3. A Feira Popular, antes da sua passagem para Entrecampos, ficava no chamado Parque da Palhavã, junto à Av. Duque d’Ávila, em frente ao Palácio Vilalva, em São Sebastião da Pedreira – onde desde 1948 até 2005 funcionou o Quartel-general do Governo Militar de Lisboa,
- 4. Álbum da Canção, 1 de Maio de 1967, ibidem.
- 5. Idem, ibidem.
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