A imagem: a capa do jornal Libération, de 15 de junho de 2023. O olhar pousa no azul do mar – em qualquer outro momento que não este, poderia parecer apaziguador, reconfortante, talvez mesmo idílico. Mas, na mesma capa, imagem e palavras. O que altera o contexto, constrói um outro significado. A palavra “cemitério”. As palavras: “O cemitério deles”. O naufrágio ao largo da Grécia. E a interpelação para que a Europa repense as suas políticas.
O mar, aquele mar azul é, na realidade, o lugar onde vidas se perderam, se perdem. No mar, onde se quer traçar a fronteira. Essa que é patrulhada. Talvez azul não seja mesmo a sua cor.
Já o sabemos. Sabemos das mortes no Mediterrâneo. Para não falar em tantos outros locais, tantos outros contextos. Alguns mais visíveis, ou que são tornados mais visíveis. Mas também de todos os outros locais que esquecemos, ou que nos fazem esquecer. Podemos mesmo falar em estratégias de invisibilização, levadas a cabo com objetivos políticos.
Não são de agora as notícias sobre o Mediterrâneo, sobre os naufrágios, sobre os migrantes que morrem, os migrantes que desaparecem. Não é esta a primeira vez que nos confrontamos com estes acontecimentos. Basta percorrer os diferentes meios de comunicação e as redes sociais. Voltemos aos anos de antes da pandemia. Muito antes. Nada disto é novo.
Apesar de se procurar saber o número de pessoas que desapareceram, este será sempre calculado por defeito. De acordo com o Missing Migrants Project, uma iniciativa da Organização Internacional para as Migrações (IOM), desde 2014 contabilizam-se 27.565 migrantes desaparecidos. É este o número no dia em que escrevo. Amanhã, pode ser outro. Mas não se trata de uma questão de números. O que é que estes representam, afinal?
Cada uma daquelas pessoas tinha um nome. Tinha uma história. Tinha um rosto. Cada uma daquelas pessoa tinha razões para enfrentar aquele mar. Tinha direito a não querer estar onde estava. Tinha direito a querer fugir. Tinha direito a querer um outro futuro. Tem direito. Temos direito.
Aliás, como relembra a organização Missing Migrants Project: “Cada número representa uma pessoa, bem como a família e a comunidade que deixa para trás”. Ou a comunidade onde nunca chegou. Quando o vemos desta forma, considerando as redes familiares e de afetos que se as pessoas vão construindo ao longo da sua vida, há toda uma outra multiplicidade de vazios, de ausências – que os que ficam, que os que sobrevivem, não esquecem. Não podem esquecer. E nós? Podemos esquecer?
Mas, para muitos de nós, estas notícias não são uma repetição. Não são banalizadas nem banalizáveis. Cada um destes acontecimentos, que nos chegam através das notícias, é, de alguma forma, um evento único. Ou seja, cada um deles é sempre singular.
E o que fazemos perante o que aconteceu, o que acontece no Mediterrâneo? Há, obviamente, pessoas, coletivos e organizações que são ativas, que estão no terreno, que tomam posições. Muitos consideraram que se devem repensar e modificar o rumo e as opções políticas que têm sido tomadas, no que diz respeito à questão das migrações e dos direitos dos migrantes. Mas também há as outras vozes, que verbalizam o medo e a rejeição.
Não devemos pensar no que podem ser as responsabilidades políticas, tanto individuais como coletivas? De uma maneira ou de outra, não estaremos todos de alguma forma implicados?
O historiador, professor, dramaturgo e ativista Howard Zinn, autor do muito conhecido A people’s history of the United States, escreveu um livro de memórias, no qual contava as lutas travadas durante a sua vida, da sua participação em muitos dos mais importantes movimentos sociais dos Estados Unidos da América. Num primeiro momento, foi o título que me surgiu na memória: You can’t be neutral in a moving train: a personal history of our time [Não podes ser neutral num comboio em movimento: uma história pessoal do nosso tempo]. Porque ser neutral não pode ser, de alguma forma, colaborar?
À primeira vista, o livro não está diretamente relacionado com o que vem acontecendo no Mediterrâneo. Mas, na verdade, podia convocar várias razões que explicam o porquê do surgimento desta memória. Talvez hoje, e perante os acontecimentos recentes, me recorde da importância da ação coletiva de pessoas “comuns”, dos pequenos atos de resistência que podem ser o início de movimentos mais latos. Porque perante a inquietação, a esperança é mobilizadora.
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