Segundo andamento
2.1 - O amor à arte em vários andamentos facetos e grossos sofismas
Capelo sabe-o muitíssimo bem e quando afirma «odeio as relações de dinheiro com a arte (…) A passagem do mundo do dinheiro para o mundo do prazer estético para mim não funciona» está a ter uma tirada digna dos Gatos Fedorentos mais ainda quando mistura alhos com bugalhos - «tenho tanto prazer a ver um Pollock, um "dripping" que pode custar cinco a dez milhões de dólares, como a ver um Michaux ou um Mark Tobey que custam umas dezenas de milhares de dólares - isso não tem nada a ver com dinheiro». Um sofisma que faria Protágoras corar de inveja.
Quem está a ter prazer estético ao ver uma paisagem do Hogan não está a pensar no seu valor de mercado. Se a compra, esse prazer estético começa a ter um valor de mercado que não corrói o prazer estético, mas altera-o. Ninguém vai a um museu ver obras pelo seu valor de mercado, nem o valor de mercado está inscrito nos catálogos. Mas todas as obras têm valor de mercado.
Capelo podia-se poupar a alinhar mistificações para as compras que fazia para Berardo, já era suficiente metê-las no cartucho do putativo amor à arte do comendador. Fazia as compras colocando nos pratos da balança o valor estético e o valor de mercado antes de decidir se efectuava ou não a sua aquisição.
Podia-se poupar e poupar-nos a essa exibição de hipocrisia, bastava lembrar-se de Warhol, esse malabarista mestre do cinismo artístico, «a melhor arte é um bom negócio» e de como o mercado das artes canibaliza o prazer estético.
A colecção cresceu centrada, pelas razões referidas, na arte pop e minimalista. Foi publicamente exposta pela primeira vez em Sintra, em 1997. Para lá das críticas, das dúvidas que poderia suscitar era um vasto e coerente conjunto de obras de arte moderna internacional, coisa que não existia em Portugal.
O espaço era escasso para a dimensão que a colecção já nessa altura tinha. As loas à volta de Berardo-coleccionador de arte que é o mesmo Berardo-especulador faziam soar os trompetes dos famosos nos mais variados tons e sons.
O interesse do comendador Berardo pela arte foi narrado das mais diversas maneiras, algumas bastante extravagantes. Uma das mais curiosas talvez seja a relatada por Maria João Seixas num programa da Antena 2, em que fazia a defesa da necessidade da colecção Berardo ficar sediada em território nacional.
Contou a jornalista cultural e amante cinematográfica que, num jantar em que participou com o comendador, na continuidade de uma inauguração de uma exposição temática da colecção, Berardo explicara que tendo decidido preencher uns vazios das paredes lá de casa, incumbiu a mulher de o fazer, o que ela fez recorrendo a reproduções, o que muito o indignou.
Não querem lá ver, então um homem de tantos cabedais ía ter nas paredes reproduções? Não senhor, venham de lá os originais. E assim começou a colecção, estorieta que muito enlevou os prendados presentes e João Seixas, transportada no delírio cinematográfico de se sentir intérprete de uma cena portuguesa a replicar em versão nefelibata O Gosto dos Outros, alumbrada com a simplicidade e as ingenuidades do comendador, rapidamente corrigidas com o contributo de muito bons, na sua opinião, conselheiros.
Berardo, com esse novo baralho entre mãos, batia as cartas com estridor. O rasca Berardo tinha subido os degraus dos altares da arte contemporânea em que os mais mediáticos protagonistas tanto se veneram como surdamente se pontapeiam. Começou a desfilar em vários palcos debitando sentenças farroupilhas, vestido com o smoking de benemérito das artes alugado num adelo da roda da moda.
A colecção continuava a crescer, até que em Outubro de 1999, Francisco Capelo abandona a colecção e o comendador, avisando o mundo em alta gritaria que a colecção poderia «vir a ser alvo de eventual dispersão e destruição» porque Berardo tinha a «lógica perversa de sempre mais dinheiro», blalala, faz barrela pública onde desfaz todo o seu argumentário anterior.
Uma chuva que molha, mas não trespassa a nova plumagem de Berardo que não precisa de vir à janela para os joãos ratões lhe entrarem porta dentro oferecendo-se para substituírem Capelo e o orientarem nos labirintos dos terreiros onde se mercadejam obras de arte.
Ele aí vai, ora com uns ora com outros, não perdendo tempo a destratar na praça pública Capelo, «ele que me pague o que deve», que com tanto carinho lhe tinha maquilhado a imagem de padrinho das artes. O polimento não tinha sido suficiente para afagar a casca grossa do comendador como mais tarde e sempre se verá.
Mas tinha sido o suficiente e necessário para Berardo, em 2003, ocupar o 56.º lugar e, em 2007, o 75.º lugar entre os mais poderosos das artes na lista que a ArtNews publica regularmente.
Nada como ter dinheiro fresco, venha lá de onde vier, e ir às compras, para se ser poderoso e influente no mundo das artes. Neste estado da arte, os critérios económicos, coteje-se com atenção os últimos dez anos dessa variante forbes da ArtNews, dominam os estéticos, mesmo o das falácias de Danto e de uma crítica de arte que é certeiramente radiografada Mário Perniola em A Arte e a sua Sombra: «No mundo da crítica da arte jovem está difundida a opinião de que a arte de hoje pode prescindir da teoria: o papel do crítico de arte deveria limitar-se a uma espécie de crónica e de promoção publicitária dos artistas que lhe agradam, sem nunca intervir em questões, já não digo estéticas, mas poéticas ou até relacionadas com a história da arte».
Não é um exclusivo das artes visuais, expande-se pelo estado geral da cultura que já nos anos 50 inquietava Blanchot: «secretamente dramático é saber se a cultura pode alcançar um valor último ou se não pode fazer mais do que desdobrar-se gloriosamente no vazio contra o qual nos protege, dissimulando-o».
Desde esses anos tudo se tem agravado e muito, cite-se novamente Perniola, «a arte tende a dissolver-se na moda, a qual embota e apaga a força do real, dissolve a radicalidade, normaliza e homogeneíza todas as coisas num espectáculo generalizado».
É uma fábrica de provocações frustres procurando assombrar uma burguesia entediada com o seu próprio tédio, uma burguesia insusceptível de se escandalizar num mundo inenarrável por demasiado ligeiro, demasiado absurdo, onde nada se repete porque tudo é meramente casual onde, dirá Kundera, «tudo está já perdoado e por isso cinicamente permitido».
2.2 - Uma gigantesca e luzidia vitrina para expor o amor à arte
Os lances, com vários protagonistas, da colecção Berardo, é um exemplar romance de cordel desse universo. O bater da porta de Capelo deu a oportunidade ao comendador de ir recorrendo a novos conselheiros que se acotovelavam nos corredores por onde passeava a sua então recheada carteira de afortunado especulador.
Criava-se a ilusão de que se estava a trabalhar tendo por horizonte um museu internacional de arte moderna e contemporânea, quando na realidade o que se fazia era atulhar o armazém do acervo de um coleccionador que a ía constituindo em função das oportunidades do mercado e não com um horizonte definido por uma planificação, como é exigível a um museu.
Isto, onde se diluiu a coerência inicial da colecção, não belisca a sua importância no seu carácter internacional de arte moderna e contemporânea, sem paralelo em Portugal, apesar das primeiras décadas do século XX serem muitíssimo lacunares, o que até é compreensível dados os valores de mercado, mas não lhe confere um apregoado estatuto que só tem um principal interessado, o comendador Berardo.
Disso se fez valer quando o mercado se recompôs e voltou a inflacionar, a capacidade de aquisição se reduziu, a valorização começou a ser mais lenta. Precisava de uma montra, uma boa montra para a sua colecção, onde a colecção fosse valorizada publicamente. Berardo começou a apontar, alto escudado no interesse da colecção, mas no fundo os seus objectivos eram em tudo semelhantes aos objectivos de marketing dos megaconcertos do Parque da Bela Vista, montra promocional do mercado discográfico. Só que isto das artes faz vibrar as cordas da alma com outra sofisticação.
A negociação para a colocação da colecção Berardo no Centro Cultural de Belém estava favorável e mediaticamente condicionada para o lado do comendador. O Portugal lustrado tremia de pavor com as ameaças do comendador em colocar a colecção no estrangeiro. A ministra da Cultura em funções, Isabel Pires de Lima, desconfiava que essas propostas eram fogo de artifício do comendador para impor a sua vontade.
Ainda recentemente reafirmou que «estava totalmente tranquila, que ela ficaria em Portugal», ao contrário do primeiro-ministro José Sócrates, assessorado por Alexandre Melo, que segurava o telefone para a verruma da voz de Berardo contar ao nosso primeiro os seus sonhos de mil e uma noites sem verão, nos intervalos das noites de verão ocupadas na colecta de maravedis no sobe e desce bolsista.
Na comunicação social retiniam os alarmes referindo as propostas para instalação da colecção no estrangeiro que enchiam a caixa de correio do comendador. Por mais que vasculhassem não encontravam agulha no palheiro. Por mais que fossem referidas as tais propostas concretas nenhuma foi de facto descoberta. Só intenções, mas de intenções, boas e más, está o inferno cheio.
Prevaleceu a vontade de Sócrates sobre as dúvidas e as questões que Pires de Lima, a saloia, a estúpida, Berardo dixit, colocava no caminho imperial de ocupação total dos espaços exposicionais do CCB e mais umas quantas exigências que deram ao Museu Colecção Berardo um lugar de excepcionalidade no panorama nacional.
Com o andar da carruagem muita gente se chegava à frente para ocupar um lugar na mesa daquele festim. Entre os variegados episódios registe-se o interpretado por Melo, a bater tambores em vários jornais, rádios e televisões, fazendo soar que, pelo seu passado de colaborador do comendador, seria natural vir a ocupar lugar de relevo na futura Fundação.
Não percebia que no pequeno-almoço de Berardo havia muitos Melos, pelo que lhe era mais útil ter um Melo telefonista de serviço no gabinete do primeiro-ministro que dois Melos pousados noutras cadeiras.
Instalada a colecção, Berardo não contente com as condições leoninas alcançadas, faz novas exigências à administração do CCB, ao que parece completamente marginalizada nas negociações, até Mega Ferreira ficar tão encostado à parede que se demitiu de presidente do Conselho de Fundadores da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea-Colecção Berardo (FAMC). Sempre rápido, Berardo disparou no seu estilo habitual: «Se ele não está satisfeito, que arranje outro lugar para trabalhar.»
Berardo tinha o mundo a seus pés por via de um protocolo em que tinha ganho tudo e mais alguma coisa. Ocupava todo o espaço do CCB, que ficou a suportar os custos logísticos e de manutenção da colecção. Ficou com um museu aberto todos os dias de semana e com entradas gratuitas, situação só agora alterada com o novo protocolo, o que o empurrou para lugar cimeiro entre os museus mais visitados do País e mesmo da Europa.
«Que Berardo seja um risco sistémico para a banca é uma coisa. Que se transforme, por laxismo do governo, num risco sistémico para a FAMC e para a colecção, é outra completamente diferente.»
O comendador, cansado de negociar com o Estado, bem pode agitar reiteradamente essa bandeira. Nessas áreas não há controle antidoping! O doping do Museu Colecção Berardo em relação aos museus de cá e da Europa era flagrante, nem eram precisas análises, a camisola amarela estava garantida.
«Cansado de negociar com o Estado», mas sempre a receber favores e largas benesses. Por via do acordo celebrado em Abril de 2006, entre 2007-2015, recebeu apoios financeiros de 41,4 milhões de euros do Fundo de Fomento Cultural, verba muitíssimo superior à concedida a qualquer outra entidade e desproporcionada se comparada às distribuídas aos museus nacionais.
Entre esses apoios um deve ser sublinhado. Ficou estipulado que, para enriquecer e valorizar a colecção, todos os anos o Estado contribuía com 500 mil euros para aquisições de obras de arte e igual verba seria entregue pelo comendador. Por ano, um milhão de euros para ir às compras, coisa com que nenhum museu nacional sequer sonha.
As compras eram decididas pela FMAC, Berardo presidente vitalício com maioria na administração. Gabriela Canavilhas, na altura ministra, colocou reticências à política de aquisições da FAMC. Decidiu, e bem, perceber como eram feitas.
Pelos Relatórios e Contas ficou-se a saber como muitos dos milhões do Estado foram parar aos bolsos de Berardo, porque eram aplicados a comprar obras que o comendador ainda tinha lá por casa. Isto acontecia em paralelo com outra finura bem à moda de Berardo que, em vez de entrar com dinheiro líquido, «cumpria» essa sua obrigação contratual em géneros, entregando mais umas obras que estavam lá por casa.
Ficou sempre por se saber por quanto Berardo as tinha adquirido e por quanto as vendeu para a sua própria colecção. Na prática, quanto é que o comendador ao longo desses anos meteu directa e indirectamente ao bolso. O argumento avançado pelos membros da direcção da Fundação foi o do superior interesse artístico das obras.
Um argumento patético porque tenham ou não tenham interesse artístico, seja superior ou inferior, o que está em causa é a lisura do processo. A avaliação e a decisão do superior interesse artístico eram feitas por quem estava comprometido com os interesses do comendador. Uma conversa da treta em que só é enganado quem quer ser enganado e não quer perder lugar na corte Berardo.
A arte tem costas largas para aguentar essas negociatas de uma flagrante falta de ética, ainda e mesmo que tudo seja legal. De obras com superior interesse artístico está este mundo e arredores cheio! Quando a farfalha foi conhecida e Canavilhas se demarcou, Berardo berrou aos quatro ventos, com a grosseria que o amor à arte não desgasta, que ela era mentirosa. Isto acontece quando o comendador, ameaçado de falência pelas brutais dívidas contraídas na banca para especular na bolsa, já tinha dado como garantia a colecção, espadeirava em todas as direcções para distrair a malta.
Fala em sacos azuis do CCB, desmente ruidosamente a ministra e a Fundação do Centro Cultural de Belém, esgoelando, entre alarves gargalhadas, que à Fundação Berardo não tinha chegado dinheiro nenhum e que «se eles pagaram, onde é que está o dinheiro, levaram para casa? (…) à nossa conta não chegou. Devia ter ido parar à conta do CCB… do saco azul».
Avança a ideia de que duas Fundações no mesmo local não fazem sentido. Quer dizer, não lhe basta ter-se apropriado de uma área substancial do CCB. Quer abocanhá-lo por inteiro e tem apaniguados certos no universo das artes, cegos pelo superior interesse artístico que transforma o combustível que move o comendador, a especulação, num néctar dos deuses, mesmo quando se vê à vista desarmada que a exposição da colecção no CCB é um poderoso estimulante para a sua valorização.
A colecção, avaliada em 2006 pela Christie’s em 316 milhões de euros, hoje deve valer, no mínimo, 400 milhões de euros. Uma valorização de quase 30% em dez anos. Nada mau para uma colecção em que três quartos do seu valor está concentrado em 10% das suas obras.
2.3 – Um folhetim sem fim à vista
Muito há que analisar sobre estes dez anos de exposição e exposições temporárias, mesmo dando de barato uma recente graxa nos sapatos do comendador com a exposição «O Gosto do Coleccionador» que decidiu (ele? quem por ele?) escolher umas quantas obras de arte depois de ter amado loucamente todas como tinha dito a Ana Sousa Dias, no programa Por Outro Lado, quando inquirido sobre as que mais prezava: «Todas. É como os filhos, você prefere algum dos seus filhos?»
Agora armado em Saturno de fancaria, devora uns quantos filhos por achar necessário mostrar que afinal tinha algum gosto. Há que reconhecer que Berardo é um espertalhão com espertalhices sempre ao virar de qualquer esquina.
Há nebulosas que se devem esclarecer em relação à colecção e que deveriam ter sido esclarecidas antes da renovação do protocolo. No anexo ao protocolo listam-se 862 peças o que, segundo algumas fontes, deve ser corrigido porque há séries fotográficas que não são inventariadas como uma unidade, mas foram contabilizadas individualmente. É uma questão de rigor que reduz as 268 aquisições feitas por Joe Berardo a 152 obras, o que talvez tenha a ver com o método de compra já referido.
O interesse da colecção, apesar de todas as lacunas e insuficiências que se lhe possam apontar, é uma inegável mais valia. O que não é aceitável, é mesmo insuportável, é o Estado não defender o interesse público não acautelando o que deve acautelar e ir a reboque de Berardo.
No contexto em que foi negociado o actual protocolo era uma ocasião excelente para clarificar não só situações anteriores, mas as actuais derivadas das aventuras financeiras especulativas do comendador.
Que Berardo seja um risco sistémico para a banca é uma coisa. Que se transforme, por laxismo do Governo, num risco sistémico para a FAMC e para a colecção, é outra completamente diferente.
Com algumas das normas protocoladas e com a execução da penhora, por mais que se negue, a confusão está instalada, um icebergue à deriva que, mais cedo ou mais tarde, colidirá com um qualquer Titanic. Devia ter sido prevenida. As cenas dos próximos capítulos, conhecendo-se e sabendo-se quem é Joe Berardo, anunciam-se escalafriantes.
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