Nos finais dos anos 40, Theodor W. Adorno escreve dois ensaios, um deles em parceria com Max Horkheimer, A Indústria Cultural - O Iluminismo como mistificação das massas, (1947), e Crítica Cultural e Sociedade, (1949), em que se relaciona economia, política e cultura no mundo contemporâneo, se estabelece o conceito de indústria cultural, um sistema que funde cultura e publicidade, funcionando como um poderoso sistema de manipulação das massas.
Com o decorrer dos anos e a degradação das artes e das letras, a sua actualidade é cada vez mais evidente. No seu tempo, com uma ainda incipiente televisão e sem redes sociais, apontam o cinema como uma das mais poderosas máquinas da luta ideológica essencial para a sobrevivência do capitalismo, também ele longe do seu estado actual.
Hollywood, instituída como a Meca do cinema pela quantidade e também pela qualidade de muitos dos filmes aí produzidos, ainda que muita crítica de modo complacente se tenha excessivamente deslumbrado, atribuindo qualidades até por vezes difíceis de descortinar em muitos dos produtos saídos dos estúdios californianos muitos deles estereotipados, recorde-se a sátira montada por Buñuel, que fez um manual em que se descodificavam esses arquetípicos, é o acabado exemplo dos conúbios entre cultura e publicidade, numa desde sempre activa frente de luta ideológica.
A generalidade da crítica e da história cinematográfica raramente, ou mesmo nunca, referem as revisões históricas e ideológicas promovidas pela indústria cinematográfica norte-americana que transformam em odisseia heróica a conquista do Oeste triturando transes pouco honrosos, o nascimento dos EUA com o genocídio dos povos índios e outros muito pouco recomendáveis sucessos em que se fundou o seu império agora em decadência, os êxtases com o sonho americano idolatrando as virtudes dos self-made man, o glamour da sociedade deixando quase intocados um materialismo sem limites e a ausência de ética, as revisões históricas mesmo as mais grosseiras como vender o Dia D como o dia da viragem na II Guerra Mundial, quando de facto essa alteração se deu com a derrota da wehrmacht na batalha de Kursk, em que o exército vermelho destruiu a força blindada alemã tornando-a incapaz de iniciativa militar, os inúmeros filmes sobre o Vietnam, com destaque para os invencíveis Stallone e Norris em exaltações heróicas que até fazem duvidar que o Vietnam do Norte tenha sido vitorioso, etc., etc.... Isto, enquanto nos mesmos estúdios ou em produções independentes se realizavam e realizam excelentes filmes que fazem contraponto mas são minoritários, rivalizando quase todos eles em qualidade estética com muitos dos filmes inscritos na matriz histórico-ideológica dominante.
Muito menos se refere que nos últimos decénios, tal qual como nos outros géneros das artes e letras, as vinhas da ira foram praticamente secadas, vitimizadas pelas mais diversas geadas, das de direita pura e dura às das esquerdas pequeno-burguesas radicais. É o grande triunfo da guerra fria cultural, um subterrâneo muito frequentado e muito pouco referido. Não com menor importância, a indústria cinematográfica norte-americana instituiu o star system, que invade e contamina toda a cultura, do cinema às artes, da literatura à música, sistema que se degradou até aos famosos invadirem todos os cantos e recantos do quotidiano globalizado. São os mercados culturais mundializados em que os produtos ditos culturais explodem em rentáveis êxitos efémeros, as estruturas de produção concentram-se na amortização dos custos da fabricação de estrelas, em que a criação e a inovação estética e artística são subsidiárias atiradas para os aterros onde se confeccionam sucessos anunciados em fortes campanhas promocionais que impõem a colonização cultural anglo-saxónica na forma e internacional nos sentimentos.
Exemplo acabado desse estado de sítio é o recente filme Barbie, estreado no mesmo dia de Oppenheimer, o que é esclarecedor das estratégias de marketing dos produtores para quem os filmes são mercadorias que disputam bilheteiras e apontam às encenações dos Óscares. Um retrata os dramas pessoais do principal responsável pelo desenvolvimento da bomba atómica, no ano em que, no dia em que se assinala a sua primeira explosão em Hiroshima, tanto o secretário-geral da ONU, António Guterres, como o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, tiveram o cuidado de nos seus discursos apagarem o país autor de tão ominoso e historicamente desnecessário bombardeamento. Essa rasura é um sinal a traço bem grosso do estado de sítio dos tempos actuais, que, em paralelo, faz saltar a Barbie da caixa em que estava fechada no seu mundo asséptico para os ecrãs adquirindo insuspeitadas qualidades.
«A indústria cinematográfica norte-americana instituiu o star system, que invade e contamina toda a cultura, do cinema às artes, da literatura à música, sistema que se degradou até aos famosos invadirem todos os cantos e recantos do quotidiano globalizado»
A Barbie, café sem cafeína, coca-cola sem açúcar, cerveja sem álcool, amante assexuada, representante máxima das virtudes de um universo liberto dos seus perigos quotidianos mais vulgares, nas muitas versões que habitam o paraíso da Barbilândia, estava em vertiginosa queda de vendas. A Mattel, sua inventora e fabricante procura desesperadamente conter esse declínio tendo percebido que, nos novos contextos políticos, sociais e económicos, o melhor era encontrar quem produzisse e realizasse um filme publicitário para ser vendido como filme de autor, a ser aplaudido pela crítica incapaz de escavar para lá da superfície. Mesmo a que ainda tem alguma lucidez está tão contaminada que não se apercebe de como este luxuoso objecto pop é um dos paradigmas do capitalismo na sua fase actual, em que se investiram quase 150 milhões de dólares para ser produzido, mais de 100 milhões a ser divulgado, já ultrapassou os mil milhões em vendas de bilheteira.
Paralelamente, as vendas das bonecas cor-de-rosa invadiram, das grandes marcas têxteis ao pronto-a-vestir, das ementas de comida rápida estereotipada dos Burger King e Starbucks às parangonas e aos textos de plástico das revistas mundanas, as janelas nas redes sociais. Barbie ressuscitou alegremente. As críticas, mesmo as mais agudas, sofrem de tantos desvios ideológicos, cometem tamanhos erros de paralaxe que conseguem descobrir nesse objecto pop, não se sabe nem como nem porquê, uma crítica ao capitalismo.
Deixam-se surpreender pelo humor inteligente, o florilégio das cores, a banda sonora impressiva, as actuações das personagens, as supostas investigações sobre a condição feminina que a realizadora Greta Gerwig tem empreendido, que alcançaram o alfa e ómega com esta Barbie que parece ter passado por um processo emancipador de «dessublimação repressiva» de Herbert Marcuse e ser produzida pelas «máquinas de desejantes» de Gilles Deleuze, que a reconcilia com o feminismo, tornando-a inclusiva.
Paradigmática, a crítica de Clarisse Loughrey, no Independent, onde a classificou com cinco estrelas: «Embora seja impossível para qualquer filme de estúdio ser verdadeiramente subversivo, especialmente quando a cultura de consumo percebeu que a autoconsciência é boa para os negócios, Barbie consegue muito mais do que se pensa ser possível (…) é um dos filmes mainstream mais inventivos, imaculadamente elaborados e surpreendentes da memória recente — uma prova do que pode ser alcançado até mesmo nas entranhas mais profundas do capitalismo». Uma crítica que praticamente sintetiza o cacharolete opinativo de uma certa esquerda sempre pronta a classificar como moralistas, prescritivos, aborrecidos e de propaganda os raríssimos filmes que de modo directo ou oblíquo ainda têm como referência a luta de classes, essa coisa do passado em que a esquerda consequente insiste por não dar por eterno o princípio da dominação capitalista e o seu carácter histórico contingente mesmo quando parece ser consistente e hegemónica.
Não será um acaso a Mattel assediar desde 2009 os estúdios de Hollywood para que fosse realizado um filme sobre a Barbie. Não é um acaso terem decorrido uns anos a maturar a proposta, anos em que os videojogos ultrapassaram em investimentos de produção com lucros mais expressivos que o cinema, que a produção cinematográfica começasse a ser atomizada pelo streaming e os usuários se dispersassem nas experiências curtas e efémeras produzidas por eles próprios.
Neste quadro, em que o cinema político experimental, ainda uma experiência colectiva mesmo sendo uma mercadoria, agoniza a par do cinema independente, em que o cinema virou «um parque de diversões», como Martin Scorsese disse, é de anotar com muitíssima apreensão que seja um filme publicitário de propaganda a uma boneca assexuada a atrair multidões às salas de cinema.
Não por acaso, o projecto surgiu um ano depois da crise de 2008 em que coexistiam a grande crise económica e os movimentos feministas MeToo, com grande impulso nos EUA, propagando-se com várias variantes por todo o mundo. O truque foi libertar a Barbie da imagem feminina infantilizada por uma Barbie que entra para o mundo real. Uma das suas primeiras acções é promover a sua passagem de boneca a mulher, entrando nas batalhas de algumas feministas, Judith Butler na primeira linha, que defendem a dissociação entre género, sexo e sexualidade, em que o género se distingue do sexo biológico, o que para Nancy Fraser é reduzir o género a um artigo de consumo representando uma derrota do feminismo. Um largo tema para outro debate.
«Não por acaso, o projecto surgiu um ano depois da crise de 2008 em que coexistiam a grande crise económica e os movimentos feministas MeToo, com grande impulso nos EUA, propagando-se com várias variantes por todo o mundo.»
No filme, Barbie é apresentada como um ícone do feminismo, a caricatura de um mundo dominado pelas mulheres, ultrapassada a necessidade de recorrer a cotas, em contraponto com o machismo, como se a passagem do machismo para o feminismo tivesse algum efeito na raiz e no tronco desta sociedade, a não ser a pacificação do capitalismo em que todos de algum modo são barbies, o que do modo mais hipócrita, cínico e falso ilude desigualdades laborais, sociais, raciais, sexuais.
A outra dimensão que se deve assinalar no filme, em que nada é novo nem original, são os inúmeros lugares comuns que se reportam a outros filmes. Excelente exemplar do que Jameson assinalou como típico da falta de imaginação da pós-modernidade enquanto pasticho de produtos anteriores da indústria cultural.1
Barbie, com os seus artificiais e falsos dramas hedonistas, o seu feminismo padronizado, é a melhor e mais óbvia demonstração de como a luta ideológica se trava a todos os níveis. É a lavagem rosa do feminismo Me Too, decorre a par das erupções do Black Lives Matter, das queer, das alterações climáticas transformadas num dos maiores negócios do século. São o grande espectáculo das lutas fracturantes, até importantes para as mudanças de atitudes sociais e comportamentais, mas inofensivas na luta para uma mudança social, económica e política de fundo. Utilizam um ilusionismo agressivo para consumo mediático, para dissimularem que deixam intactas as estruturas políticas sociais e económicas que são a razão de ser dessas formas de exploração remetidas para plano recuado pelos estardalhaços que ecoam no lixo da comunicação social estipendiada, nos produtos de todos os géneros das indústrias culturais, nas redes sociais, nos estereotípicos produzidos pela IA [Inteligência Artificial], na decadência das investigações académicas sobretudo das chamadas ciências humanas, em que as elites estão subjugadas ao poder para garantirem os seus privilégios.
«São o grande espectáculo das lutas fracturantes, até importantes para as mudanças de atitudes sociais e comportamentais, mas inofensivas na luta para uma mudança social, económica e política de fundo.»
Noam Chomsky é particularmente crítico dessas elites progressistas que se suicidaram: «os intelectuais progressistas auto-proclamando-se corajosos pretendem (até acreditam) criticar o poder e defender a verdade e a justiça, são os agentes da fé. Fixam os limites. Decidem até onde podem ir. Proclamam: "vejam como sou corajoso!". Mas não tentam avançar nem um milímetro mais que eles. Os mais instruídos e cultos entre eles são os mais irredutíveis defensores do poder».2
Barbie é um dos mais acabados produtos do universo ideológico do neoliberalismo capitalista, um seu activo, uma sua transparente imagem. Um sublime descritivo da aliança e convergência entre Wall Street, Silicon Valley, Hollywood, na procura incessante do livre mercado para as empresas e a redução da intervenção do Estado, e os movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas, LGBTQIA+, formas políticas e sociais que surgem com excitantes imagens emancipatórias, que substituem «o movimento pela acção» (Hemingway), e são largamente subsidiadas pelas fundações Open Society & Companhia. Uma aliança que Nancy Fraser e Rahel Jaeggi classificam como a característica dominante do capitalismo no seu estádio actual.3
Não radiografar a Barbie na sua dimensão ideológica, surfar pela sua superfície é um sintoma de como muita esquerda não se apercebe de como estamos a viver debaixo de um vulcão em que a indústria cultural é um detonador que degrada o humanismo e a humanidade por um poder que não recua em utilizar todo o gigantesco arsenal de que dispõe e que utiliza para se tornar omnipresente mas invisível. O perigo é não conseguir perceber essa dura realidade. Há uma esquerda, só a esquerda aqui nos interessa, incapaz de radicalizar a crítica à indústria cultural, o que é bem visível na permissividade das críticas à Barbie castradas do furor do olhar que Robespierre lançava ao pescoço de Maria Antonieta, que deveria renascer no olhar crítico a este universo que pinta de cor-de-rosa as lutas fracturantes. Não o fazer é compactuar com o mundo em que estamos a viver de onde a utopia, enquanto possibilidade do que ainda não foi possível, nos está a ser negada, procurando negar-nos mesmo a hipótese de pensarmos que é possível pensar uma sociedade outra.
- 1. Jameson, Fredric. Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, Ática, São Paulo, 2002
- 2. Chomsky Noam, Quem Governa o Mundo?, Editorial Presença, 2016 / Os Senhores do Mundo, Bertrand Editora, 2016
- 3. Fraser, Nancy / Jaeggi, Rahel, Capitalismo em Debate, Uma Conversa na Teoria Crítica, Boitempo Editorial, São Paulo, 2020
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