Este é o primeiro dia de uma semana de muitas festanças no meio dos muitos perigos que continuam a ameaçar o mundo. São os santos populares, no topo o Santo António em Lisboa e o São João no Porto. Mais recatado mas igualmente celebrado, o São Pedro, sobretudo pela margem sul do Tejo.
Festas para todos os gostos e o paladar da sardinha assada de pesca contigentada a fazer subir o preço para os patamares dos petiscos mais luxuosos que animam este nosso Portugal, «jardim à beira mar plantado», «três sílabas de plástico que era mais barato», das marchas populares e emblema ao peito do quatro-quatro-um e o melhor do mundo a pontapear a bola e meter golos para orgulho nacional a empurrar para as portas do fundo do palco global as ameaças à paz e à independência dos povos que os Trump's continuam a cavar e, por cá, de certo modo desfocar os ziguezagues que adiam descongelar as vidas que foram congeladas pela troika de má memória que continua, pela boca de outros personagens, a dar conselhos e distribuir a pataco propostas de reformas estruturais que todos sabemos onde vão desaguar.
Agora são mais sussurrantes mas não menos insidiosas as vozes dos comissários da União Europeia e outros prestimosos arautos sempre de mãos largas para o capital e para a banca, e fechadas em garra para quem trabalha e vende a sua força de trabalho.
Notas breves de um estado geral que os media, nas mãos dos plutocratas ao serviço do pensamento dominante, mascaram das mais variegadas maneiras. Por cá, a mais escandalosa são as horas e horas atafulhadas de programas obscenamente repetitivos nos argumentários do futebolês, em que se fica a saber o que já se sabe: que vão todos trabalhar muito, jogo a jogo, pontapé a pontapé, respeitando sempre os adversários que se esmurram de suspeições, a que se anexam os ociosos programas de debate supostamente político fabricado por brilhantes cabeças que, salvo raríssimas e cada vez mais escassas excepções, só lumem para um lado. E ainda os debates sobre economia da bolsa ou da vida, em que a vida é quase um adereço, com que pretendem afincadamente e sem detença controlar quem resiste, cercando-os com verdades, meias-verdades e mentiras para que se tudo fique aplainado pelo conformismo da realidade, cada vez mais um simulacro.
A fechar este desaforado intróito, numa semana em que se celebra a ressurreição de um jornalista russo refugiado em Kiev, que saltou de uma fotografia em que jazia ensanguentado crivado de balas assassinas para uma conferência de imprensa que travou a indignação que já ecoava altissonante nos fóruns internacionais indignados com tal bárbaro sucesso, a tempo de as conter e travar os nossos pressurosos deputados, que já deviam estar a escrevinhar rascunhos de uma moção condenando mais essa violação do direito internacional, em linha com outras de equivalente quilate que obtiveram expressivas votações de maiorias espúrias na Assembleia da República.
Lembrar Karl Krauss, em tempos ainda sem televisão e em que a rádio era incipiente, e em que as doenças mais danosas eram outras: «A Imprensa devastará o que a sífilis deixou. As causas dos amolecimentos cerebrais do futuro já não poderão ser determinadas com segurança».
Que fazer contra o «amolecimento cerebral»? Ler, mas ler com urgência o último livro de poemas de Manuel Gusmão, A Foz em Delta, que esteve em destaque na Feira do Livro com uma excelente apresentação de Fernando J. B. Martinho e uma superlativa leitura de poemas por Joana Manuel e Fernanda Lapa.
Ler este livro, que é um esplendoroso livro de poemas e que também é um livro de denúncia: «a cultura mediática de massa desenvolve-se através da mercadorização dos artefactos culturais; da sua transformação em bens a serem consumidos sob a forma de espectáculo; da criação de um ambiente de trabalho que condiciona pessoalmente a invenção e da imposição de um hardware que restringe severamente as opções de software», em que a poesia é Trouver la langue– será a tarefa infindável. Tarefa que muitos dos mais fortes se darão ou retomarão de outros e de que se apresentarão várias versões.
De William Blake a Jean-Arthur Rimbaud, de Holderlin a Mallarmé, de Rilke a Paul Celan encontramos «cartografias ou marcos de resistência que nos permitem mapear a rede das opressões, a fisionomia por onde a barbárie se acende, tentar perceber a diferença dos tempos, (XIV-Poesia e Resistência).
Manuel Gusmão reivindica uma linhagem de poetas em que a apropriação da língua devolve à poesia a vibração que se faz contra a poesia que trafica sentimentos, satisfeita consigo própria, e os frémitos que provoca a atravessar e atravancar salões com petilantes versos que saltam de copo em copo para apaziguar a luta de classes que não pára nem desiste de acontecer e decorre para lá das vidraças das torres, vidro em que batem e batem incapazes de as ultrapassar.
A Foz em Delta, um livro de poemas que se lê num fôlego e que nos retira o fôlego no «confronto entre a lucidez da beleza e/a luz irónica do desacato».
Poemas assumidamente comunistas de um poeta comunista que é um dos maiores poetas portugueses, em que o intenso lirismo que desde sempre o acompanha resgata a poesia das tautologias em que se enreda para enfaticamente se multiplicar contra o vazio em que estamos imersos com a improvável intenção de o travestir e assim nos proteger.
É esse paradigma que Manuel Gusmão rompe neste belo livro de poemas em que celebra a luta de classes e as lutas do nosso tempo, logo no primeiro poema e em «A Voz do Operário», «Um Pai, Uma Biblioteca, Uma Despedida», «Hijos e Nietas».
Como escreve Diogo Vaz Pinto numa resenha crítica de A Foz em Delta: «Se há algo de profundamente inquietante neste livro de Manuel Gusmão é a forma como suspende esse estado de graça de que goza a poesia. A sua condição enquanto discurso que paira acima do seu tempo e que, de algum modo, tem muito a ganhar em alhear-se das circunstâncias. Mas sempre que se envolve vertiginosamente no seu tempo, e não o faz por conveniência, é aí que a poesia aponta uma direcção, uma via para a insubordinação. Sem esse ânimo, sem a pulsão do desacato, da desobediência, o risco é a poesia poder ser lida – ou sobretudo ser lida – por aqueles que são coniventes com o modelo de opressão que cada época congemina».
Esta sugestão – enquanto não me sento a ver os jogos de futebol do Mundial da Rússia, com o som fechado para me proteger do vazio empolamento dos comentários, estarei a ouvir Bach, Chet Baker, Mozart, Schubert, Miles Davis, Mahler, Billie Holliday, sei lá mais o quê, serão muitas as horas de música que os transes futebolísticos me irão proporcionar – de tão substantiva que é, poderia abrir e fechar esta nota.
Podia acabar aqui mas acrescento mais duas sugestões, ambas na margem sul do Tejo. Em Setúbal, até ao fim do mês, a Festa da Ilustração/É Preciso Fazer um Desenho começou a marcar o calendário nacional das artes visuais.
A Festa da Ilustração, uma ideia original de José Teófilo Duarte e João Paulo Cotrim, que se tem afirmado ao longo dos anos na base de um sólido critério atento ao trabalho dos ilustradores portugueses que estão activos e espalham o seu talento pelo mundo e à recuperação retrospectiva de artistas que dedicaram parte substancial do seu trabalho a esse género artístico, de que resulta uma notável pluralidade de linguagens gráficas.
São sempre duas exposições nucleares, este ano João Fazenda e Tóssan, uma espécie de locomotiva a que se atrelam várias carruagens onde embarcam outros artistas em exposições individuais igualmente importantes, Alberto Lopes, José Paulo Simões, Silva Duarte e colectivas de Ilustradores Contemporâneos, alunos da Escolas Superiores de Artes, alunos de artes das Escolas Básicas e Secundárias do Concelho de Setúbal.
O que origina que a ilustração, nas suas mais diversas e até inesperadas vertentes, se estenda como uma teia brilhante pelos espaços expositivos de Setúbal. Um evento único e ímpar em Portugal de visita obrigatória para quem se interessa por artes visuais.
A outra em Palmela, em Vale de Barris, Pássaros, sobre as dramáticas situações vividas por migrantes e refugiados. Um trabalho de O Bando, dirigido por Miguel Jesus e João Neca em colaboração com o Teatro dos Barris (Palmela), do Centro di Produzione Teatrale Elsinor (Itália), do Pilot Theatre (Reino Unido) do FISP Festival Internacional de Saxofones de Palmela, juntando em cena actores e músicos profissionais e amadores. Em cena de 14 de Junho a 1 de Julho, de quinta-feira a domingo às 21h.
Aproveite os últimos dias da Feira do Livro. A oferta é variadíssima. Encontra livros acabados de ser publicados e outros que continuam a cintilar nos escaparates das livrarias, aqui expostos nos stands dos seus editores. Uma viagem e uma visita que nunca é uma perda de tempo.
Entre todos os que pode adquirir, não deixe de comprar A Foz em Delta, no stand das Edições Avante!, um dos mais belos e inesperados livros de poemas entre os publicados nos últimos anos em Portugal que são muitos e bons.
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