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Uber escondido com ministro de fora: a conspiração para baixar salários

Mais de 124 mil papeis secretos revelam que os governos foram cúmplices nas ilegalidades da Uber. Enquanto fingiam aprovar as novas tecnologias queriam destruir direitos laborais e baixar os salários de todos os trabalhadores.

Taxistas impedem um veículo conduzido por um motorista da Uber de seguir o seu caminho durante o protesto promovido pela Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) e pela Federação Portuguesa do Táxi. Estes protestos foram aproveitados pela Uber para mudar o sentimento da opinião pública.
CréditosMiguel A. Lopes / Lusa

Uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla em inglês), publicada esta semana, revela que entre 2013 e 2017 a empresa recorreu a manipulação na comunicação social, lobbies financeiros e criação de influência sobre decisores políticos para expandir o seu negócio.

A investigação Uber Files do ICIJ envolveu 40 meios de comunicação em 29 países (Portugal não está na lista de media partners, embora o caso português tenha sido abordado) que analisaram mais de 124 mil documentos da empresa. Os dados mostram que entre 2013 e 2017, o então presidente executivo da Uber, Travis Kalanick, deu aval a uma estratégia que acicatava histórias de violência contra motoristas da Uber para promover a imagem da empresa na sua luta contra os taxistas e sabotando leis que não permitiam a expansão do seu negócio, e o consequente aumento da desregulamentação do mercado de trabalho.

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Portugal no espelho dos Uber Papers

Durante vários anos, a Uber actuou em Portugal na mais completa ilegalidade, afrontando as leis do sector onde está inserida. Nunca o Estado português tentou qualquer acção séria contra ela.

Foram vários os protestos realizados nos últimos anos por taxistas contra plataformas como a Uber, nomeadamente em Portugal
Créditos

O Consórcio Internacional de Jornalistas Independentes (IJIC) publicou este fim-de-semana um artigo1 baseado numa investigação conduzida em torno dos Uber Papers, um vasto conjunto de documentos e comunicações internas da Uber.

A Uber reagiu ao conjunto de denúncias dizendo que o conteúdo agora exposto é referente à gestão do anterior CEO e que, desde 2017 com um novo CEO, essas práticas foram completamente afastadas. É preciso ter em conta que um lema – documentado – da tal anterior equipa era «É melhor pedir perdão que permissão»... que é exactamente o que a Uber está a fazer neste momento... mas enfim, esta é conversa para enganar quem quer ser enganado.

O conteúdo até agora tornado público não é muito rico em elementos concretos sobre o processo português, mas a informação disponibilizada ilustra bem o que foram vários processos de entrada forçada da Uber em vários países, e nesse sentido devem ser vistos como um espelho onde o processo português tem que ser entendido e tratado.

Comprando quem os defenda

Quando a Uber realizou uma listagem de algumas centenas de personalidades que era útil atrair, não lhes estabeleceu um preço, e muito menos o mesmo preço, até porque não tinham o mesmo valor para a companhia. Os Uber Papers dizem-nos que para 2016 eram 90 milhões os dólares reservados para esta actividade de atracção, e ilustram situações de pessoas atraídas com descontos na companhia, jantares de luxo, conselhos sobre empregos, contribuições de campanha e oferta de acções. Pessoas úteis que tanto podiam ser políticos, decisores públicos ou académicos. E que eram chamados a cumprir o seu papel quando tal se colocava.

Estas pessoas atraídas apelavam a que «se levantassem exigências, mudassem as políticas relativas aos direitos dos trabalhadores, desenhassem novas leis para o táxi e facilitassem na verificação de antecedentes dos motoristas».

«Quando a Uber realizou uma listagem de algumas centenas de personalidades que era útil atrair, não lhes estabeleceu um preço, e muito menos o mesmo preço, até porque não tinham o mesmo valor para a companhia.»

A forma como uma ex-vice-presidente da Comissão Europeia acaba a receber 200 mil euros da Uber é descrita em pormenor, até citando declarações dos responsáveis da Uber proibindo a referência sequer ao nome dessa pessoa, até ser legal oficializar a sua contratação, depois de passar o período de nojo de 18 meses. Uma contratação realizada para um cargo formal – Presidente do Conselho Consultivo – com um ordenado bem real – 200 mil euros – e com funções reais que se depreende serem muito diversas das formais, como por exemplo, pressionar o Governo dos Países Baixos a «forçar o regulador e a polícia a afastar-se».

Actuando como uma organização criminosa

Outra das dimensões que os Uber Papers ilustram é a imagem de uma multinacional actuando como uma autêntica organização criminosa. Discutindo o bloqueio informático de esquadras e edifícios da polícia para travar investigações em curso. Infiltrando agentes seus nos «falsos clientes» usados pela polícia para operações contra a Uber como mecanismo de conhecer com antecedência as operações. Instalando e accionando botões para cortar o acesso a documentação sensível em momentos de rusgas policiais.

É neste ambiente doentio e criminal que parece natural a sugestão dada por um dos responsáveis, em Portugal, de comprar uma investigação sobre um dirigente da ANTRAL para tentar descobrir algo útil de usar numa campanha mediática. Ou parece ainda mais natural a táctica usada em vários países, incluindo Portugal, de montar verdadeiras provocações destinadas a gerar uma resposta violenta por parte dos taxistas para depois poder usar essa resposta para promover a Uber.

O poder económico e o poder político em conluio contra o povo

Onde a investigação destapa vários casos é no conluio do poder político – comprado, convencido ou submetido – com o poder económico para conseguir servir os interesses da multinacional e enganar a opinião pública.

São exemplos os contactos com Macron, então ministro da Economia, que se terá comprometido a «contornar a legislação», ou a participação de dez quadros da Uber em Davos e os contactos com o poder político ao mais alto nível. Apropriado aos tempos em que vivemos, dessa reunião de Davos do Fórum Económico Mundial, os contactos com capitalistas russos foram intermediados por oligarcas ingleses.

Atraindo os motoristas com falsas promessas

Os processos de liberalização incluem muitas vezes medidas, incluindo remuneratórias, para atrair os profissionais do sector a serem cúmplices do processo que, quando completo, promoverá a sua progressiva proletarização com o correspondente aumento da exploração a níveis superiores ao início do processo.

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O papel da luta

A pandemia trouxe problemas de extrema gravidade e serviu de cortina de fumo para o agravamento da precariedade, a destruição de postos de trabalho e a desvalorização daqueles que verdadeiramente produzem riqueza.

Trabalhadores da Petrogal (Grupo Galp) manifestaram-se, em frente à sede da empresa e junto à residência oficial do primeiro-ministro, contra a decisão de encerrar a refinaria de Matosinhos. Lisboa, 2 de Fevereiro de 2021. Contestam o argumento da transição energética para o encerramento das instalações, que exigem sejam transformadas numa refinaria de biocombustíveis
Os trabalhadores da refinaria de Matosinhos da Petrogal têm estado em luta pelos seus postos de trabalhoCréditosMÁRIO CRUZ / LUSA

Há dias, numa pequena viagem de carro, o motorista do TVDE que apanhei contava-me que na primeira semana de confinamento tinha feito 20 euros. Depois disso, começou a fazer biscates para conseguir pagar contas. Para além do seu próprio caso, contou histórias que vão circulando entre trabalhadores destas plataformas: gente que investiu em carros no início de 2020, gente que faz 14 ou 15 horas e que trabalha pelo valor mais baixo só para poder ganhar qualquer coisa. O trabalho não paga sequer o combustível, mas as plataformas continuam a faturar. Para quem começou neste negócio pela perspetiva do empreendedorismo, a pandemia foi um choque com a realidade do trabalho precário.

«Em Bruxelas, já a maioria dos Estados-membros sentia os efeitos de uma crise económica e social inegável, desenhava-se a «bazuca» em folha de cálculo, para dar resposta a realidades que todos os dias se agravavam mais. Mas nem a Comissão Europeia nem o governo português conseguiram esconder o conflito que um instrumento de emergência orçamental tinha com uma política económica desigual entre os seus diversos membros»

Se não fossem estas breves conversas, teria mais dificuldade em conhecer relatos de pessoas que se estão a confrontar com a falta de expectativas no seu trabalho. Alguns amigos ligados à restauração vão desabafando sobre um pessimismo cada vez mais confirmado na impossibilidade de pagar salários (quanto mais receber) apesar de algum apoio do Estado. De resto, talvez por vergonha do julgamento alheio, os testemunhos são tímidos, como se estivessem a viver esta problema sozinhos.

Na verdade, este período isolou muitos de nós e limitou-nos na partilha e na solidariedade, apesar de o impacte da pandemia na economia se ter feito sentir quase de imediato nos setores mais fragilizados e mais precários. Dentro desses setores de atividade, foi necessário combater esse isolamento e procurar uma resposta conjunta para enfrentar aproveitamentos patronais e hesitações políticas.

Pouco depois de se decretar o confinamento obrigatório, em 2020, não tardaram as notícias sobre limitações de direitos laborais, despedimentos e desaparecimento de certos postos de trabalho. As micros, pequenas e médias empresas começaram a acusar a falta de apoio público e os relatos desesperados de pequenos empresários e trabalhadores não podiam mais ser escondidos por detrás de mensagens de otimismo santimonial. O país que não se limitou a confinar e despertava para a necessidade de se manifestar e lutar pelos seus direitos, enquanto os media serviam de caixa de ressonância de «achismo» político, reduzindo a pandemia a uma mera crise de gestão governamental e comunicacional.

«Enquanto países como a Alemanha chegaram com eficácia às necessidades dos pequenos negócios e dos trabalhadores, os países periféricos, anteriormente intervencionados, como Portugal, sentiram os efeitos de uma política de contenção orçamental e de imposição do «equilíbrio» das contas públicas»

Em Bruxelas, já a maioria dos Estados-membros sentia os efeitos de uma crise económica e social inegável, desenhava-se a «bazuca» em folha de cálculo, para dar resposta a realidades que todos os dias se agravavam mais. Mas nem a Comissão Europeia nem o governo português conseguiram esconder o conflito que um instrumento de emergência orçamental tinha com uma política económica desigual entre os seus diversos membros. Enquanto países como a Alemanha chegaram com eficácia às necessidades dos pequenos negócios e dos trabalhadores, os países periféricos, anteriormente intervencionados, como Portugal, sentiram os efeitos de uma política de contenção orçamental e de imposição do «equilíbrio» das contas públicas.

Esta análise encontrou eco nalguma imprensa portuguesa: de Agostinho Lopes, num artigo deste mês no Jornal Económico, a Eugénia Pires, numa outra reflexão, na edição portuguesa do Le Monde diplomatique de Março («Endividamento público na crise pandémica, uma hipoxia feliz»). Torna-se fundamental compreender esta leitura mais ampla, macroeconómica, para compreender as movimentações sociais de resposta à crise pandémica e económica que se fizeram sentir em Portugal, no último ano.

A par da hesitação da política orçamental, com um Orçamento do Estado a ser negociado em condições difíceis, muitas foram as empresas que aproveitaram a pandemia para despedir trabalhadores, para não pagar salários e para suspender direitos. A pandemia, que só por si trouxe problemas de extrema gravidade, serviu também de cortina de fumo para se prosseguir com o agravamento da precariedade, com a destruição de postos de trabalho e com a desvalorização daqueles que verdadeiramente produzem riqueza, fosse através do não pagamento de horas extraordinárias ou da recusa de pedidos de férias. Os dividendos – esses – continuaram a ser distribuídos.

«apesar de uma enorme pressão mediática para limitar direitos de manifestação e de ação política – perfeitamente sintetizada na reprovação e na falta de solidariedade com as ações de luta do 1.º de Maio – e das restrições decretadas pelos vários estados de emergência, 2020 foi um ano de grandes demonstrações de resistência e coragem dos trabalhadores de muitos setores»

Porém, apesar de uma enorme pressão mediática para limitar direitos de manifestação e de ação política – perfeitamente sintetizada na reprovação e na falta de solidariedade com as ações de luta do 1.º de Maio – e das restrições decretadas pelos vários estados de emergência, 2020 foi um ano de grandes demonstrações de resistência e coragem dos trabalhadores de muitos setores, que cedo perceberam o aproveitamento da pandemia e não tiveram outra alternativa senão sair à rua para defender o seu direito ao trabalho e os direitos do trabalho. Estas ações de luta não foram inconsequentes e os seus resultados demonstram a importância do sindicalismo, da unidade e da solidariedade entre trabalhadores.

Num tempo em que crescem os discursos antissindicais, disfarçados de preocupação com a falta de rejuvenescimento dos sindicatos, em que o capitalismo alimenta o individualismo, o derrotismo, o medo e a inércia; num tempo em que a agenda mediática tenta colocar os trabalhadores uns contra os outros e em que a ausência de referências à luta dos trabalhadores se faz sentir em cada peça noticiosa sobre «a crise» – neste tempo, o nosso –, os trabalhadores resistem e organizam-se, lutam e vencem, contra todas estas investidas, que têm na classe média o seu soldado preferido.

«Só este esforço e esta ação coletiva conseguem demonstrar que não há inevitabilidades e que as consequências de uma economia periférica, sujeita a regras orçamentais exteriores e interesses que não correspondem às necessidades reais dos povos, têm uma resposta»

Desde 2020 até hoje, saíram à rua operários da indústria, que não só resiste ao tempo como resiste à lei; trabalhadores de multinacionais chantageados para lhes suprimirem direitos como o direito a férias; trabalhadores com salários em atraso e a quem foram retirados os subsídios de natal ou de férias; trabalhadores a quem foi pedido para alargarem o horário legal de trabalho sem direito ao pagamento das horas extraordinárias ou a quem foi imposto um modelo de banco de horas que irá prejudicar o bem-estar familiar; trabalhadores que viram as suas despesas de consumo doméstico aumentarem com o teletrabalho; trabalhadores que viram o risco a aumentar sem qualquer compensação; trabalhadores que fizeram de sujeitos passivos no encerramento das empresas onde são a força produtiva de trabalho; enfermeiros, professores e demais trabalhadores do Estado que exigem a valorização das carreiras. Todos os dias, se abrirmos as informações dos sindicatos, nas suas plataformas oficiais, lá estão todas essas lutas, todos os momentos cruciais dessas lutas, todo o apoio que os sindicatos disponibilizam aos trabalhadores, o papel dos partidos políticos na conclusão dos processos (senão na origem destes) e cada conquista que os trabalhadores conseguem com todo este sacrifício e todos estes bloqueios.

É aí que veremos que, depois de duas semanas de luta intensa, os trabalhadores da Groundforce conseguiram o pagamento dos salários em atraso; que, depois de 2 anos, Cristina Tavares viu a empresa que a violentou sentenciada em tribunal; que os trabalhadores e pequenos empresários viram as regras do lay-off serem paulatinamente alteradas a seu favor; que as trabalhadoras da Castimoda conseguiram impedir que o patrão retirasse as máquinas da fábrica; ou que os trabalhadores da refinaria de Matosinhos resistem ao seu encerramento. É aí que veremos, por exemplo, que trabalhadores como aquele motorista de TVDE que apanhei há dias já se conseguiram organizar e levar ao Governo as suas reivindicações sobre a regulamentação do setor.

Só este esforço e esta ação coletiva conseguem demonstrar que não há inevitabilidades e que as consequências de uma economia periférica, sujeita a regras orçamentais exteriores e interesses que não correspondem às necessidades reais dos povos, têm uma resposta. Todas as ações de luta dos trabalhadores, reunidas, são um movimento político consequente, que fará eco nos centros de decisão e obrigará a cedências. Só a luta organizada dos trabalhadores poderá reivindicar uma verdadeira alternativa política soberana, que não esteja dependente de Bruxelas e que desencadeie um conjunto de opções orçamentais que responda à situação real do país, com uma fiscalização profunda às dinâmicas fraudulentas, com um investimento sério no setor produtivo do Estado, com uma Segurança Social robusta, com serviços públicos com recursos suficientes para garantir o acesso de todos e com a consolidação da contratação coletiva. Tudo isto começa na luta dos trabalhadores.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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Mas a Uber foi mais longe, oferecendo bónus, incentivos e percentagens que levaram muitos a realizar investimentos de que acabaram por ficar reféns quando esses valores foram retirados.

Os Uber Papers revelam ainda o facto de a multinacional se ter oferecido – para evitar pressão sobre os seus próprios impostos – a ajudar na recolha de impostos aos motoristas. Edificante, sem dúvida.

Significativo é ainda constatar a diferença nas declarações de Joe Biden, em Davos, depois de uma reunião com directores da multinacional, quando se tratava de facilitar a entrada desta no mercado mundial, prometendo «dois milhões de novos empregos este ano, permitindo a liberdade de trabalhar tantas horas quanto se deseje, e organizar a vida de cada um como desejar», com a resposta que agora dá, frente às consequências reais do processo sobre os trabalhadores dos EUA: «estou comprometido em combater o emprego desqualificado que priva os trabalhadores de protecções e benefícios fundamentais, como sejam o salário mínimo, as horas extras e as licenças familiares e médicas».

Revisitando agora o caso português

Depois da leitura do resumo acima publicado, que cada um revisite o processo português e daí retire as devidas ilações.

Durante vários anos, a multinacional actuou em Portugal na mais completa ilegalidade, afrontando as leis do sector onde está inserida, o transporte remunerado de passageiros em viatura ligeira. Nunca o Estado português tentou qualquer acção séria contra ela. Os seus sites ou aplicações nunca foram bloqueados – e é possível, como está demonstrado. Os motoristas que operavam ao seu serviço actuavam na mais completa ilegalidade, afrontando a natural hostilidade dos profissionais do táxi, que realizavam uma actividade regulada que sofria a concorrência desleal e ilegal da Uber. Raras vezes foram multados, ao contrário do táxi, que sofria campanhas de assédio policial. A comunicação social aplaudia a «novidade» enquanto os opinion makers faziam opiniões.

Até que em 2018, PS e PSD se juntaram, com o apoio do PAN e a abstenção do CDS, para criar a Lei do TVDE, legalizando a actividade da multinacional. Uma lei que não é cumprida em muitas das suas disposições, mas veio legalizar a actividade da Uber, que passou a recolher muitos milhões de euros do transporte remunerado de passageiros em viatura ligeira realizado em Portugal. Passado pouco tempo, as condições de trabalho regrediram no próprio sector TVDE e as justas lutas dos seus profissionais têm crescido.

Todo um processo que já na altura parecia sujo. Que hoje parece ainda mais sujo. E que se algum dia for propriamente investigado, se revelará seguramente ainda mais sujo.

Dirão alguns, e qual é a novidade? Tudo isso é velho e tudo isso é capitalismo. E têm razão.

  • 1. «A máquina de Lobby: como a Uber ganhou acesso aos líderes mundiais, enganou investigadores e explorou a violência contra os seus  motoristas numa batalha pelo domínio mundial.», ICIJ, 10 Julho de 2022. O conhecimento público dos Uber Papers que aqui reporto é o transmitido neste artigo.
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A estratégia foi repetida em vários países, incluindo Portugal, revela uma investigação jornalística publicada domingo passado pelo ICIJ.

O plano começou a ser traçado em 2015, quando os estrategos da empresa norte-americana perceberam que poderiam beneficiar com os actos de violência contra os motoristas da Uber, ganhando a simpatia da opinião pública, revela a investigação Uber Files. O plano terá começado depois de um conselheiro da Comissão Europeia ter escrito na rede social Facebook que um Uber em que viajou tinha sido atacado por taxistas.

Nessa semana, quatro motoristas da Uber foram atacados numa mesma noite por taxistas nos Países Baixos que protestavam contra os benefícios de que a empresa norte-americana estava a beneficiar, levando Niek van Leeuwen, gestor da organização para aquela região europeia, a relatar a situação ao então presidente executivo, Travis Kalanick.

Com o aval da direcção geral da empresa, Leeuwen fez um relatório interno em que aconselhava uma estratégia para a empresa conseguir entrar em países com leis do trabalho e regulamentos estritos do ponto de vista da formação mínima dos motoristas: «Temos de manter esta narrativa da violência».

A partir daí, a Uber começou a aconselhar os motoristas a fazerem frente à violência dos taxistas, lembrando-os que essa era a melhor forma de proteger os interesses da empresa para a qual trabalhavam sem contrato. Várias mensagens mostram Kalanick a aconselhar os taxistas a manter esta «narrativa da violência».

Um dos exemplos apresentados pela investigação do ICIJ — citado pelo jornal The Washington Post, um dos jornais envolvidos nesta investigação — ocorreu em Portugal, em 2015, quando taxistas cometeram «actos de violência» contra motoristas da Uber em diversas ocasiões, provocando ferimentos em vários e levando um deles a ser hospitalizado.

A contestação ao serviço Uber em Portugal, e à falta de regulação da sua actividade, cresceu de tom ao longo do primeiro semestre de 2015, culminando, no final do mês de Junho, na confirmação de uma providência cautelar, apresentada pela Associação Nacional de Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL), que junta proprietários de táxis, junto do Tribunal Central de Lisboa, para a suspensão da actividade da plataforma tecnológica.

Situação que foi sendo revertida ao longo do tempo, em Portugal e em outros países, com apoio de políticos locais, que viram a entrada do Uber como uma ocasião de ouro, para fragilizar ainda mais os direitos laborais, ajudando a destruir direitos laborais conquistados por gerações de trabalhadores.

Em França, a 3 de Julho de 2015, a suspensão do UberPop parecia uma vitória do governo socialista de Hollande e dos trabalhadores e empresários dos táxis. Quando a realidade foi bastante diferente. Pois ninguém sabia, na altura, que esta decisão fazia parte de um «acordo» feito às escondidas com o ministro da Economia da altura, Emmanuel Macron, para «contornar» a legislação do próprio governo que fazia parte.

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PS quebra compromisso com os taxistas e chumba contingentes

O PS recuou nas promessas aos taxistas e chumbou a proposta do PEV para que os carros das plataformas electrónicas passem a respeitar os limites de veículos aplicados aos taxistas.

Táxis continuam parados na Avenida da Liberdade, em Lisboa. 23 de Setembro de 2018
Táxis parados durante um protesto nacional na Avenida da Liberdade, em Lisboa. 23 de Setembro de 2018CréditosRodrigo Antunes / Agência LUSA

O projecto do PEV, rejeitado esta manhã, transferia o licenciamento dos veículos descaracterizados para as câmaras municipais, sendo enquadrado nos contingentes (limite de veículos) que actualmente já existem para o sector do táxi. Esta é uma das principais reivindicações dos taxistas mas é também um instrumento importante de regulação da oferta de transporte de passageiros.

Após a recente paralisação dos taxistas, que durou uma semana, o grupo parlamentar do PS assumiu o compromisso de viabilizar esta solução. Hoje, voltou atrás e alinhou com o PSD, o CDS-PP e o PAN para chumbar a alteração.

Em votação estiveram outros quatro projectos, todos eles rejeitados com os votos contra do PS, do PSD e do CDS-PP. O PCP e o BE propuseram a revogação da «lei Uber», cuja entrada em vigor está prevista para 1 de Novembro.

Para além da questão dos contingentes, o PEV levou ainda a votação mudanças no sentido da equiparação entre a formação exigida aos taxistas e aos motoristas das plataformas electrónicas, assim como a fixação dos preços, proibindo as tarifas dinâmicas que a Uber utilizou durante o protesto do sector do táxi, inflacionando os preços de forma muito significativa.

PCP contra a entrega do sector a multinacionais, BE quer começar de novo

A bancada comunista justificou a sua proposta de revogação da lei por esta criar um regime legal paralelo ao que já existe para o táxi, mas com benefícios para as plataformas electrónicas detidas por multinacionais. O PCP contesta a intenção do actual e do anterior governo de entregar o sector a empresas como a Uber e a Cabify, destruindo a indústria do táxi.

Na sustentação da sua proposta, o BE aponta as situações de desigualdade que favorecem as plataformas, mas lembra também que apresentou uma proposta alternativa de regulamentação. Ao propor a revogação da «lei Uber» ainda antes da sua entrada em vigor, o grupo parlamentar do BE pretende reiniciar o processo legislativo.

PS e PSD acertaram liberalização do sector

Na solução legal adoptada, negociada pelo PS e pelo PSD e promulgada pelo Presidente da República, as plataformas como a Uber e a Cabify vão poder operar sem contingentes nem limites de preço. Recorde-se que estas transnacionais operam em Portugal de forma ilegal desde 2014, inclusive com decisões judiciais nesse sentido.

Com excepção de algumas multas impostas aos seus parceiros locais das plataformas, que em muitos casos não foram sequer pagas, a acção das autoridades nacionais tem sido marcada pela passividade face às reiteradas violações da lei nacional.

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Os Uber Files levantaram o véu sobre a relação entre a empresa californiana e o actual Presidente da República francês. Durante pelo menos dois anos, os directores da Uber trocaram mensagens com Emmanuel Macron e o seu gabinete e até se encontraram com o então ministro em várias ocasiões. Na maior parte das vezes, estas reuniões foram confidenciais, sem serem registadas na agenda do ministro, realizadas atrás das paredes do Bercy, sede do Ministério das Finanças, ou em restaurantes chiques. Graças a esses encontros, a Uber acabou por obter um «relaxamento» da lei e conseguiu instalar-se em França.

A empresa que em França defendia os interesses da Uber e dos Veículos Turísticos com Chofer (VTC) implementou uma verdadeira «estratégia de caos» desde a sua chegada a França em 2012.

«A violência garante o sucesso», defendeu várias vezes Travis Kalanick, o carismático e controverso fundador da plataforma Uber. A fim de impor o seu serviço, os gestores de topo da Uber sabem como tirar partido da oposição violenta dos taxistas, para mudar a opinião pública, e tentam, por muitos meios, influenciar a mudança da lei.

Documentos internos da empresa, analisados pelo diário francês Le Monde, mostram como, entre 2014 e 2016, o ministro da Economia trabalhou nos bastidores com a empresa para impor uma desregulamentação do mercado de trabalho que enfrentava a hostilidade da maioria da população e até do governo que fazia parte.

Desde a meia-noite, 1 de Outubro de 2014, a novíssima lei Thévenoud entrou em vigor: fornece um quadro muito mais rigoroso para as condições de se tornar um motorista Uber, três anos após a chegada da empresa americana a França, e proíbe de facto o UberPop, o serviço que tinha provocado um gigantesco movimento de raiva entre os taxistas em França ao permitir que qualquer pessoa se tornasse um motorista ocasional. Mas às 8:30 daquela manhã, um veículo Uber bastante invulgar estacionou em frente à rue de Bercy 145 - a entrada do Ministério da Economia através da qual passam os convidados de Emmanuel Macron, que tinha sido nomeado para o cargo um mês antes.

Dentro da carrinha Mercedes Viano estão quatro figuras da Uber: Pierre-Dimitri Gore-Coty, o director da Europa Ocidental, agora responsável da Uber Eats; Mark MacGann, o chefe do lobby para a Europa, África, zona do Médio Oriente; David Plouffe, antigo conselheiro de Barack Obama, recentemente nomeado vice-presidente da Uber; e o próprio fundador e CEO da empresa, Travis Kalanick. Uma hora mais tarde, a equipa de lobby de choque saiu do escritório de Emmanuel Macron atordoada. «Numa palavra: espectacular. Inédito», escreveu Mark MacGann num breve relatório enviado aos seus colegas. «Muito trabalho para fazer, mas dançaremos em breve ;)» «Mega encontro top com Emmanuel Macron esta manhã. Afinal, a França ama-nos», escreveu ele também.

Esta reunião confidencial não estava na agenda de Emmanuel Macron. Le Monde e os seus parceiros do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) revelaram agora a sua existência graças à análise de uma vasta quantidade de documentos internos da Uber, transmitidos ao diário britânico The Guardian. Estes Uber Files, dezenas de milhares de emails, apresentações, folhas de cálculo e documentos PDF, escritos entre 2013 e 2017, lançam uma luz particularmente dura sobre estes anos loucos, pontuados pela violência durante os protestos de táxi, durante os quais a empresa americana utilizou todas as receitas de lobbying para tentar obter uma desregulamentação do mercado de trabalho e das leis sobre transportes de passageiros em França.

Acima de tudo, estes documentos mostram até que ponto a Uber encontrou um ouvido atento em Emmanuel Macron, que selou um «acordo» secreto com a empresa californiana alguns meses mais tarde para «garantir que a França trabalha para a Uber, para que a Uber possa trabalhar para a França».

Os executivos da Uber ficam tanto mais encantados com o acolhimento extremamente cordial do ministro da Economia até porque o resto do governo parece-lhes ser muito hostil. O, na altura, Presidente da República, François Hollande, encontrou-se com Travis Kalanick muito discretamente em Fevereiro de 2014, mas ninguém no executivo parece estar pronto a defender a Uber. Arnaud Montebourg, predecessor de Emmanuel Macron em Bercy, acusou directamente a Uber de «destruir empresas»; no Ministério do Interior, Bernard Cazeneuve - responsável pelos táxis - não esconde a sua hostilidade ao serviço, que opera à margem da lei e é alvo de pelo menos quatro investigações diferentes. O primeiro-ministro, Manuel Valls, tem pouco mais simpatia pela Uber, e o ministro dos Transportes, Alain Vidalies, desconfia do serviço, que não oferece qualquer segurança de emprego. Quando recebe o Kalanick, Macron não pode ignorar que está a contornar as decisões dos seus colegas de governo e dos deputados socialistas.

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Até nas horas de formação o Governo favorece interesses das transnacionais

Os motoristas da Uber vão ser obrigados a fazer um curso de 50 horas, que é menos de metade da duração da formação inicial dos taxistas, de acordo com a regulamentação publicada hoje pelo Governo.

A Uber presta serviço de táxi recorrendo a viaturas e a motoristas sem respeitar as obrigações legais a que estão obrigados os taxistas
A Uber continuar a operar ilegalmente em Portugal desde 2014: a lei só entra amanhãCréditos / Business of Apps

A um dia da entrada em vigor da «lei Uber», o Governo publicou a regulamentação que fixa a formação obrigatória para os motoristas das plataformas electrónicas num mínimo de 50 horas.

Mais uma vez, a desigualdade de tratamento entre as plataformas detidas por transnacionais e o sector do táxi fica evidente, já que os motoristas estão obrigados a cumprir uma formação inicial de 125 horas, a que se somam 25 horas a cada renovação. O certificado, tal como o dos taxistas, terá uma duração de cinco anos.

O PS, ao fim de uma semana de paralisação do sector do táxi, assumiu o compromisso de ir ao encontro de uma das principais reivindicações dos taxistas: a implementação de contingentes (limites de veículos) para as plataformas, tal como existem para os táxis.

No entanto, o grupo parlamentar socialista ajudou a chumbar uma proposta do PEV nesse sentido a 19 de Outubro.

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O actual Presidente da República nunca escondeu a sua simpatia pela Uber e pelo seu modelo, que ele acredita poder criar muitos empregos, especialmente para os pouco qualificados. «Não vou proibir a Uber, isso seria enviar [jovens dos subúrbios sem qualificações] de volta para vender drogas», disse ele ao site Mediapart em Novembro de 2016. No final de 2014, Emmanuel Macron defendeu muito publicamente o modelo Uber na conferência «Le Web», durante a qual se pronunciou contra a proibição da Uber em Paris e explicou que «[o seu] trabalho não é ajudar as empresas estabelecidas, mas trabalhar para os forasteiros, os inovadores».

Mas os Uber Files mostram até que ponto Emmanuel Macron tem sido mais do que um apoiante, quase um parceiro, na Bercy. Um ministro que sugere à Uber que transmita alterações «chave na mão» a deputados amigos. Macron é um ministro a quem Uber France não hesita em recorrer em caso de busca nas suas instalações; um ministro que, a 1 de Outubro de 2014, «quase pede desculpa» pela entrada em vigor da lei Thévenoud, segundo um relato da reunião escrito pelo lobista Mark MacGann para os seus colegas de língua inglesa. De acordo com a mensagem, Macron disse que queria ajudar a Uber a «trabalhar em torno» da lei.

Pelo menos dezassete trocas de informação significativas (reuniões, chamadas, mensagens de texto) tiveram lugar entre Emmanuel Macron ou os seus conselheiros próximos e as equipas de Uber France, nos dezoito meses seguintes à sua chegada ao ministério, incluindo pelo menos quatro reuniões entre o ministro e Travis Kalanick.

Coça-me as costas que eu coço-te as tuas

Os executivos da Uber France rapidamente viram como poderiam, numa forma de simbiose, estabelecer uma relação vantajosa com Emmanuel Macron, dando ao ministro oportunidades de se apresentar como o campeão da inovação, assegurando ao mesmo tempo notícias nos meios de comunicação social positivas para o governante e atenuando a oposição política e legal à empresa.

Para a Uber, os contactos com Macron permitiram-lhe fazer cair leis que exigiam uma formação importante e demorada para se poder ser condutor de carros que transportassem passageiros. Para o ministro a empresa era uma ponta de lança para conseguir desregulamentar o mercado de trabalho e fazer com que os trabalhadores de todos os outros sectores da economia fossem forçados a aceitar trabalhos com piores salários e menos direitos.

Em Outubro de 2015: o prefeito de polícia de Marselha, Laurent Nuñez, emitiu uma ordem de proibição de facto da Uber numa grande parte dos Bouches-du-Rhône. «Sr. ministro, estamos chocados com a ordem da prefeitura de Marselha», escreve Mark MacGann, chefe do lobby da Uber, imediatamente a Emmanuel Macron. «Pode pedir ao seu gabinete que nos ajude a compreender o que se passa?» Emmanuel Macron responde por mensagem de texto que «investigará pessoalmente». Três dias mais tarde, a prefeitura da polícia «clarificou» os contornos da sua ordem: a proibição desapareceu.

Para o conseguir legalizar completamente a empresa, Emmanuel Macron e Uber acordam numa estratégia comum. A Uber elabora directamente alterações parlamentares simplificando as condições de acesso à licença VTC, para que possam ser propostas pelos deputados e discutidas durante o exame do chamado projecto de lei «Macron 1»; se a sua adopção for improvável na Assembleia, darão mais peso ao ministro para assinar um decreto que não precisará de passar novamente pela Assembleia.

Em Janeiro de 2015, a Uber France enviou, portanto, emendas «chave na mão» ao deputado socialista Luc Belot, que era muito favorável à empresa.

O plano correu sem problemas: as emendas apresentadas por Luc Belot foram rejeitadas ou retiradas, mas Emmanuel Macron aproveitou a oportunidade, na Assembleia, para anunciar que um decreto iria responder às preocupações principais da empresa. No início de 2016, o governo reduziu a duração da formação necessária para obter uma licença VTC de duzentas e cinquenta horas para apenas sete horas. Estavam abertas as portas à implantação da Uber em França.

Um campo semeado para a uberização e precarização em Portugal

A crise, os ataques à contratação colectiva e à liberdade sindical, conjugadas com uma comunicação social cada vez mais ideologizada e de direita, tornaram Portugal um terreno fértil para as «novas» formas de trabalho, que recordavam, pelas suas condições precárias e miseráveis, muitas das formas de trabalho dos tempos passados da ditadura.

A esta movimentação não ficaram alheias as as universidades que funcionam, cada vez mais, como caixas de ressonância do neoliberalismo e da desregulamentação total das condições de trabalho.

«A 'uberização' é já uma realidade irreversível para a economia. Da mesma forma que o correio eletrónico reduziu a atividade postal, as máquinas multibanco e o homebanking satisfazem a maior parte das necessidades bancárias do cidadão comum, a Uber proporciona um serviço mais personalizado e mais adaptado às necessidades dos consumidores, e na maioria das vezes também vantajoso em termos de preço. O emprego corporativo de longo prazo está a ser substituído pelo paradigma do work on demand.», defendia Alexandra Leitão, docente da Católica Porto Business School, no Jornal Económico em 2017.

«O investigador da Universidade de Cambridge no Reino Unido, Andy Neely, disse recentemente à BBC que "a economia e o consumo estão cada vez mais voltados para os clientes modelo 'Uber' (…). E não é só a oferta de um serviço que está em causa. O elemento-chave é a satisfação do cliente".», concluía a docente.

Por seu lado, o sociólogo Elísio Estanque do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, fazia notar, em 26 de Julho 2019, em declarações recolhidas pelo site alemão Deutsche Welle, que os baixos salários portugueses e a crise económica faziam do Uber uma saída para muita gente, mesmo que isso significasse receber muito menos que os motoristas assalariados portugueses.

«Grande parte dos portugueses ganha apenas o salário mínimo garantido pelo Estado de 600 euros mensais. Como motoristas de Uber, eles conseguem guardar mais nos bolsos no final do mês».

Segundo o sociólogo, o preço do boom da economia compartilhada é alto: com uma receita um pouco maior, os próprios motoristas passam a ter que pagar contribuições para a Segurança Social e custos operacionais. Além disso, eles também são totalmente responsáveis por acidentes e outros problemas potenciais.

«Muitos também conduzem no seu tempo livre. Têm na verdade um outro emprego. Até eu recebi uma oferta. Só é preciso inscrever-se. Tudo é incrivelmente fácil», afirmou o sociólogo.

Além disso, o governo português está constantemente promovendo «empresas inovadoras de empreendedorismo e plataforma digitais». Resultado: nas cidades há agora mais motoristas de Uber do que de táxi, notava o jornalista do DW.

Tecnologias modernas ajudam a explorações antigas, das empresas às universidades

A uberização do trabalho foi precedida e acompanhada pelo aumento exponencial do trabalho de call center em Portugal. Segundo a Associação Portuguesa de Contacts Centers (APCC), o sector dos contact centers cresceu 53,1% entre 2019 e 2021, empregando actualmente 2% da população activa de Portugal. É esta a principal conclusão do Estudo de Dimensionamento do Sector apresentado na 18ª Conferência Internacional da APCC.

Em comunicado, a APCC informa ainda que existem no sector 103,674 mil «colaboradores» e que a actividade dos Outsourcers cresceu de 898 milhões para 1,375 mil milhões de euros entre 2019 e 2021. A quota de exportação nesta actividade é de 51,6% do total faturado.

Os baixos salários, a alta intensidade desse trabalho e a precariedade são aspectos que caracterizam também o sector.

A ideia de precariedade como admirável mundo novo que temos de aceitar assentou praça na sociedade e esse processo de legitimação de uma situação injusta faz-se também nas universidade e na sua forma de tratar os seus trabalhadores e investigadores.

Em Fevereiro de 2021, vários investigadores universitários, entre os quais Ana Ferreira, dirigente sindical do SPGL/Fenprof enviaram para o diário Público, um texto intitulado «A insustentável leveza da precariedade na Ciência», que fazia um diagnóstico que pouco se alterou com o tempo.

«A este respeito, desde 2015 o governo faz do "estímulo ao emprego científico" a sua grande bandeira. Contudo, se esta opção política melhorou as condições laborais de doutorados, possibilitando que alguns acedessem a um contrato de trabalho a prazo por oposição às malfadadas bolsas de pós-doutoramento (que, ainda assim, continuam a existir), não configura um efetivo e consequente combate à precariedade, nem aos seus impactos no trabalho e nas vidas daqueles que permanecem, ano após ano, ameaçados com a possibilidade de desemprego. Esta Ciência de curta duração encontra expressão clara, por exemplo, nos três concursos individuais de estímulo ao emprego científico (CEEC-IND) com cerca de 90% dos doutorados excluídos; num concurso institucional (CEEC-INST) que atribuiu 40,8% de contratos a prazo, 46,6% para o ingresso na carreira docente e apenas 12,6% para entrada na carreira de investigação científica ou, de uma forma ainda mais clara, num programa de combate à precariedade (Prevpap) que excluiu 87% dos investigadores e que se tem arrastado de forma inaceitável para os poucos propostos para integração na carreira de investigação científica.»

«Um modelo de Ciência, como o actual, unicamente baseado em projectos competitivos e vínculos laborais precários, está esgotado e não permitirá que a investigação científica em Portugal avance no sentido de criar alicerces robustos para uma sociedade justa e igualitária. Isto é particularmente patente no actual momento pandémico, que impossibilita o regular decurso de projectos e agrava diversos problemas das vidas dos trabalhadores e, em maior escala, das trabalhadoras científicas. Não nos esqueçamos que os vínculos precários destes investigadores implicam uma menor protecção ou mesmo exclusão dos apoios governamentais actualmente em curso. Se o momento actual exige medidas integradas e sistémicas de resposta às perturbações decorrentes da pandemia, também se impõem medidas de real combate à precariedade na Ciência, promovendo o fim das bolsas de investigação científica e a integração dos investigadores, técnicos de laboratório e gestores e comunicadores de ciência em lugares permanentes de carreira. Este caminho implica não só um reforço e articulação do investimento público em pessoas, projectos e instituições, mas, acima de tudo, uma alteração do paradigma da "investigação à la carte", pronta num estalar de dedos e desenvolvida pelo investigador precarizado do momento, por uma Ciência com o tempo e a profundidade que a produção de conhecimento sustentado implica.», afirmavam os investigadores.

Trabalho em luta

O que têm em comum os investigadores universitários, os operadores de call center e os imigrantes que nos fazem entregas de comida de bicicleta? A todos pretendem convencer que não são trabalhadores e que isso de haver direitos sociais colectivos e laborais minam a sua venturosa vida de liberdade de trabalhar quando querem, onde querem e quanto tempo querem, pelo mínimo dinheiro possível.

E como a liberdade não tem preço, não nos admiremos que a recompensa da aventura seja raramente ser aumentado e não vir a receber reforma. Vivemos um tempo em que os patrões querem enfiar no caixote da história conquistas como: tempo de descanso, segurança no trabalho e salários dignos.

Para abordar as novas formas de exploração e a necessidade de encontrar novas formas de luta, o colectivo Iniciativa dos Comuns promoveu, no final de Junho, a sua primeira assembleia em Lisboa, sob o tema: «O Trabalho em Luta». As Intervenções iniciais estavam a cargo de Ana Ferreira (investigadora universitária e sindicalista), Nuno Rodrigues (ex-estafeta na Glovo) e Daniel Negrão (membro do Sindicato Nacional de Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações).

Ana Ferreira sublinhou, na sua primeira intervenção, que «aquilo que tem mobilizado as pessoas nas lutas no sector do Ensino Superior e Ciência têm sido a questão da precariedade». Apesar disso, a maioria daqueles que nelas participam «não se identificam enquanto trabalhadores, nem assalariados». As pessoas vêem-se como cientistas que tentam fazer investigações para construir uma carreira académica e científica.

«Construir uma luta por melhores condições de trabalho com pessoas que não se identificam como trabalhadores não é propriamente muito fácil», nota Ana Ferreira, que analisa o processo que levou a investigação e o Ensino Superior a esta situação de precarização e individualização das pessoas.

«A precarização no ensino superior e na ciência é fruto dos desenvolvimentos nas últimas décadas. Todo esse tempo foi acompanhado com a narrativa da chamada criação da economia do conhecimento que teria de ser construída à volta dos valores da competitividade e da meritocracia. As normas dos valores na academia baseiam-se nesta competitividade, de produzir mais e mais.»

«Isto foi acompanhado por um processo de precarização da força de trabalho que atingiu todas as actividades envolvidas no ensino superior. A maior incidência é a nível de investigação, em que cerca de 95% de todos os investigadores são precarizados - com contratos de trabalho a prazo, bolsas de investigação, mas também estamos a falar de recibos verdes e actos únicos. Nos docentes convidados o número de precarizados tem aumentado nas últimas décadas e já atingem cerca de 40%; e ao nível da gestão e das funções para a ciência e tecnologia e similares, cerca de 65% estão também ocupadas por trabalhadores precarizados.»

Perante esta situação, a sindicalista e investigadora defende que têm-se degladiado duas posições opostas: por um lado, os decisores políticos e os reitores das instituições que afirmam que o facto de as pessoas estarem há décadas nas instituições não significa que ocupem funções permanentes. Defendendo, governo e reitores, que as bolsas precárias são a melhor forma de os investigadores explorarem o seu caminho em liberdade; e, por outro lado, as associações de investigadores e os sindicatos fazem notar que uma academia e ciência onde reina a precariedade, «só garante a liberdade de exploração. E que nós, investigadores e académicos, não queremos ser mais escravos da precariedade.», garantiu Ana Ferreira.

«Se não estás satisfeito podes ir para outro lado.»

A intervenção de Nuno Rodrigues, investigador, que foi trabalhador das plataformas de entregas e que tentou criar uma cooperativa nesse meio, versou muito a partir da sua experiência pessoal.

«Na sequência do fim de uma bolsa de investigação, trabalhei quatro meses a entregar comida a partir das plataformas e aplicações. A partir daí, tenho acompanhado o que acontece por intermédio de amigos que lá continuam a trabalhar e participando em alguns grupos de Whatsapp de pessoas que lá trabalham», historia.

Para Nuno Rodrigues há aspectos novos, em relação à avaliação de trabalho ser feita por intermédio dos algoritmos com a introdução de classificações por parte dos clientes e outros parceiros que «fazem parte do ecossistema do negócio», como os restaurantes. No entanto, esse tipo de avaliação tem diferentes ponderações e resultados dependendo da plataforma com que se trabalha. Quando um pedido é feito, o estafeta recebe prioritariamente esse pedido, tendo em conta a proximidade a que está e a classificação que o algoritmo lhe dá. «Há plataformas que permitem reservar horas de trabalho, nesse processo as pessoas que têm um ranking mais elevado têm vantagem, normalmente são as pessoas que estão disponíveis para trabalhar mais horas. Aqueles que iniciam o trabalho, restam-lhes ou horas que ninguém quer ou alturas em que há muita procura.»

As empresas ficam com parte do dinheiro que retiram a quem trabalha e aos restaurantes, e cabe aos trabalhadores toda a responsabilidade na compra e manutenção dos meios de produção, isto é o veículo em que se fazem transportar.

Um dos problemas é a arbitrariedade das plataformas e a inexistência de interlocutores para poder resolver questões. «Se há um problema e recebemos um email a dizer que a nossa conta foi cancelada, não existe a possibilidade de recorrer em relação aquela decisão. É, cada vez mais difícil, conseguir chegar a falar com alguém. São impostas regras kafkianas.»

Nuno Rodrigues realça a enorme exploração que todos estão sujeitos:

«Algumas pessoas , com grande sacrifício pessoal, fazem alguns rendimentos consideráveis. Mas chega o Verão e o número de pedidos desce. Estamos muitas vezes uma ou duas horas na rua, sem nenhum pedido. Acontece isso a centenas de trabalhadores.».

Dada a desregulamentação das suas relações laborais e a dificuldade dos processo de legalização dos trabalhadores imigrantes, o sector presta-se a ser a última hipótese de sobrevivência a muitas imigrantes indocumentados que são explorados por outros. «A plataforma, dada a sua “informalidade”, aproveita pessoas cujo a situação é de grande precariedade e necessidade, não conseguem ter um Número de Identificação Fiscal (NIF) e acabam a sujeitar-se a remunerações ainda mais baixas. Tendo eu NIF em Portugal posso abrir uma conta, posso ir para as redes sociais, dizendo que tenho uma conta e quem quiser trabalhar com ela, posso alugá-la com uma divisão de proveitos de 70% para a pessoa que trabalha e 30% para mim, sem fazer nada. Isto está bastante generalizado, não só em termos de imigrantes brasileiros, mas também do sudoeste da Ásia.»

O antigo trabalhador faz notar que as aplicações são tudo menos igualitárias, mesmo dentro das pessoas que lá estão. «A plataforma vendia a ideia que a a aplicação unia o produtor ao consumidor, isso não é verdade. Há gente que tem contrato com a plataforma, que não só gere várias contas, como acaba por estender esse negócio a todo uma série de instrumentos de trabalho necessários, como, no caso da TVDE, das viaturas, seguros, etc.. Há assim claramente uma lógica de intermediação, em que surgem vários agentes a ganhar dinheiro com este dinâmica.», explica.

Do ponto de vista laboral há, para Nuno Rodrigues uma enorme contradição, as pessoas são solidárias, organizam-se em grupos nas redes sociais, mas essas solidariedade não as leva ainda a contestar as dinâmicas de exploração e falta de direitos laborais.

«Neste sector há uma dinâmica de solidariedade muito forte: se alguém tem um furo, ou algum problema mecânico, rapidamente surge alguém para ajudar. Mas quando se discute que a plataforma nos está a roubar porque baixa unilateralmente o preço e o nosso rendimento, há logo gente considera que isso está ligado à própria dinâmica da tecnologia e de quem é o “empreendedor” e que reage dizendo: “Se não estás satisfeito podes ir para outro lado.” » .

Só dando mais força aos sindicatos é possível mudar a situação

Daniel Negrão é dirigente sindical e trabalhador num call center. Entrou para pagar as suas propinas e ficou agarrado a um cubículo até hoje.

«Eu sou trabalhador de call center desde 2001, entrei para pagar propinas. Acabei o curso há dez anos. Como eu, há vários colegas meus que têm cursos superiores, mestrado, têm doutoramento. Tenho um colega meu que escreveu um artigo científico para a revista Science [uma das mais importantes publicações científicas do mundo] sobre marcadores do cancro, ele trabalha ao meu lado há muitos anos. Não valorizamos a formação dos nossos trabalhadores. O mantra das empresas é sempre o mesmo: explorar, explorar, ganhar, ganhar.»

O dirigente sindical do SNTCT afirma que as condições de trabalho não têm melhorado.

«Cada vez mais são atacados os direitos dos trabalhadores, seja com a desculpa da crise, desculpa da pandemia ou desculpa da guerra. É sempre uma desculpa para cortar mais um direito e para não nos devolver um direito que foi cortado por uma desculpa anterior. É inacreditável que em pleno século XXI temos as condições laborais que temos.», afirma.

«Em Portugal existem mais de 100 mil trabalhadores de call centers, que recebem a maioria deles o salário mínimo nacional. Como é que é possível existir no século XXI este tipo de exploração? Existem várias empresas. Vou dar o meu exemplo: eu faço trabalho para a Altice empresas, e trabalho para uma empresa que se chama Intelcia, que por sua vez esta empresa é contratada por uma empresa chamada PT Contacto, empresa essa que revende os meus serviços à Altice. São três empresas , com os seus patrões, cada um deles ganha com o meu trabalho. E quem me paga o ordenado não tem trabalho para mim, nem para os meus colegas. A empresa acima também não tem trabalho para ninguém. Só a última, a Altice tem. Porquê que não somos trabalhadores da Altice, que é para quem trabalhamos de facto? Esta é a reivindicação da maior parte dos trabalhadores.»

Daniel Negrão relata as dificuldades do trabalho dos sindicatos nestas empresas, e que apesar disso, apenas a sindicalização e a luta pode melhorar a vida destes trabalhadores. « Apesar de haver 100 mil trabalhadores é muito difícil organizá-los. Muitos não se assumem como tal: "só estou aqui para pagar propinas", dizem-nos alguns. Mas não é verdade. É mais fácil falar com pessoas da Uber que com um colega meu. Na Fectrans (Federação dos sindicatos dos transportes e comunicações) conseguimos contactar trabalhadores da Uber,e nós não conseguimos contactar trabalhadores dos call centers porque têm medo. Imaginem o que é trabalhar num cubículo mínimo, sem luz natural, ter que realizar centenas de chamadas, sentado numa cadeira sem nenhumas condições ergonómicas, com pessoas a controlar em permanência, a exigir que se façam mais chamadas e contactos? Apesar disso, os trabalhadores já tiveram algumas vitórias, como não ser descontado o tempo de ida à casa de banho, no tempo de trabalho.», exemplifica o dirigente sindical.

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