O primeiro gesto da humanidade
Nossa gratidão para com as mulheres deve ser infinita. O primeiro gesto que inicia a história da humanidade, tem a idade do homem, é de uma mulher. Da primeira mulher quando limpa o olhar animal e faz o homem e a mulher descobrirem o corpo, a forma abstracta do corpo, do seu próprio corpo e do corpo do outro. Que os liberta dos constrangimentos dos calendários do cio para aprenderem que o sexo não é uma simples actividade das chãs premências de prolongar a espécie, que o sexo aperfeiçoa o corpo.
É esse gesto primeiro que inicia a humanidade nos labirintos do erotismo e da descoberta dos sentidos, não só os sentidos físicos mas também os sentidos ditos espirituais, que é o trabalho de toda a história do mundo até hoje. É esse gesto primeiro que derruba os muros daquele campo de concentração de virtudes e ignorâncias que era o paraíso, onde o genocídio do conhecimento é feito pelas legiões de anjos e arcanjos que protegem o reino de deus que não é o reino do mundo por onde, a primeira mulher e o primeiro homem, se aventuram para se libertarem da animalidade pelo trabalho, pelo fabrico e aperfeiçoamento dos utensílios que adaptam para civilizar a natureza. É esse gesto inicial que modifica o homem porque é o trabalho que faz dele o animal de raciocínio que continua a ser.
Não ficaram gratos como deveriam ter ficado os homens que só pela mão, pelo poder de persuasão e sedução dessa mulher que ousou desafiar a cólera divina, terem tido acesso a saberes que estavam ocultos, que fizeram do homem o homem, ao longo da breve mas já longa, história da humanidade. Um caminho de pedras para as mulheres onde se lhes negaram direitos, impuseram deveres, descobriram capciosas diferenças em competências simétricas. Em que se cavaram trincheiras para manter as desigualdades, obrigando-as a séculos de luta por direitos idênticos.
Uma luta dura e áspera que hoje se celebra em quase todo o mundo no Dia Internacional da Mulher, instituído pelas Nações Unidas em 1975 para assinalar a longa luta das mulheres pelas conquistas dos direitos sociais, políticos e económicos.
A longa luta das mulheres
É de lembrar que, pela primeira vez, na sequência da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a precursora dos movimentos feministas, Olympe de Gouges, propõe a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã que a mesma Assembleia Nacional Constituinte não aprovaria. Só mais tarde, na Comuna de Paris, em 1871, com o primeiro governo operário da História, é proclamada a igualdade entre os sexos, o que viria a ser revogado pelo governo reaccionário de Thiers, que esmagou a Comuna com violência inaudita.
Dois acontecimentos que são o culminar de muitos séculos de lutas das mulheres para verem reconhecidos os seus direitos. Luta que continuaria de forma mais organizada e colectiva pelas sufragistas inglesas que reivindicavam o direito de votar, direito que viria a ser reconhecido na Nova Zelândia, em 1893, o primeiro país do mundo a reconhecer o sufrágio universal feminino. Uma luta que emergia em muitos outros países e se desenvolvia dentro da luta mais geral pelo reconhecimento às mulheres da igualdade dos direitos sociais, económicos e políticos.
Uma luta dura, áspera, que culmina com a ideia de criar o Dia da Mulher no final do século XIX e no início do século XX, nos Estados Unidos e na Europa, no contexto das lutas femininas por melhores condições de vida e trabalho.
De modo formal, em 26 de Agosto de 1910, durante a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, em Copenhague, Clara Zetkin, uma das lideres da Partido Social Democrata Alemão de orientação marxista, dirigido por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que viriam a ser assassinados pelos esbirros da República de Weimar, propôs a instituição de uma celebração anual das lutas pelos direitos das mulheres trabalhadoras, o Dia Internacional da Mulher. Uma ideia, um marco de um longo caminho percorrido e a percorrer, mesmo nos países onde as mulheres têm os seus direitos reconhecidos, onde são maioritárias nas ciências, nas humanidades, nas artes, mas continuam sem o devido reflexo nos lugares de decisão política, social e de gestão, onde continuam a ser minoritárias.
O mundo evoluiu e, apesar de muito do sentido original subjacente ao Dia Internacional da Mulher, do espírito das mulheres operárias grevistas, tanto na Europa como nos Estados Unidos, se ter alterado e tornado em muitos lugares num dia de luta festivo e as reinvindicações dos movimentos feministas se terem ampliado a outros campos, não perderam sentido. Refira-se que só em 1951 a Organização Internacional do Trabalho estabeleceu princípios gerais visando a igualdade de salários entre homens e mulheres para exercício da mesma função, o que ainda não acontece.
Hoje ainda, uma luta de pleno sentido...
Hoje, apesar de universalmente as mulheres terem ultrapassado os homens em muitas áreas – são mais que os homens as mulheres escolarizadas que os homens, as mulheres com estudos superiores, as mulheres doutoradas e com pós-graduações, as mulheres investigadoras nas áreas científicas – a desproporção entre homens e mulheres nos quadros dirigentes políticos, empresariais e sociais continua a não reflectir essa realidade. A precariedade, esse mal dos nossos tempos, atinge mais as mulheres que os homens. O caminho para a igualdade de género está a ser feito, muitos passos positivos têm sido dados, mas está ainda longe de ser uma totalidade. O reconhecimento implícito ainda não é explicito, o que se comprova pela necessidade de recorrer a um sistema de quotas, como existe em Portugal.
Segundo dados da National Academy of Science, uma organização não governamental dos Estados Unidos em que estão representadas as diversas Academias das Ciências, Engenharia e Medicina, só 20% das mulheres são chefes executivas nas empresas onde são mais numerosas que os homens e desempenham funções equivalentes. Na Europa os números não são diferentes e a desigualdade salarial é chocante. Estatisticamente, números do Eurostat, as mulheres, em relação aos homens, trabalham em média um mês, um mês e meio sem serem remuneradas. Nos parlamentos dos países democráticos a média das mulheres deputadas é de 20%, só em onze é de 40%. Os números alinham-se para não deixar dúvidas que, se em todo o mundo os direitos das mulheres têm feito o seu caminho – um caminho positivo em que Portugal está, nas estatísticas europeias, entre os melhores classificados no referente à presença das mulheres na sociedade –, muito há ainda que caminhar, demonstrando que o Dia Internacional da Mulher não perdeu o seu significado.
...também em Portugal
Em Portugal, depois da Revolução do 25 de Abril, com a democracia e as liberdades conquistadas, as mulheres ganharam mais liberdades e direitos que os homens, dada a condição subalterna em que viviam. Em várias gerações, com o processo democrático iniciado em 25 de Abril, as mulheres rapidamente adquiriram qualificações em que se destacam nas mais diversas áreas. O reflexo dessa alteração, como as estatísticas comprovam, é hoje bem real mas ainda não é expressão do lugar que as mulheres deveriam naturalmente ocupar pelas altas qualificações laborais e académicas que detêm.
Saudemos e celebremos todas as mulheres no 108.º aniversário do Dia Internacional da Mulher, dando-lhes relevo nestas breves notas de sugestões culturais, certamente com muitas omissões.
Exposição: «Mulheres fazendo história»
Na Biblioteca Nacional e até 19 de Maio a exposição MDM (1968-2018): 50 anos. Mulheres fazendo história. Uma exposição organizada pelo Movimento Democrático das Mulheres (MDM), em que se destaca a vida e obra de Maria Lamas, com debates: a 20 de Abril sobre «Violência Doméstica» e a apresentação da aplicação digital «ViveMaisAqui», de apoio às vitimas de violência doméstica; e, a 19 de Maio, sobre «Os Direitos das Mulheres: Derivas e Desafios».
Teatro
A Escola de Mulheres-Oficina de Teatro celebrou o 23.º aniversário no dia 8 de Março, quando iniciou o seu trabalho e publicou um Manifesto em que assumia a intenção de «privilegiar o trabalho feminino em todas as vertentes do Teatro: Autorias, Intérpretes, Técnica» e de «privilegiar as questões do feminino através de textos que reflictam as questões que as afectam sem dar imagens estereotipadas das Mulheres».
Para comemorar essa data realiza, durante três dias (8, 9 e 10 de Março) o ciclo «A Mulher e a Escola de Mulheres».
No dia 8 o tema é Aniversário da Escola de Mulheres: lançamento do catálogo dos 23 anos da companhia, apresentação em powerpoint de imagens dos espectáculos, exibição de vídeo do espectáculo da apresentação pública da companhia, leitura encenada de Cheias de Graça de Isabel Medina e, finalmente, colóquio «O Dia Internacional da Mulher e a Situação da Mulher no Teatro», com a participação de mulheres e homens do teatro.
No dia 9 o tema é A Prostituição e o Tráfico de Mulheres: apresentação do docudrama Caçadores de Anjos, de Isabel Medina, produzido pela Escola de Mulheres, e colóquio com Dália Rodrigues (Associação O Ninho) e Isabel Medina (MDM).
A fechar o ciclo, no dia 10, sob o tema A Mulher na Prisão/O Teatro: exibição do documentário Rompendo os Muros da Prisão, de Luísa Pinto e Caroline Maia, filmado com reclusas e reclusos dos Estabelecimentos Prisionais de Santa Cruz do Bispo, com texto O Filho Pródigo, de João Maria André e Helder Wasterlain, e a participação de Fernanda Lapa, seguindo-se um debate em que participam Fernanda Lapa, Luísa Pinto, Caroline Maia e João Maria André.
O ciclo decorre no espaço da Escola de Mulheres, no Clube Estefânia, sempre com início às 21h30 e entrada livre.
No dia 10 de Março, às 18h, no Teatro São Luiz, o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE) promove o debate «As Mulheres no Trabalho Artístico – Direitos e igualdades no espectáculo e no audiovisual», moderado pela jornalista Cristina Peres, com a participação da actriz Adelaide de Sousa, de Lisa Persson (dir. fotografia), de Irene Lima (violoncelista) e de Fátima Messias (coordenadora da Comissão para a Igualdade Mulheres/Homens, da CGTP-IN).
Ainda no teatro, a 2 de Março foi inaugurada no Teatro Nacional Dona Maria II a exposição fotográfica 120 Anos de Amélia Rey Colaço – mulher que marcou o teatro português no século XX –, que permanecerá no foyer da Sala Garrett até 30 de Setembro. No dia 27 de Março, às 15h, Filipe Figueiredo (um dos curadores da exposição, com Cláudia Madeira e Teresa Mendes Flores) acompanhará uma visita guiada à exposição.
Artes visuais
Foi inaugurada a 29 de Fevereiro e permanece até 29 de Abril, no Museu Grão Vasco, em Viseu, a exposição de pintura de Teresa Magalhães, As Cores da Natureza. Em Lisboa, no dia 10 Março, pelas 17h, na Galeria Monumental, Teresa Dias Coelho inaugura uma exposição de desenho, Turn Again, que permanecerá até 7 de Abril.
Cinema
O filme Colo, de Teresa Villaverde, estreia-se nas salas portuguesas a 15 de Março, em Lisboa, Porto e Coimbra, prosseguindo depois nos cinemas de diversas cidades. Um filme sobre uma mãe que trabalha em dois empregos enquanto o seu marido ficou desempregado. Têm uma filha adolescente. As dificuldades que se vão acumulando, gradualmente, afastam-nos uns dos outros, uma tensão cresce em silêncio e culpa. O filme é uma reflexão muito actual sobre o nosso caminho comum enquanto sociedades europeias de hoje, sobre o nosso isolamento, a nossa perplexidade perante as dificuldades que vão surgindo, sobre a nossa vida nas cidades e dentro das nossas famílias. Colo já foi estreado em vários países e esteve presente, durante o ano de 2017, nos festivais de Berlim (competição), IndieLisboa, Hong Kong International Film Festival, Torino Film Festival e Bildrausch – neste último recebendo o grande prémio Bildrausch Ring of Cinema Art.
No âmbito do filme, o livro Ensaio, de António Júlio Duarte, uma co-edição Pierre von Kleist editions/Alce Filmes, com fotografias tiradas durante a rodagem de Colo, é lançado a 17 de Março na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, onde terá lugar uma conversa entre Teresa Villaverde e António Júlio Duarte, moderada por Luís Mendonça.
Literatura
Na literatura as reedições de O Manto de Agustina Bessa-Luís, na Relógio D’Água, com um prefácio de João Miguel Fernandes Jorge; de Entre Raiz e a Utopia e Descobri que era Europeia, de Natália Correia, na Ponto de Fuga. Livros novos de poesia: de Alice Vieira, Olha-me como Quem Chove, na Dom Quixote, chega às livrarias a 13 de Março; de que completa uma trilogia de forte componente autobiográfica, acompanhada de fotos incluídas pela autora, e foi lançado neste 8 de Março.
No Centro Nacional de Cultura encerra-se o curso livre «Personagens Femininas na Literatura Portuguesa» com três sessões sobre: dia 12, a Maria das Mercês de O Delfim, de José Cardoso Pires; dia 19, a Blimunda de Memorial do Convento, de José Saramago; e dia 26, a Maria Amélia de Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo. As sessões realizam-se a cada segunda-feira, das 18h30 às 20h.
Mea culpa pelas muitas mulheres que ficaram certamente ausentes nesta resenha em que a Mulher está no centro, na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher.
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