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|política cultural

Bolsões de resistência

A frente de luta é o árduo trabalho de redefinir políticas culturais porque, como afirmou Camus, «tudo o que degrada a cultura encurta o caminho para a servidão». Nesse quadro há a obrigação política, social e cultural de resistir.

«Díptico Marilyn», serigrafia de Andy Warhol, 1962  A arte pop é a mais fiel expressão da arte contemporânea, aceitando o mundo como ele é, tendo percebido que as artes visuais tradicionais não existem a não ser como forma de ganhar dinheiro, de que Warhol é figura paradigmática e coerente.
«Díptico Marilyn», serigrafia de Andy Warhol, 1962 A arte pop é a mais fiel expressão da arte contemporânea, aceitando o mundo como ele é, tendo percebido que as artes visuais tradicionais não existem a não ser como forma de ganhar dinheiro, de que Warhol é figura paradigmática e coerente.Créditos

Parte considerável, praticamente toda a actividade cultural contemporânea não tem outra função social que não seja distrair o público, desviá-lo da situação política divertindo-o, num mundo invadido por rótulos seja na música, na literatura, nas artes visuais, no teatro, no cinema, nas artes performativas, mesmo na filosofia, em que o questionamento do real falece e a cultura torna-se uma poderosa ferramenta de desatenção, simplificação, desresponsabilização, dessocialização catalisando excitações frustes submetidas às retóricas promocionais.

Há uma intensa actividade publicitária que se exibe enquanto actividade cultural mas o que de facto publicita é a dominante neoliberal que contaminou as ideologias sociais-democratas, é a trincheira dos demo-liberais às direitas e extremas-direitas. O mais extraordinário dessa matriz é ser o modelo contestatário de algumas esquerdas que substituíram a dinâmica social da luta de classes pelas lutas identitárias, fracturantes e transgressivas, algumas mesmo de cariz emancipatório, que tornam a sua actividade uma performance mediática, em linha com a cultura prevalecente em que a representação é um fim em si-mesmo, que dispensa ideologias, enredando-se em políticas que propõem mudar de vida sem mudar a vida, em que a vida se confina num jogo de oferta e de procura, o que tende a estilhaçar as lutas contra o sistema, sendo por ele absorvido.

Hoje, o objectivo é o mesmo de ontem, assim desenhado desde que a Revolução de Outubro triunfou. Persiste mesmo com as esquerdas devastadas ainda antes que a queda do Muro de Berlim, que provocou o maremoto das ilusões do fim da história e que as persistentes crises do sistema capitalista, aceleradas pela financeirização da economia, se resolveriam com retoques em que o mais vulgar são as alterações das taxas de juro que deixam intocadas as razões de fundo, pelo que recorrem à irracionalidade das explicações pseudo psicológicas de que as mais comuns são as «crises de confiança, a ansiedade generalizada, as depressões do mercado» que assaltam os investidores. São as narrativas em voga que recorrentemente reclamam reformas estruturais inúteis para resolverem as contradições, essas sim estruturais do sistema capitalista. Narrativas que, contra todas as evidências, presumem a eternidade da dominação capitalista, o que desde sempre é negado e combatido pela esquerda coerente com os princípios marxistas que persistem em não perder actualidade.

A situação presente de grande mal-estar civilizacional e cultural, tanto na sua acepção antropológica como na restrita às práticas artísticas, é caracterizada pelas desesperadas metamorfoses do capitalismo na demanda da sua sobrevivência pela passagem do liberalismo clássico ao neoliberalismo, progressivamente a desaguar nos neo e protofascismos, ainda obrigados a limitações circunstanciais apesar da sua influência crescente na Europa, no continente americano submetido aos EUA, de que o melhor exemplo é a Argentina de Milei.

«Narrativas que, contra todas as evidências, presumem a eternidade da dominação capitalista, o que desde sempre é negado e combatido pela esquerda coerente com os princípios marxistas que persistem em não perder actualidade.»

Depois do Plano Marshall, de Maio de 68, da queda do Muro de Berlim, os ideólogos de sectores nucleares como o audiovisual, a comunicação social, as artes e letras, a moda, os tempos livres promoveram em paralelo, com grande sucesso assinale-se, a concentração dos meios de produção a uma velocidade nunca antes vista e o consumo transgressivo como uma pretensa frente de combate contra o capitalismo neoliberal, em demanda da neutralização da luta de classes em todas as frentes.

Na muito activa Guerra Fria Cultural há que referir a importância do Plano Marshall, que não se limitou à recuperação económica de uma Europa devastada pela guerra. Empréstimos e doações eram regulados por rígidos protocolos que na vertente cultural exigiam que muitos dos milhões de dólares fossem aplicados na exibição de filmes produzidos em Hollywood, o que impulsionava a indústria cinematográfica norte-americana, promovia o modo de vida e a cultura dos EUA, combatia os partidos de esquerda. Em poucos anos são dezenas de milhares os filmes hollywoodescos exibidos pela Europa o que, conjugado com outras acções nas áreas das artes, letras e ciências humanas, teve como resultado a actual colonização cultural. O brilho dessas políticas culturais são bem patentes na secundarização das culturas nacionais que só subsistem se comercialmente interessantes, sendo submetidas a processos de assimilação e aculturação que são disfarçados como cruzadas na sua defesa.

«Depois do Plano Marshall, de Maio de 68, da queda do Muro de Berlim, os ideólogos de sectores nucleares como o audiovisual, a comunicação social, as artes e letras, a moda, os tempos livres promoveram em paralelo, com grande sucesso assinale-se, a concentração dos meios de produção a uma velocidade nunca antes vista (...).»

Mais clara e grave é a reescrita cinematográfica da história de que podem dar muitos exemplos, das inúmeras sagas glorificando e mistificando a conquista do Oeste, a entronização do Dia D como a batalha decisiva no desfecho da II Guerra Mundial, quando de facto, na frente Leste, os êxitos e avanços do Exército Vermelho é que eram determinantes para o curso da guerra, inquietando mesmo os aliados ocidentais que, para atrasarem esse curso, não se coibiram de bombardear desnecessariamente Dresden, como Kurt Vonnegut descreve em Matadouro Cinco ou, ainda mais descarado, quando Roberto Benigni n'A Vida é Bela, para garantir concorrer ao selo comercial de um Óscar, substitui os tanques soviéticos por norte-americanos na libertação do campo de concentração de Auschwitz, o que é bem demonstrativo de como a cultura e as artes facilmente se submetem aos poderes económicos. Todo o esplendor desses desfiles culturais difundiram eficazmente o «sonho americano» pela Europa de tal modo que, actualmente, são cada vez mais as gerações a acertar as suas vidas por um estilo de vida liberal. Nas teorias culturais, nas artes e letras é o tempo do star-system em que as estrelas se tornam candentes nas constelações de famosos que se acotovelam na comunicação social e nas redes sociais.

Na vulgaridade da vida contemporânea, os eventos culturais e artísticos são especialmente visitados nos tempos livres das idas ao ginásio, das refeições dietéticas livres de glúten, das cervejas sem álcool, cafés sem cafeína, doces sem açúcares, ao abrigo dos perigos que poderiam contaminar vidas detergentadas em que as maiores excitações marcam encontro nos festivais de música anglo-saxónica na forma e internacional nos sentimentos.

«Em poucos anos são dezenas de milhares os filmes hollywoodescos exibidos pela Europa o que, conjugado com outras acções nas áreas das artes, letras e ciências humanas, teve como resultado a actual colonização cultural.»

O gosto assim travejado assenta invariavelmente em campanhas promocionais e equívocos estéticos. A rarefação do questionamento dos fundamentos da vida é uma realidade ineludível. A aculturação, diariamente verificável nos meios académicos, culturais e artísticos ainda em estado embrionário, tinha sido intuída por Buñuel, que quando confrontado com a cultura norte-americana afirma que um país, para manter e difundir a sua identidade cultural, tinha que possuir duas ferramentas «canhões e moeda forte».

Não deixa de ser interessante assistir-se à decadência impossível de dissimular do imperialismo norte-americano, a uma progressiva desdolarização das economias mundiais, à deterioração de um poderio, predominante desde o fim da II Guerra Mundial até há poucos anos, cada vez mais incapaz de impor regras e sanções que se sobrepõem ao direito internacional e aos depauperados direitos nacionais, e essa ficção no actual contexto geopolítico continuar a ser sustentada por uma comunicação social estipendiada pelas malhas culturais que teceu, o que só demonstra como esses meios são superlativos para a sustentação de hegemonias, mesmo que em falência.

Cultura e artes desde sempre estabeleceram cumplicidades com os poderes económicos, que, por sua vez, influenciam mesmo, comandam os poderes políticos. Nunca como na actualidade as elites culturais, artísticas e académicas a eles tanto se submeteram, marcando presença em talk-shows, podcasts e toda a parafernália informativa pós-moderna em que se fomenta o analfabetismo político, o esquecimento histórico, o brilho efémero e superficial do consumo intelectual instantâneo e medíocre. A normalidade da anormalidade dessa cultura inculta que promove a iliteracia cultural dominante. Byung-Chul Han expõe-o com brutalidade: «Hoje, a própria percepção assume a forma de binge-watching (assistir a algo compulsivamente, descontroladamente) de visionamento bulímico. Oferece-se continuamente aos consumidores o que se adapta por completo ao seu gosto – quer dizer, do que eles gostam. São alimentados de consumo como gado, com qualquer coisa que acaba sempre por se tornar qualquer coisa. O binge-watching pode ser entendido como o modo actual de percepção generalizado.»

Há excepções, mas as excepções são a confirmação da regra e a regra é o triunfo imperial do espectáculo que bordelizou a cultura com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. A produção de produtos ditos culturais pelas indústrias culturais e criativas faz-se em linhas tayloristas que impõem um ritmo em que deixa de existir tempo para pensar a criação artística, o que acaba por ser uma forma de censura económica, pauperizando a cultura até a reduzir a uma sucessão de entretenimentos não significantes, em que tudo é idêntico por mais e melhores artefactos que se lhe colem para maquilhar o seu estado esqueletizado em que a gestão cultural, um instrumento das estruturas de dominação neoliberal, tem o objectivo de impor uma submissão pacífica que pareça espontânea.

«Cultura e artes desde sempre estabeleceram cumplicidades com os poderes económicos, que, por sua vez, influenciam mesmo, comandam os poderes políticos.»

É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade em que se procura que a alienação global seja voluntária. Uma cultura da ilusão que se apresenta como um pensamento mágico de um sistema que quer reduzir a humanidade a uma mercadoria hipotecária para que os homens deixem de afirmar a sua individualidade e o seu progresso pelo trabalho humano. Em que se procura construir um homem pela aniquilação do sujeito moderno crítico, sobretudo se for marxista, substituindo-o por um indivíduo autista, indiferenciado consumidor que tem por referência a apreciação solipsista dos objectos, artísticos ou técnicos, enquanto mercadorias da cultura de massas. Um típico consumidor parasitário gerado nas linhas de montagem do hedonismo oportunista celebrado maximamente no Anti-Édipo de Deleuze/Guattari.

A propaganda dos gestores culturais impulsionados pelas «máquinas desejantes» deleuzianas e os arroubos libidinais de Marcuse imprimiram a abstracção dos desejos promovendo um corte horizontal e substancial da produção criativa actual que passou a estar sobretudo fragmentariamente centrada nas questões de identidade, de género, ambientais, etc., em que essas lutas, a mais das vezes enredadas em extravagâncias e originalidades, dissimulam os silêncios embaraçados, por mais estridentes que se manifestem, das esquerdas culturais diante do poder político demoliberal, sendo cúmplices do infoentretenimento a descambar na deterioração do discernimento.

Tudo se agudiza quando, numa escala sem precedentes, actividades editoriais da literatura à música, do cinema à comunicação social, todas as actividades culturais e artísticas foram objecto de concentrações económicas que facilitam uma censura que dispensa tesouras e lápis azuis, que formatam a opinião e o gosto públicos, são a arma inquisitorial dos mentalismos imperialistas autocráticos ou mascarados de democracias.

A arte e a cultura, actividade social que caracterizava as sociedades desde as civilizações pré-históricas até aos tempos mais recentes, deixaram de ser significantes, apesar dos subsídios económicos que lhe são concedidos para iludir essa realidade.

Em todo o mundo, nos leilões de arte atingem valores estratosféricos os velhos mestres, mas também alguns contemporâneos, esses impulsionados por criativas manobras bolsistas de retóricas estéticas em que ninguém acredita e que são tão mais «inteligentes» quanto mais indigentes são as obras. O mecenato alcançou valores impensáveis em anos anteriores, com a particularidade de que os «mecenas» modernos só se interessam pela cultura e as artes para consolidar o seu estatuto social. Enormes verbas foram e são investidas na construção de museus, centros culturais, teatros, teatros de ópera, na subvenção a espectáculos, exposições, capitais da cultura, bienais, festivais, etc. A outra face dessa euforia cultural são os mecanismos dos mercados das artes, que esvaziaram as artes e as críticas das artes da sua função autónoma, dissociando-as da vida e das condições reais, materiais e sociais, da sua produção.

O trabalho nas áreas culturais é fundamental para dar uma forte contribuição na luta de resistência a esse estado de sítio imposto pelo capitalismo neoliberal. É urgente definir políticas culturais de esquerda que não se deixem contaminar e subverter pelo pensamento de direita como se a cultura fosse um território neutro em que se encontram os bons espíritos.

O lugar do juízo estético foi ocupado pela fascinação obsessiva no excesso de labirintos que se sucedem e sobrepõem corroendo as grandes unidades ideológicas, sociais, económicas e culturais, marcando o fim da modernidade, em que todos as esperanças se diluem no perdido horizonte e em que a cultura deixa de ser uma presença viva pelo que é sempre de relembrar Blanchot quando afirma uma evidência: «é secretamente dramático saber que a cultura não pode fazer mais do que desdobrar-se gloriosamente no vazio contra o qual nos protege, dissimulando-o». Nesse estado de sítio há uma fusão obscena entre a estética e a realidade. Existem, como é de regra, excepções que cumprem o desígnio expresso por Burckhardt: «talvez hoje existam grandes homens para coisas que não existem». Homens que provam a sua genialidade em obras de afirmação individual o que também é uma contradição central no quadro social globalizado.

«O trabalho nas áreas culturais é fundamental para dar uma forte contribuição na luta de resistência a esse estado de sítio imposto pelo capitalismo neoliberal.»

Hoje acelera-se pelas auto-estradas de um bullying cultural do excesso, excesso de actividade editorial, excesso de exposições, excesso de ruído, excesso de imagens, excesso de informação, excesso de comunicação, excesso de oferta e de consumo, todo um excesso que se sobrepõe e se intercepta contaminado pelas inúmeras formas de idiotização desta época obrigada à vertigem da velocidade que passam ao lado de qualquer análise sustentada, profunda, em favor da moda e do kitsch que «é a tradução da estupidez e dos lugares comuns na linguagem da emoção» (Milan Kundera).

É nesse território que a cultura floresce numa terra de ninguém e a arte, essa utilidade do inútil, perde o sentido de ser a utilidade da vida, da criação, do amor, do desejo que transforma a vida. Terá de ser a arte a encontrar aquilo que quer fazer com os seus materiais e instrumentos, porque ela não se pode entregar pura e simplesmente na mãos da política e dar à política o comando colonizando a poética, nem se submeter aos ditames do mercado em que tudo depende das perspectivas de venda que promove o impacto máximo de obsolescência imediata.

A frente de luta é o árduo trabalho de redefinir políticas culturais porque, como afirmou Camus, «tudo o que degrada a cultura encurta o caminho para a servidão». Nesse quadro, com os instrumentos que existem de que não se pode abdicar, com os constrangimentos impostos pelo capitalismo neoliberal enquanto for dominante, há a obrigação política, social e cultural de resistir projectando políticas culturais em que a democratização cultural não se esgote na democratização da fruição cultural, se estenda ao acesso à criação, o que implica a democratização das actividades e do uso dos seus meios e instrumentos, enquanto se luta sem qualquer desfalecimento por uma sociedade outra mas que obriga a que, sem qualquer cedência de princípios, se reformulem e actualizem linguagens.

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